Em 1969 um poema de José Carlos Ary dos Santos, cantado por Simone de Oliveira no festival da eurovisão, despertou a sociedade portuguesa do seu torpor. A frase “quem faz um filho fá-lo por gosto” perturbou as mentes púdicas de então, um tempo em que o prazer e o dizer eram interditos e apenas o dever e a obediência autorizados. Falar em fazer um filho, e ainda por cima com gosto, chocava a moralidade repressiva e hipócrita daquela época que tolerava, em silêncio, várias formas de violência sexual exercidas sobre as mulheres e as crianças, tanto no seio das próprias famílias como no espaço público.
A procriação estava inerentemente associada ao acto sexual, pelo menos para as mulheres, e qualquer desvio desta forma de conceber a sexualidade era severamente punido. Quando Margaret Sanger abriu a primeira clínica de planeamento familiar nos Estados Unidos, no princípio do século XX, foi presa, por ousar nomear e agir num domínio considerado obsceno, e o movimento social que a partir daí se desenvolveu enfrentou uma enorme repressão. Mas o caminho era irreversível e a difusão da pílula contraceptiva, nos anos 60, marcou definitivamente a separação entre sexualidade e procriação.
Esta foi uma mudança que chegou a Portugal com algum atraso, dadas as nossas condições históricas, mas a resposta de Natália Correia a um deputado do CDS, que defendia, em 1982, que o acto sexual só servia a procriação, teve um efeito decisivo ao pôr o país a rir (…e cada vez que o varão/sexual petisco manduca/temos na procriação/prova de que houve truca-truca/sendo só pai de um rebento/lógica é a conclusão/de que o viril instrumento/só usou parca ração! uma vez…).
Os efeitos desta mudança reflectiram-se, sem dúvida, na emancipação das mulheres, mas também nas dinâmicas familiares e em novas formas de parentalidade e filiação. O gosto deixou de estar exclusivamente no acto de fazer um filho para se estender à vontade de o ter, independentemente da procriação, e a parentalidade biológica passou a ser apenas uma das formas possíveis de parentalidade, agora assente na vontade dos adultos e no seu amor a, e por, uma criança.
O debate suscitado pelo projecto de lei sobre co-adopção dos deputados Isabel Moreira e Pedro Delgado Alves remeteu-nos subitamente para o passado, ao ressuscitar a associação entre o acto reprodutivo e a filiação, como se a família fosse uma determinação biológica e não o resultado de escolhas individuais, e até a curiosa associação da masculinidade e da feminilidade ao espermatozóide e ao óvulo, como se o género fosse uma criação do sexo e não o resultado da socialização.
No entanto, a votação que ocorreu no Parlamento mostra que a ideia de co-adoptar os filhos do parceiro ou da parceira, em casais do mesmo sexo, com os quais se estabeleceram vínculos parentais, assentes no cuidado, na responsabilidade e nos afectos, não é estranha à realidade da sociedade portuguesa e suscita a compreensão pelos interesses dessas crianças que seriam, na ausência desta legislação, brutalmente privadas do ambiente familiar onde cresceram, caso perdessem o pai ou a mãe biológicos.
Custa a crer que seja possível desejar, por razões puramente ideológicas, que estas crianças sejam entregues a famílias onde não pertencem ou depositadas em instituições de acolhimento. O ideal da família tradicional pode perfeitamente conviver com as mudanças propostas na nova legislação, desde que não pretenda impor-se, de forma totalitária, ao conjunto da comunidade. Se hoje é possível que este ideal conviva com outras concepções de família é precisamente porque as sociedades modernas se caracterizam pela tolerância à diversidade e um maior respeito pelos afectos e o bem-estar individual, do que as do passado, dominadas pelo dever e a repressão. Hoje, quem tem um filho tem-no por gosto.
Lígia Amâncio
Psicóloga social e professora catedrática do ISCTE
“O ideal da família tradicional pode perfeitamente conviver com as mudanças propostas na nova legislação, desde que não pretenda impor-se, de forma totalitária, ao conjunto da comunidade.”
é do melhor, já dão brindes para aliciar o maralhar. a excepção passa a regra por decreto e a tradição pode ser reintegrada desde que bata a bola baixo ao conjunto da comunidade, que se presume homosexual e minoritária.
… comparar a isabel e o pedro com a natália e o ary. só mesmo de uma especialista em socialização de espermatozóides.
Não lembra é a ninguém escrever “pérolas” de insanidade e ignorância como as de MP, aqui: http://www.jn.pt/Opiniao/default.aspx?content_id=3253373&opiniao=Ant%F3nio+Marinho+Pinto
Oh por favor! Obrigada Isabel Moreira por ir contribuindo para o que deveria ser uma discussão informada, sem mitos, mas que infelizmente se mantém na ignorância e de “palas nos olhos” para não se ver, perpetuando-se a mentira e o ódio, sem qualquer razão de ser, como tão bem demonstra essa crónica de Marinho Pinto
Há ainda outra questão que não tem sido referida e que é muito importante: os direitos de herança das crianças. É especialmente importante porque a ausência de lei funcionaria como uma licença para saquear os bens a que a criança não tem direito, em caso de falecimento de um co-adoptante informal. Concorde-se ou não com o conceito (de casamento entre pessoas do mesmo sexo) a partir do momento em que a realidade existe a lei tem a obrigação de enquadrar COM JUSTIÇA as situações de facto que vão surgindo.
Dado o longo historial do nosso país em questões de heranças mal resolvidas, tudo seria de esperar caso esta lei não existisse; incluindo crianças institucionalizadas, por terem sido abandonadas na miséria, após o falecimento acidental de progenitores adoptivos.
“Há ainda outra questão que não tem sido referida e que é muito importante: os direitos de herança das crianças.”
ou mesmo os direitos de herança dos adoptantes, caso morra a criança.
Genial anedota que pode muito bem valer um ou dois prémios Nobel à autora: «(…) curiosa associação da masculinidade e da feminilidade ao espermatozóide e ao óvulo, como se o género fosse uma criação do sexo e não o resultado da socialização».
Dentro em breve no Grande Circo Mariano: o homem barbado e a mulher mamuda. E para não haver mais confusões, a reprodução in vitro sem cromossoma Y, abolindo de uma vez por todas o pecado original.
Sim, Monsieur Labarbe, está visto que sem a «socialização» seriam os óvulos a tentar deglutir os espermatozóides — um pouco como no clássico filme nipónico dos anos 50 “Ataque das Amibas Gigantes” — e os espermatozóides a cavar que nem habitantes de Tóquio!
Vê-se que esta gente das ILGAs e dos LGTBs gosta tanto de orfãos que até prefere fabricá-los a adoptá-los. E adora ciência soft aos encontrões, daquela que ignora a terceira lei de Newton. Até ver.
Está a sugerir que o que a socialização faz é atenuar as propensões inerentes à própria noção social de género em vez de as criar, como parece que pensam as professoras feministas de psicologia social especializadas em bioquímica hormonal?
Veja lá se quer que lhe aconteça o mesmo que aconteceu ao Alan Turing…
oh labarbe! o que é que andas a fazer por aqui, não deverias estar a escrever os discursos do coelho?
Shhh, Ignatz, sou eu. Resolvi reproduzir-me por mitose, como tu próprio e as luminárias das ligas heterofóbicas, para acompanhar os tempos. É o que está a dar.
Oh Labarbe, o género e o papel de género é realizado pela socialização e pela sociedade em que se vive. O sexo esse é feminino e masculino, explicando melhor feminino = pipi e masculino = pilinha (pareceu-me apropriado usar termos infantis, considerando o seu nível de inteligência reflectido nos comentários). Isso é o sexo. O género é outra coisa diferente.
Olhe busque no google que hoje em dia ele tem respostas para quase tudo, menos para a sua estupidez.
Catarina, experimente ler outra vez, mas com atencao.