Não acompanhei a carreira jornalística de Miguel Carvalho, pelo que não tinha dele qualquer opinião. Os elogios entusiásticos de Pedro Marques Lopes a seu respeito, aquando do lançamento do Por Dentro do Chega: a face oculta da extrema-direita em Portugal, mesmo que insuflados por factores subjectivos e pela temática do livro, merecem-me credibilidade. O seu currículo regista prémios de imprensa. Donde, não me causará surpresa se a sua reputação profissional for elevada, ou até muito elevada.
Passemos para as palavras do homem:
«Tenho a tese de que o criador do Chega não foi André Ventura, nem foram essas pessoas. Acho que quem criou o Chega, o que esteve na origem deste partido, foram sucessivos Governos que falharam nas promessas e na palavra dada. É uma coisa que hoje muita gente fala e eu ouvi muito essas queixas, no terreno, por parte de eleitores do Chega, que não concordam, às vezes, com muitas coisas que o André Ventura defende, mas acham que o seu voto de protesto tem que ir para ali, porque têm a noção de que a generalidade dos Governos, nas últimas décadas, falharam as promessas com as quais se comprometeram.
Estamos a falar de coisas muito simples: o desmantelamento do Estado ao longo do território nacional, pessoas que se queixam do posto dos Correios que fechou, do hospital prometido que não foi construído, a estrada prometida que não foi construída, a escola que fechou e agora é a 30 quilómetros, entre outras coisas. Nas minhas conversas — e muitas delas foram muito longas, tenho entrevistas de cinco e seis horas com alguns eleitores, militantes e ex-dirigentes —, raramente aflora, no início, as questões que são as questões da pauta de André Ventura. O que vem primeiro, sobretudo nas zonas de interior, são estas queixas.»
Isto é uma tese de merda. Da grossa, vinda de um suposto especialista no Chega. Comecemos pelo argumento de que há pessoas a votar no Ventura porque “os Governos“+”nas últimas décadas“+”falharam as promessas“. Três vacuidades ao nível da epistemologia praticada na Feira da Malveira. Mas vamos admitir que o diagnóstico é profundo e rigoroso. E que, na sua lógica, óbvio é não ter existido uma única década, após o 25 de Abril, em que os Governos tivessem cumprido as suas promessas (seja lá o que isto queira dizer). Donde, por que caralho os carentes votantes no Chega não votaram no PCP logo desde os anos 80? Se a motivação para dar o voto a fachos e pulhas é relativa ao “posto dos Correios que fechou, do hospital prometido que não foi construído, a estrada prometida que não foi construída, a escola que fechou e agora é a 30 quilómetros, entre outras coisas“, quem melhor do que o PCP para dar isso tudo e muito mais? O PCP, após o 25 de Novembro, aceitou conviver com a democracia liberal e desenvolveu uma sólida e bela fama de integridade, dedicação aos interesses do povo e qualidade de trabalho na gestão autárquica. Tinha tudo para captar o voto de protesto, inclusive uma fortíssima presença militante no partido e nos sindicatos que fazia com que o seu programa, as suas promessas, fosse do conhecimento de toda a população. Qual a relação do Ventura e do Chega, desde 2017 até à actualidade, com essas questões de investimento local supostamente na origem do voto nos salazarentos? Nenhuma de nenhuma de nenhuma de nenhuma.
Ventura foi lançado em Loures por Passos Coelho. Tratou-se de uma experiência de radicalização originada pelo rancor e revanchismo advindos da perda do Governo em 2015. Passos quis testar um discurso de extrema-direita com a chancela do PSD. Se assim o pensaram, obscenamente o fizeram, para espanto do CDS que teve um acto de coragem e decência ao quebrar a aliança autárquica em Loures. Quem não quebrou foi Passos, que validou e apoiou o discurso xenófobo e racista de Ventura. A partir dessa data, e depois com o Chega como partido autónomo, jamais se desfez a cumplicidade ostensiva entre Passos e Ventura. A que se veio juntar Cavaco, Ferreira Leite, Rui Rio e Montenegro, para só nomear os dirigentes históricos que não só normalizaram um partido com discurso e práticas simbólicas fascistas como o elevaram a parceiro desejado ou consagrado.
E é isto que o Miguel Carvalho reconhece num outro momento da sua entrevista, contradizendo a tese inicial:
«O Chega, obviamente, que atraiu aquela direita mais ou menos ideológica que andava nos extremos há muitos anos, ou seja, toda a direita que andava nas margens do sistema e que não tinha propriamente um partido para escolher — ou um partido com esta força para escolher. Desde neonazis, pessoas das elites financeiras e económicas que antes poderiam estar no CDS e no PSD, e, se calhar, continuam a apoiar na mesma, mas viram no Chega a garantia de que o Estado Social não tem grande futuro e os seus interesses são melhor servidos ali com o espetáculo que tem sido dado e que agrega eleitorado já suficiente para se tornar a segunda força política.»
Portanto, agora o “Estado social não tem grande futuro“, e é exactamente por isso que esses abutres foram a correr para o Chega. Ou seja, os papalvos do posto de correios, do hospital e da estrada prometida estão a dar o seu rico voto a quem lhes vai até esmifrar as pensões e reformas de miséria, deixando-os mil vezes pior. Não faz sentido nenhum, a menos que se admita que os papalvos estão a mentir. Que as suas respostas são para jornalista ingénuo ou cúmplice registar. Que não têm coragem para revelar a motivação mais poderosa que os atrai para o Chega: a promessa de poderem ser eles a roubar, porque o líder tem a bófia e o Ministério Público na mão e não esconde a sua gula rapace. Indo por aqui, a sociologia do crime que se anda a construir a partir das figuras do Chega já apanhadas pelas autoridades ganha outra relevância. Porque é lei arcana, quem mais acusa os outros de corrupção é quem mais inveja a corrupção fantasiada e caluniosa.
É espantoso ver este jornalista de investigação a apagar e branquear a história da ascensão fulminante de um populista circense chamado Ventura. Alguém que tudo deve a Passos Coelho, o responsável pelo seu palco na política. E o responsável pelo seu poder na degradação da comunidade que somos, quando o Pedro quis que a desumanização extrema agitada na retórica da campanha eleitoral em Loures ficasse como espaço legitimado e pronto a crescer. A direita decadente adubou de imediato esse terreno — o fanatismo digitalizado, a ignorância histórica e o ressabiamento crónico vieram preenchê-lo com crescimento geométrico.
«o Chega não terá futuro quando houver, primeiro, políticos que saibam honrar a palavra verdade»
Eis o Miguel Carvalho a exibir-se potencial, ou inevitável, votante no Chega. Onde estão os tais políticos da “verdade”? Não nos 50 anos de democracia, como o Ventura apregoa. Também Cavaco e Ferreira Leite se lembraram disso contra um adversário que sabiam invencível por vias legítimas. Então, trataram de o pintar como mentiroso e criminoso; em nome da “verdade”, pois claro. É preciso não ter a mínima noção do que escreveu Maquiavel para achar que a função dos políticos numa democracia liberal é “dizer verdades”, como se fossem definições do dicionário ou contas de somar e subtrair. E é preciso achar que Maquiavel defendeu a corrupção política como ideal supremo da governação para confundir e misturar o pobre coitado do posto dos correios com o ogre neonazi que gostava de matar uns escurinhos. Todos juntinhos à espera do Messias que lhes vai revelar a verdade verdadinha.
Miguel, larga o vinho.