Todos os artigos de Valupi

Do regular funcionamento daquela instituição

Duas das pessoas que mais admiro pela frontalidade com que denunciam os abusos e ilícitos do Ministério Público (tomado aqui colectivamente porque, colectivamente, não assume qualquer responsabilidade sobre os actos ilegais de alguns dos seus membros) são o Miguel Sousa Tavares e o Pedro Marques Lopes. Ontem, ao darem a devida — e mui justamente sentida! — ênfase à gravidade do que está em causa na espionagem a Ivo Rosa por arbítrio criminoso do Ministério Público, não foram capazes de colocar a última peça no puzzle: a finalidade da devassa.

O que está em causa não remete para o domínio da “vingança” em resultado da decisão instrutório de Ivo Rosa sobre a Operação Marquês, por mais previsível que seja também encontrar essa motivação no bestunto dos mandantes. O que realmente importa é antes da ordem do pragmatismo, e explica os três exactos anos da coisa. Conseguir assassinar o carácter de Ivo Rosa, pelo menos isso, com sorte enfiá-lo nalguma suspeita sórdida com implicações judiciais que fosse impossível de apagar, era o que se pretendia alcançar para os magistrados criminosos que montaram a perseguição. E porquê e para quê? Sócrates. What else?

Não sabemos quando se iniciou a espionagem, mas, mesmo que tenha sido apenas após a data da decisão instrutória, o Ministério Público iria sempre apresentar um recurso que queria muito, muito, muitíssimo ganhar. Tudo o que pudesse aparecer de negativo a respeito de Ivo Rosa durante esse período, que seria de anos, teria um efeito de influência e pressão sobre os juízes que iriam avaliar o recurso. E algo apareceu em 2022, no que fica como mais um acto criminoso, quando a Sábado lançou a suspeita de que Ivo Rosa tinha recebido dinheiro de um traficante de droga. Entretanto, a espionagem ao alvo, que inclusive passou pelo registo das suas deslocações diárias, comunicações, movimentos bancários e teve agentes da Judiciária a segui-lo presencialmente, ia acumulando material destinado a mais crimes. Se fosse necessário, a sujidade seria despejada pelos meios do costume. Mas não foi preciso, porque as juízas que ficaram com o recurso aceitaram serem cúmplices da golpada do “lapso de escrita” e anularam as decisões de Ivo Rosa. Em Janeiro de 2024, mandaram Sócrates para julgamento com as acusações originais – as tais que Ivo Rosa tinha desmontado com rigor geométrico e deixado para consulta de quem estivesse interessado na verdade. Essa foi a altura para terminar os três anos da espionagem, já não se justificava estar a perder tempo com esse juiz. Havia agora que destruir os registos, apagar os crimes.

Estava cumprido mais um capítulo do regular funcionamento do Ministério Público.

Mil vezes mil

«O primeiro-ministro Luís Montenegro associa, numa resposta oficial do seu gabinete, a data dos pedidos de documentação feitos no âmbito da averiguação preventiva sobre o caso da Spinumviva a duas campanhas eleitorais, insinuando que houve motivações políticas nos timings escolhidos pelo Ministério Público e pela Polícia Judiciária.»

Fonte

Passaram cinco dias após esta notícia ter sido publicada e não se ouviu tugir nem mugir a respeito. É espantosamente extraordinário e extraordinariamente espantoso.

É espantosamente extraordinário que o líder de um partido que instigou e explorou a judicialização da política e a politização da Justiça faça declarações — a partir do estatuto de primeiro-ministro — onde se diz vítima de uma real conspiração política orquestrada através de procuradores do Ministério Público.

É extraordinariamente espantoso ter-se um primeiro-ministro a declarar publicamente ser vítima de um lençol de crimes gravíssimos cometidos por magistrados e depois toda a gente – dos jornalistas aos comentadores, dos partidos ao Ministério Público – fingir que não leu, não tomou conhecimento, não sabe de nada.

Este episódio de Montenegro é mil vezes pior, naquilo que revela sobre a anomia que transformou o Estado de direito numa farsa em Portugal, do que a notícia da CNN sobre a espionagem de anos a Ivo Rosa por iniciativa do Ministério Público, sendo que esta notícia é mil vezes pior do que qualquer outra surgida após o 25 de Abril de 1974 acerca da injustiça na Justiça portuguesa.

O parolo e o taralhouco foram brincar com a tropa

O evento ontem na base de Quantico, onde centenas de chefias militares norte-americanas das mais altas patentes foram convocadas para estarem sentadas e caladas a levar com um palhaço da Fox e um cobarde que fugiu ao serviço militar, é uma peça especial no processo de implosão da democracia nos EUA. Quando se fala da importância histórica da democracia americana, tal também se deve ao rigoroso apartidarismo da corporação militar e à ausência de golpes militares, sequer tentativas, nos 236 anos após a rectificação da Constituição americana. Por isso, ver o bufão Pete Hegseth achincalhar uma plateia recheada de verdadeiros heróis de guerra, revelando ter uma concepção pré-tecnológica e circense do que deve ser um soldado, desperta esta inevitável curiosidade: quais as consequências de ter a elite do exército dos EUA a desprezar visceralmente o actual Secretário da Defesa? E depois ver um Trump em acelerada desagregação cognitiva, com exuberantes sinais de exaustão física, a largar retintas insanidades antipatrióticas em palco, leva a outra interrogação: se o Supremo Tribunal continuar a permitir o processo de tirania em curso, virá do corpo militar uma última linha de defesa da democracia?

Porque a verdade é esta, alguns dos melhores seres humanos deste planeta fazem parte das forças armadas americanas.

Pela calada

Que me lembre, o Lucas Galuxo começou a comentar neste blogue por causa de Sócrates, dizendo-se apoiante desse cidadão vítima de graves abusos, e de crimes, nascidos intencionalmente de agendas políticas de governantes, magistrados, patrões de imprensa e jornalistas. Muitos anos mais tarde, ficou claro que não percebia patavina do que é um Estado de direito democrático, o que fazia do seu suposto apoio a Sócrates apenas uma expressão de fanatismo. O mesmo fanatismo que o leva, actualmente, a ser defensor de Putin, Trump e Bolsonaro. QED.

Esta introdução só para enquadrar o seu comentário acima pendurado. Resolvi usá-lo porque ele é paradigmático de incontáveis outros comentários que se têm feito desde que o Chega apareceu. São, numa leitura superficial, apelos a que não se reaja à violência dos populistas de direita. Em comum, o mesmo argumento de serem essas reacções um factor de crescimento dos chungas. E, como neste exemplo do Galuxo, podem chegar ao ponto de verbalizar a sua finalidade, a sua motivação principal: “ficasse calada”. É só isto, de facto e em síntese — querem calar as vítimas através da sua culpabilização.

Podíamos fazer teses de doutoramento em múltiplas disciplinas a analisar os mecanismos mentais e sociais que originam este fenómeno. A pessoa que na Internet se apresenta com a identidade de “Lucas Galuxo”, que não faço ideia quem seja nem essa informação teria qualquer utilidade para o caso, gasta uma parte da sua vida a expor a sua cumplicidade com a degradação das instituições democráticas. A lógica da sua atitude consiste em apoiar aqueles que pretendem tomar o poder através da violência. Como não é assim que se concebe, precisa de deturpar a realidade para conseguir manter a integridade psicológica. A partir da sua crassa ignorância (o Galuxo não faz ideia do que seja uma república ou uma constituição, nem quer perder um segundo a pensar nisso), usa na sua cognição o que consegue perceber. Eis que consegue perceber uma manipulação básica do Ventura sobre a Isabel Moreira, produzida em 2024. Pois então é isso mesmo que vai usar para bolçar uma inanidade acerca de um episódio de Setembro de 2025.

Ocorrendo isso neste pardieiro, não tem qualquer importância. Nada do que se passa neste blogue tem importância, seja para o que for, no seu ambiente exterior. O que releva é ser sintomático do que acontece na sociedade com centenas de milhares ou milhões de portugueses. As expressões de ódio, quando não contestadas sistematicamente, começam a parecer opiniões válidas entre outras. Os cidadãos comuns, especialmente os mais jovens ou com menor literacia política, passam a incorporar estes discursos como parte legítima do debate democrático. Como se vê no comentário acima, os cúmplices dos fascistóides agitam serem apenas “excessos de linguagem”. Mas ai de quem reaja, quem se indigne, quem queira poder discursar sem ser alvo de assédio machista, racista, xenófobo, pois aí vem o Galuxo explicar que tal defesa da decência, das leis e do humanismo é que está a alimentar o monstro. Comam e calem, é a bandeira destes colaboracionistas.

Essa fuga para o silêncio produz consequências catastróficas. Acelera a erosão das normas democráticas, porque cada ataque não respondido torna o próximo mais aceitável. Contribui para a desmobilização democrática, porque os cidadãos comprometidos com a democracia sentem-se isolados e impotentes. Facilita a captura institucional, porque as instituições democráticas enfraquecem quando ninguém as defende publicamente. E, paradoxalmente, fortalece eleitoralmente os populistas, porque lhes permite dominar a narrativa pública sem contestação efectiva.

O argumento de “não provocar” os extremistas foi usado repetidamente nas décadas de 1920 e 1930 na Europa. As elites moderadas, assustadas com a conflitualidade social, acreditavam que ceder espaço e não confrontar directamente os fascismos emergentes levaria à sua moderação ou desaparecimento natural. O resultado foi horrendo. A ausência de resistência firme foi interpretada como fraqueza e acelerou a normalização do inaceitável. Cada provocação não respondida, cada ataque às instituições não defendido, cada expressão de ódio não condenada contribuiu para deslocar a janela do que era considerado aceitável no discurso público. A história ensina-nos que o silêncio nunca pacificou autoritários — apenas os encorajou.

Os pulhas querem assustar e calar a Isabel Moreira. Faz sentido, pois ela está nas muralhas da cidade. Sem medo e com gana.

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Dominguice

Que pretende Trump? Quantos anos de vida acha que lhe restam? Para que quer mais dinheiro? Existe algum plano naqueles que o manipulam nos bastidores para além de manter o poder pelo poder? Os juízes do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, que têm aceitado transformar esse órgão num instrumento do autoritarismo violento e desumano de Trump, não se importam como a História os vai retratar? O Estado de direito pode recuperar de se ter transformado a Justiça numa arma de perseguição e vingança política? Que será preciso acontecer para que a população americana saia à rua na defesa da democracia e da liberdade?

Talvez só a hipótese de se ver Trump dar um tiro em alguém ao calhas na Quinta Avenida, que o próprio lançou num comício em 2016 para ilustrar a alienação dos seus apoiantes, fosse capaz de quebrar a apatia. Mas não é certo.

E tu?

Ventura sobre Isaltino e Sócrates: “qualquer dia temos um líder terrorista a dar entrevistas na televisão”

Questionado sobre as declarações de Isaltino Morais a seu respeito, na peça acima acessível, Ventura de imediato vai buscar Sócrates, acrescenta Paulo Pedroso e chega aos terroristas. Todos juntos, todos iguais na sua retórica do ódio. Se sobre Sócrates está apenas a expressar o que a sociedade e o sistema partidário igualmente pensam — que esse cidadão devia estar preso sem direito a defesa num tribunal — já sobre Pedroso estamos perante um outro cidadão que não foi pronunciado por crime algum. E que depois obteve do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos o reconhecimento de ter sido vítima de gravíssimas violações dos seus direitos por exclusiva responsabilidade do Estado português através de agentes da Justiça.

Pedroso não é apenas um inocente, é também um não acusado e alguém que obteve uma indemnização por ter sofrido danos incalculáveis e indeléveis, que continuam a provocar sofrimento atroz. Esse sofrimento estende-se à sua família e amigos, e ainda a qualquer pessoa decente que se sente atingida pelos abusos cometidos e pelas suas consequências para a comunidade. Quando foi detido no Parlamento, com 38 anos, ele era um dos mais promissores políticos do PS, considerando-se que estava destinado a chegar a secretário-geral e, portanto, eventualmente a primeiro-ministro. Hoje, quem o oiça ou leia com honestidade intelectual fica triste por não ter o protagonismo político que merece e nos faz falta.

Ventura terá dificuldades cognitivas que lhe dificultem o entendimento dos factos judiciais relativos a Paulo Pedroso? Não parece. Terá provas que escaparam à Justiça, e que ainda não entregou às autoridades, onde baseie a sua convicção de estarmos perante um abusador sexual de menores ou maiores? Não parece. Então, que resta? Por que razão, ou razões, se tornou num explorador político do sofrimento de alguém que nunca lhe fez mal? Como se permite continuar a violar os seus direitos, e até a ameaçar agravar a violência já infligida desde 2003 até à actualidade? Que podemos, e devemos, concluir a respeito de alguém que fanfarrona ser carrasco de um inocente enquanto líder partidário, deputado, candidato a primeiro-ministro e candidato presidencial?

Ele permite-se fazer isto dado só ver à sua volta cúmplices e cobardes. Atente-se como o título da notícia, da responsabilidade do editorialismo do Ricardo Costa, agarra-se a Sócrates e apaga Pedroso. Ventura falou da Palestina, das creches, das autárquicas. A SIC aproveita para vender o Sócrates criminoso e cala-se sobre a violência de que Pedroso volta a ser vítima, agora também tendo a SIC como canal divulgador e amplificador. De cada vez que isto acontece, e acontece sempre e em todo o lado em que se reproduzem as canalhices do Ventura, o espectador tem bons motivos para considerar que é normal repetir ser Paulo Pedroso um criminoso que devia estar preso porque abusou sexualmente de crianças e jovens. Afinal, se nem sequer os jornalistas gastam uma caloria a rebater as calúnias ditas na sua cara, sequer um político de um outro partido aparece a defender a honra e a liberdade dessa pessoa — os seus direitos fundamentais, aqueles que reclamamos para nós próprios — é porque todos concordam com o pulha.

E tu, também concordas, né?

Mourinho e o fisting

Mourinho chegou e ganhou. Ao Aves, nas Aves, último classificado. Disse que tinha metido dois dedos. E que isto e aquilo, à sua pala. Só com dois dias, frisou. Seguiu-se o Rio Ave, na Luz, antepenúltimo classificado. Já com mais dias. Empate. Terá metido a mão fechada até ao cotovelo?

Um treinador de futebol só serve para ir falar com jornalistas nas vitórias, porque aí pode alucinar para gaúdio da plateia. Nos empates e nas derrotas, os treinadores não servem para nada e mais valia que ficassem calados. A realidade, isso de eles não passarem de um elemento arbitrário num sistema caótico, é tóxica para o espectáculo.

Nas muralhas da cidade

«Hoje, a linguagem do esclarecimento volta a ser transformada em instrumento de obscurantismo. Esta dinâmica invertida, ou este fator de apropriação indevida, transforma cada acto de responsabilização em “ataque”, cada crítica em “censura”, cada investigação em “perseguição”. A “segurança” torna-se eufemismo para repressão de minorias e “liberdade” significa direito a incitar violência sem consequências. Como um espelho aldrabão que reflete sempre a imagem inversa: o agressor vê-se como agredido, o opressor como oprimido.

Estamos, na verdade, perante uma estratégia deliberada de destruição efetiva, que não é ingénua nem resulta de confusões semânticas. Visa, sim, matar-nos a alegria e os próprios referentes éticos básicos que protegem a humanidade do caos e da autodestruição. Se “discurso de ódio” pode significar seja o que for, então não significa coisa nenhuma. Se “liberdade de expressão” protege igualmente a dignidade humana e a sua negação, então não protege realmente nada. Se a “tolerância” inclui a intolerância, então deixa de o ser. Esta erosão dos fundamentos da política não visa apenas confundir o debate público, mas impossibilitar qualquer orientação ética. Como se alguém trocasse sistematicamente as bússolas de uma cidade inteira: todos os caminhos conduzem a lugares errados, mas mantém-se a ilusão de mapeamento e orientação.»


Graça Castanheiro

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Dominguice

Van Jones, figura popular na esquerda norte-americana, revelou ter recebido um convite de Charlie Kirk na véspera de ter sido assassinado. Esse convite vinha na sequência de uma polémica a respeito do assassinato de Iryna Zarutska, uma refugiada ucraniana de 23 anos cuja vida se perdeu tragicamente ao ser irracionalmente esfaqueada por um afro-americano. Jones foi alvo de muitas ameaças de morte ao entrar na discussão com Kirk, este tendo aproveitado o crime para acicatar o racismo, e esse foi o contexto para a proposta de dialogarem no programa de rádio do influente aliado de Trump. Jones faz uma inequívoca homenagem a Kirk, colocando-o no campo da decência por causa desse convite e da sua prática dialogante com opositores políticos. Significativamente, porém, em nenhum passo do texto deixa um sinal de ter querido aceitar o convite. E aqui podemos apostar que iria recusar, não porque tivesse receio de debater com ele, antes porque o convite era envenenado. Ao ir para o seu estúdio, estaria a transformar-se num suporte da propaganda MAGA pois nada do que lá dissesse teria eficácia argumentativa, sequer retórica, para aquela audiência. O trabalho de edição nas peças que Kirk lançaria faria de Van Jones mais um derrotado no triunfal currículo da estrela Republicana. Obviamente, posso estar completamente enganado.

Onde não perco a aposta é nesta ideia: um dos factores na base do crescimento do Chega está na ausência de debates entre Ventura e pessoas decentes — mas também corajosas. Para tal, porém, o chunga teria de aceitar um formato que o impedisse de boicotar a discussão (o seu microfone ficaria fechado enquanto o interlocutor discursasse). A comunicação social portuguesa não organiza tal porque tem mais alergia à decência do que aos fachos.

Coisas do Carvalho

Tanto Fernanda Câncio como Isabel Moreira fizeram um rasgadíssimo elogio a este artigo do Manuel Carvalho: Manual de instruções para tempos sombrios. E isso coloca-me na aborrecida fatalidade de ir contra a sua opinião, eu que sou convicto e agradecido fã das duas por inúmeras razões.

O texto é um exercício de reconhecimento de um grave perigo para a democracia: Ventura não é só o palhaço que serviu às mil maravilhas para lançar ataques soezes contra o PS e a esquerda em geral; ele, afinal, pode mesmo chegar ao poder e dar cabo desta merda toda. O alerta é meritório, creio ter sido essa a valorização feita por Câncio e Moreira, mas quem o lança não tem cara para botar faladura na matéria. O que resulta no enésimo discurso hipócrita e cobarde vindo de jornalistas que andaram anos, décadas, a repetir contra os Governos do PS exactissimamente o que o Ventura bolça sobre a classe política.

Por ser este fulano uma das minhas irritações de estimação, sendo esta a décima terceira entrada na série “Coisas do Carvalho” (fora os extras), tenho documentado com exaustão o seu contributo para o enfraquecimento da democracia e para o crescimento do populismo. Enquanto director do Público, empenhou-se a fundo nessa tarefa. Os seus editoriais eram invariavelmente demagógicos e sensacionalistas, não se distinguindo nisso dos seus colegas editorialistas, do Expresso ao esgoto a céu aberto. Com frequência, citava o caluniador profissional da casa, atribuindo-lhe estatuto de autoridade moral. O que volta a fazer neste artigo, pois estamos perante irmãos siameses. Ambos encheram o pasquim da SONAE com centenas, se não foram milhares, de calúnias acerca de uma “elite plutocrata” que tinha criado um “sistema tentacular” (de polvo, de máfia). O “capo de tutti capi” deste gangue era Sócrates, claro. E o regime, nas caudalosas e fogosas tiradas desta dupla, estava podre.

Podemos imaginar um almoço entre o Carvalho, o caluniador profissional e o Ventura em que os três, erguendo os copos num brinde efusivo, estariam de perfeito acordo sobre a existência de um grupo criminoso constituído pelos dirigentes do PS, Caixa Geral de Depósitos, Banco de Portugal então dirigido por Vítor Constâncio, Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento, mais quem desse jeito ir buscar. Em Salgado só tocaram quando caiu, como calhordas que são, e mesmo assim apenas pela rama. Estragava um bocado a pintura ir sujar Cascais, dada a fileira direitola que foi alimentada pelo universo BES desde sempre. Esta teoria da conspiração do Sócrates monstro do crime que, montado no PS, iria meter a República no bolso foi dita e repetida à boca cheia na “imprensa de referência” durante anos e anos, sistematicamente, obsessivamente, de forma totalitária. Ventura limitou-se a repetir o bordão.

Por isso, ler agora deste senhor cagadas lacrimosas a respeito do delfim de Passos Coelho, como “Ele foi capaz de instituir a percepção generalizada de um país corrupto, liderado por políticos infames” e “As mentiras mil vezes repetidas tornaram-se finalmente na realidade”, causa-me um sentimento de náusea. Uma náusea breve, visto não ser o Manuel Carvalho, sozinho, o responsável directo por qualquer voto no Chega. Trata-se apenas de um exemplo relevante do que acontece quando o ideal jornalístico é pulverizado pela pulsão sectária. Cresce no espaço público quem melhor conseguir aproveitar esse sectarismo à solta. Contagiante. Inebriante.

RubenAmorim Futebol Clube

Olhando para o mundo, para o que se passa na Palestina, Ucrânia, Sudão, Iémen, Afeganistão, Haiti, na outrora democracia norte-americana, na vaga fascizante que varre a Europa, no Portugal onde Ventura se ri de tudo e de todos e Seguro deverá receber o apoio do PS a menos que surja um milagre, haverá problema maior e mais urgente do que a situação de Ruben Amorim no Manchester United? Não creio.

A coisa é a seguinte, vai aqui em sumário executivo:

– O homem, ainda antes de aterrar em Ringway nos idos de Novembro de 2024, garantiu que de imediato a equipa iria exibir uma “ideia”. Essa “ideia” era sua, pois claro. E as vitórias poderiam tardar, porque é preciso tempo para treinar aquelas jogadas mesmo fixes que resultam em golos, umas, e em defesas estupendas, outras. Mas quanto à “ideia”, isso ‘tava garantido. Porque a “ideia” era dele, estava-lhe acessível, o homem entendia-a, apenas tinha de mandar a rapaziada mostrar a “ideia” no relvado.

– As semanas sucederam-se às semanas, os meses aos meses, com jogos pelo meio. No final da época passada, Ruben Amorim tinha conseguido levar o United ao pior registo em 51 anos no campeonato inglês. Vieram promessas e juras de tal não se voltar a repetir, de regressar à glória já a seguir. Vieram contratações de fama. Começa a presente época e Ruben Amorim já conquistou o pior arranque da equipa em 33 anos de história. Não contente, juntou-lhe a eliminação do MU na Taça da Liga por uma equipa do quarto escalão. Quarto, o tal que costuma ficar abaixo do terceiro.

– Após a recente derrota por 3-0 com o City, o actual treinador do United veio proclamar que não iria mudar a sua “filosofia”. O que é a filosofia? Um conjunto de ideias, bué delas ao molho.

Donde, o jogo de amanhã com o Chelsea, em casa, vai ser um dos mais divertidos à disposição do espectador, gargalhada garantida. Porque tudo pode acontecer, como sempre, mas, aconteça lá o que acontecer, o idealista nosso patrício está fodido. Se perder, é despedido ou despede-se. Se empatar, despede-se ou é despedido. E se ganhar, será despedido uma semana depois quando for ao estádio do Brentford, uma equipa merdosa, empatar ou, o que será mais provável, perder.

A gargalhada não o tem como alvo. Desejo-lhe as maiores felicidades quando vier substituir o Mourinho no Benfica. E merece uns meses de descanso e recuperação após a tortura em que se meteu. A gargalhada é dirigida ao futebol como indústria que leva os adeptos para experiências de alucinação onde se fantasiam a derrotar a ontológica aleatoriedade do real.

Ruben mostra que também é um feroz adepto — no caso, de si próprio.

Miguel, larga o vinho

Não acompanhei a carreira jornalística de Miguel Carvalho, pelo que não tinha dele qualquer opinião. Os elogios entusiásticos de Pedro Marques Lopes a seu respeito, aquando do lançamento do Por Dentro do Chega: a face oculta da extrema-direita em Portugal, mesmo que insuflados por factores subjectivos e pela temática do livro, merecem-me credibilidade. O seu currículo regista prémios de imprensa. Donde, não me causará surpresa se a sua reputação profissional for elevada, ou até muito elevada.

Passemos para as palavras do homem:

«Tenho a tese de que o criador do Chega não foi André Ventura, nem foram essas pessoas. Acho que quem criou o Chega, o que esteve na origem deste partido, foram sucessivos Governos que falharam nas promessas e na palavra dada. É uma coisa que hoje muita gente fala e eu ouvi muito essas queixas, no terreno, por parte de eleitores do Chega, que não concordam, às vezes, com muitas coisas que o André Ventura defende, mas acham que o seu voto de protesto tem que ir para ali, porque têm a noção de que a generalidade dos Governos, nas últimas décadas, falharam as promessas com as quais se comprometeram.

Estamos a falar de coisas muito simples: o desmantelamento do Estado ao longo do território nacional, pessoas que se queixam do posto dos Correios que fechou, do hospital prometido que não foi construído, a estrada prometida que não foi construída, a escola que fechou e agora é a 30 quilómetros, entre outras coisas. Nas minhas conversas — e muitas delas foram muito longas, tenho entrevistas de cinco e seis horas com alguns eleitores, militantes e ex-dirigentes —, raramente aflora, no início, as questões que são as questões da pauta de André Ventura. O que vem primeiro, sobretudo nas zonas de interior, são estas queixas.»

Miguel Carvalho

Isto é uma tese de merda. Da grossa, vinda de um suposto especialista no Chega. Comecemos pelo argumento de que há pessoas a votar no Ventura porque “os Governos“+”nas últimas décadas“+”falharam as promessas“. Três vacuidades ao nível da epistemologia praticada na Feira da Malveira. Mas vamos admitir que o diagnóstico é profundo e rigoroso. E que, na sua lógica, óbvio é não ter existido uma única década, após o 25 de Abril, em que os Governos tivessem cumprido as suas promessas (seja lá o que isto queira dizer). Donde, por que caralho os carentes votantes no Chega não votaram no PCP logo desde os anos 80? Se a motivação para dar o voto a fachos e pulhas é relativa ao “posto dos Correios que fechou, do hospital prometido que não foi construído, a estrada prometida que não foi construída, a escola que fechou e agora é a 30 quilómetros, entre outras coisas“, quem melhor do que o PCP para dar isso tudo e muito mais? O PCP, após o 25 de Novembro, aceitou conviver com a democracia liberal e desenvolveu uma sólida e bela fama de integridade, dedicação aos interesses do povo e qualidade de trabalho na gestão autárquica. Tinha tudo para captar o voto de protesto, inclusive uma fortíssima presença militante no partido e nos sindicatos que fazia com que o seu programa, as suas promessas, fosse do conhecimento de toda a população. Qual a relação do Ventura e do Chega, desde 2017 até à actualidade, com essas questões de investimento local supostamente na origem do voto nos salazarentos? Nenhuma de nenhuma de nenhuma de nenhuma.

Ventura foi lançado em Loures por Passos Coelho. Tratou-se de uma experiência de radicalização originada pelo rancor e revanchismo advindos da perda do Governo em 2015. Passos quis testar um discurso de extrema-direita com a chancela do PSD. Se assim o pensaram, obscenamente o fizeram, para espanto do CDS que teve um acto de coragem e decência ao quebrar a aliança autárquica em Loures. Quem não quebrou foi Passos, que validou e apoiou o discurso xenófobo e racista de Ventura. A partir dessa data, e depois com o Chega como partido autónomo, jamais se desfez a cumplicidade ostensiva entre Passos e Ventura. A que se veio juntar Cavaco, Ferreira Leite, Rui Rio e Montenegro, para só nomear os dirigentes históricos que não só normalizaram um partido com discurso e práticas simbólicas fascistas como o elevaram a parceiro desejado ou consagrado.

E é isto que o Miguel Carvalho reconhece num outro momento da sua entrevista, contradizendo a tese inicial:

«O Chega, obviamente, que atraiu aquela direita mais ou menos ideológica que andava nos extremos há muitos anos, ou seja, toda a direita que andava nas margens do sistema e que não tinha propriamente um partido para escolher — ou um partido com esta força para escolher. Desde neonazis, pessoas das elites financeiras e económicas que antes poderiam estar no CDS e no PSD, e, se calhar, continuam a apoiar na mesma, mas viram no Chega a garantia de que o Estado Social não tem grande futuro e os seus interesses são melhor servidos ali com o espetáculo que tem sido dado e que agrega eleitorado já suficiente para se tornar a segunda força política.»

Portanto, agora o “Estado social não tem grande futuro“, e é exactamente por isso que esses abutres foram a correr para o Chega. Ou seja, os papalvos do posto de correios, do hospital e da estrada prometida estão a dar o seu rico voto a quem lhes vai até esmifrar as pensões e reformas de miséria, deixando-os mil vezes pior. Não faz sentido nenhum, a menos que se admita que os papalvos estão a mentir. Que as suas respostas são para jornalista ingénuo ou cúmplice registar. Que não têm coragem para revelar a motivação mais poderosa que os atrai para o Chega: a promessa de poderem ser eles a roubar, porque o líder tem a bófia e o Ministério Público na mão e não esconde a sua gula rapace. Indo por aqui, a sociologia do crime que se anda a construir a partir das figuras do Chega já apanhadas pelas autoridades ganha outra relevância. Porque é lei arcana, quem mais acusa os outros de corrupção é quem mais inveja a corrupção fantasiada e caluniosa.

É espantoso ver este jornalista de investigação a apagar e branquear a história da ascensão fulminante de um populista circense chamado Ventura. Alguém que tudo deve a Passos Coelho, o responsável pelo seu palco na política. E o responsável pelo seu poder na degradação da comunidade que somos, quando o Pedro quis que a desumanização extrema agitada na retórica da campanha eleitoral em Loures ficasse como espaço legitimado e pronto a crescer. A direita decadente adubou de imediato esse terreno — o fanatismo digitalizado, a ignorância histórica e o ressabiamento crónico vieram preenchê-lo com crescimento geométrico.

«o Chega não terá futuro quando houver, primeiro, políticos que saibam honrar a palavra verdade»

Eis o Miguel Carvalho a exibir-se potencial, ou inevitável, votante no Chega. Onde estão os tais políticos da “verdade”? Não nos 50 anos de democracia, como o Ventura apregoa. Também Cavaco e Ferreira Leite se lembraram disso contra um adversário que sabiam invencível por vias legítimas. Então, trataram de o pintar como mentiroso e criminoso; em nome da “verdade”, pois claro. É preciso não ter a mínima noção do que escreveu Maquiavel para achar que a função dos políticos numa democracia liberal é “dizer verdades”, como se fossem definições do dicionário ou contas de somar e subtrair. E é preciso achar que Maquiavel defendeu a corrupção política como ideal supremo da governação para confundir e misturar o pobre coitado do posto dos correios com o ogre neonazi que gostava de matar uns escurinhos. Todos juntinhos à espera do Messias que lhes vai revelar a verdade verdadinha.

Miguel, larga o vinho.

Nas muralhas da cidade

«O “terrorismo estocástico” é um termo cunhado no início deste século e define-se pelo uso de “linguagem hostil por indivíduos influentes que aumenta estatisticamente a probabilidade de violência sem apelos explícitos.” A cartilha de procedimentos é mais ou menos sempre a mesma. Primeiro, define-se um inimigo. Depois, desumaniza-se: já não se trata de pessoas, mas de pragas, cancros, invasores; wokes, marxistas culturais ou mesmo de sicários. Investe-se na retórica do nojo (politics of disgust); reduz-se o outro a coisa repulsiva, ilegítima, indesejável e perigosa para as sociedades, e que, portanto, é preciso combater.»


Os sicários