“A acção libertadora do 25 de Abril que hoje celebramos pôs termo a uma longa perversão constitucional.
A constituição do Estado Novo proclamava a liberdade de expressão – mas tínhamos a censura prévia.
Consagrava-se a independência dos Tribunais – mas os opositores eram presos e condenados em execução de instruções da polícia politica.
Era uma constituição que mentia. O 25 de Abril resgatou-nos dessa mentira.
Construímos uma democracia em que o Estado e as leis se subordinam á Constituição – uma genuína Constituição e não uma Constituição à disposição.
Uma Constituição que é em todos os momentos, no bom tempo e na tempestade, um teste à qualidade democrática da governação.
Por razões que são globais, europeias e nossas, conhecemos uma situação em que se pode dizer que o nível dos sacrifícios impostos atingiu o limite.
Mas o que qualifica uma forma de governar não é tanto o nível dos sacrifícios como o critério com que são repartidos.
Quando se privilegia o que é mais fácil, quando se constituem como alvos preferenciais os que não podem reagir, quando em primeiro lugar se atingem os mais débeis, os doentes, os desempregados, os pensionistas, os idosos – fere-se a dignidade e a coesão, e transmite-se uma mensagem perversa à sociedade.
Perversa não apenas porque não alcança o que anuncia, não apenas porque os efeitos pretendidos não passam a resultados.
Perversa, sobretudo, porque extermina expectativas, semeia a frustração, o cepticismo e a desconfiança, e compromete as próprias condições de uma governação democrática eficaz.
O princípio da igualdade é uma pedra de toque num Estado de Direito e um princípio estruturante do nosso sistema constitucional.
Na sua dimensão de igualdade na repartição dos encargos públicos está no cerne da exigência constitucional.
Em tempo de agravamento de sacrifícios, é ponto central do teste a quem governa.
Falhar o teste constitucional uma vez neste domínio não é preterir uma formalidade.
Falhá-lo duas vezes no teatro da crise é cometer suicídio de credibilidade.
É verdade que sob a Constituição do Estado Novo as leis podiam dispor diferente, e mesmo ao contrário, do que ela enunciava.
Mas essa Constituição já não vigora: foi varrida com o 25 de Abril.
Foi também o 25 de Abril que nos permitiu aceder à construção europeia, de que a ditadura e a sua constituição nos excluíam.
A nossa lei fundamental fixa um objetivo, e um critério de legitimação, para a transferência de competências para as instituições da União Europeia: a realização da coesão económica, social e territorial.
Há que agir, há agora que agir para que esse projecto europeu se não desfigure, a ponto de nos situarmos fora da nossa própria credencial.
Este é um desafio e uma responsabilidade que se coloca a todos os orgãos de soberania.
Se a Europa de que falamos é uma Europa de todos os europeus, se fazem sentido coesão, convergência e solidariedade, então não pode aceitar-se que resulte da crise atual uma espécie de “constituição perversa”, onde alguns se qualificam no exercício dos seus poderes e outros no cumprimento dos seus deveres.
Esta fractura significaria, à escala da União, a negação do princípio da igualdade: o regresso da Europa aos fantasmas do seu passado.
O estigma e a punição, a expiação e a recompensa, no limite o domínio e a obediência, teriam força normativa e a coesão e a solidariedade desceriam do programático ao nominal.
O domínio das ideias únicas, do pensamento sem alternativas autorizadas – essa forma mental de convocação da submissão – corre o risco de ser a reedição, em moderno, daquelas pretensões que juncam a história do continente.
Não vai ajudar.
Nas últimas páginas duma das suas obras maiores, Keynes alertava para o facto de os governantes, os homens da decisão, com frequência serem, mesmo sem o admitirem, verdadeiros “escravos de economistas mortos”.
Esta modalidade de “escravidão” não desapareceu e, seja qual for a escola, não pode continuar a onerar o futuro de portugueses e dos europeus.
É preciso reforçar drasticamente a capacidade portuguesa de negociação e de proposta no quadro europeu, e isso requer uma perceção aguda dos riscos e das oportunidades presentes no difícil momento europeu.
É preciso um novo curso político, um novo curso de esperança.
Um novo curso que se suceda a um tempo em que as pessoas, as famílias e as empresas foram fustigadas com desemprego, falências, cortes, empobrecimento, multiplicação da incerteza e dos riscos, perda de confiança, previsões falhadas, metas não alcançadas, argumentários de refúgio que não convencem, teatralizações que já não resultam.
Como em muitos momentos difíceis que o nosso país atravessou, a sociedade está pronta.
E por isso, nos dias que atravessamos, comemorar o 25 de Abril, releva da esperança.
É pois com esperança que, em nome do Partido Socialista, presto homenagem aos que lutaram para que o 25 de Abril acontecesse, aos que lutaram para que tivéssemos uma Constituição democrática e para que, acima das leis, lhe pertencesse a supremacia.
Quase quarenta anos depois recordo todos os companheiros que suportaram a prisão, o exílio, as expulsões das escolas e das profissões, os que foram perseguidos, os que se levantaram em tempo de servidão. Porque eles ergueram a nossa liberdade de escolher agora.
Saúdo, em especial, os militares do Movimento das Forças Armadas, que aqui simbolizo na memória, que a todos nos acompanha, de António Marques Júnior, capitão de Abril.
O exemplo que nos legaram, de risco e de coragem em tempo de obediência e submissão, integra a nossa herança cívica maior.
Na promessa constitucional de igual dignidade para todos os cidadãos viverão connosco as palavras da Grândola: “em
cada rosto igualdade“. “
Nesta, como na anterior Constituição, consagra-se a independencia dos tribunais. Antes, era o governo que violava esta independencia. Agora é um poder difuso e obscuro, mas efectivo, que faz fazer a justiça que bem entende. Os juizes são activos ou passivos executores de uma justiça ao serviço desse poder. Depois de sujeitar a política, o omnipotente poder económico põe e dispõe da justiça. Há muitas formas de sujeitar uma Constituição. Parece que ninguém está a querer ver o óbvio.