As caras que fazemos

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Uma das descobertas que fiz nas minhas primeiras experiências com câmaras fotográficas teve a ver com as capacidades expressivas do rosto humano. Melhor: com a forma descontínua como as nossas expressões aquiescem à vontade que as comanda. Ao passarmos de uma máscara para outra, não escolhemos a rota mais simples e directa: deixamos que os músculos que definem expressões e afivelam estados de espírito sigam os seus próprios caprichos, libertamo-los por fracções de segundo da sua missão.
É assim que por vezes o olhar quase instantâneo dos obturadores nos surpreende “a fazer caretas”: numa ocasião em que nos sabíamos risonhos, descobrimo-nos quase chorosos; onde brincávamos com uma criança, brilha inexplicavelmente um ódio vindo de parte incerta. É como se o alfabeto calculado de rictos, sorrisos e esgares que usamos a cada instante carregasse consigo um subtexto oculto, um fluxo de mensagens encriptadas que só a suspensão do tempo consegue desvelar. Nesta vida secreta dos nossos rostos, agita-se um conteúdo latente que nos assombra com aparições sem aviso.
Imagino que mesmo longe de películas sensíveis esta presença subterrânea se sirva da minha cara como ecrã de projecção, onde materializa fantasmas de cenho carregado, espasmódico ou zombeteiro. Eles parecem-se comigo, mas apenas porque se servem do meu rosto para emergir no nosso mundo.
Assim se estragam muitos retratos, aliás. Só mesmo em campos onde é quase irrelevante a expressão do modelo, como na pornografia manhosa, é que vemos estas imagens reveladoras mas comercialmente imperfeitas chegar à luz do mercado.
Com um leitor de DVDs, a experiência é simples: basta imobilizar qualquer grande plano de um actor para que se revelem de quando em vez estes esquivos habitantes do interim. Com uma excepção bem clara: os filmes de animação digital. Os rostos modelados em 3D passam de uma expressão para outra sem desvios, sempre lógicos e alérgicos a desperdícios. Ao que parece, os computadores ainda não têm alma que chegue para engendrar espectros.

7 thoughts on “As caras que fazemos”

  1. Olha: nem tinha pensado nessa ligação. Mas é mais um reino onde somos inconscientemente rigorosos e coerentes: o das nossas obsessões e manias.

  2. ide a correr, meus amigos: magistral texto do osvaldo silvestre, no blog casmurro, a propósito da crítica, onde nem sequer falta referência à épica negatina do senhor j. m. magalhães. será que a falange, com ou sem «tellhados de vidro», virá em sua defesa?

  3. Também achei o texto muito bom, mas com assunto ligeiramente distorcido, face ao crescente ganho de terreno por parte das digitais…só não entendo muito bem o que é que a referência à expressão do modelo na pornografia tem a ver com o assunto: é que na minha perspectiva, as caras dos modelos e, sobretudo, os diálogos, só servem para empatar…

  4. É mesmo isso, Fernando: como se trata de minudências, as caretas que com muitos modelos são apanhados são impressas mesmo assim. Lembro-me de há uns anos largos ter uma pequena colecção de recortes de rostos dessas senhoras em acção; mas acabei por mandar tudo para o lixo…

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