Como os anos passam e trazem-nos à memória o tempo passado. Fez ontem dia 18-07-2009, 49 anos que iniciei a minha carreira como trabalhador numa fábrica de móveis. Fiz a 4.ª classe, antes oito dias. Era filho de uma família humilde com cinco filhos, àquela data, hoje tenho mais nove irmãos, sou o segundo filho mais velho e naquela altura o que nos esperava era tentar fazer a 4.ª classe porque o nosso destino estava traçado. Tanto valia ser inteligente, se fosse filho de gente pobre, sabia que tinha as fábricas de móveis à minha espera e ganhava 10 tostões por dia. Dinheiro esse que somado ao do pai e de uma irmã que era criada de servir num senhor Doutor em Santo Tirso, ajudava a minorar o equilíbrio quinzenal; nessa altura recebia-se à quinzena. Era um aluno média alta, mas como referi atrás as condições económicas não davam mais esperanças. Naquele tempo não havia liceus nas proximidades a não ser S. Tirso ou Guimarães. Hoje tudo é perto, antes era uma eternidade para lá chegar. A primeira vez que vi o mar foi num passeio da catequese, de borla, porque não tinha dinheiro para esse fim.
No dia 13 Dezembro celebra-se na minha terra a S. Luzia, mais conhecida como feira dos capões e nós miúdos aproveitávamos esse dia para carregar capões a troco de uma pequena gorjeta. Nesse dia coube em sorte a mim e a outro colega, carregarmos uns capões num percurso de duzentos metros, quando chegamos à viatura, deparamos com um motorista fardado a preceito que meteu os capões na mala do carro. De imediato o Sr. meteu a mão na algibeira e deu-me uma nota de vinte escudos e ao meu colega a mesma quantia mas em moedas, nessa altura retirei a mão pois não acreditava naquilo e tive medo de receber tanto dinheiro – o habitual era dar vinte e cinco tostões e em trajectos mais longos. O Sr. fez questão para nós aceitarmos o dinheiro que era dado com todo o prazer. Passado pouco tempo encontrei o meu pai dei-lhe o dinheiro, nesse ano fui padrinho de uma minha irmã e disse ao meu pai para lhe comprar uma prenda. O meu pai ficou admirado e disse-me deve ser um santo quem te deu o dinheiro. Nessa altura o meu pai não ganhava mais de vinte escudos por dia. Aos trinta e cinco anos andei em explicações, autopropus-me a exame do sexto ano e num grupo de vinte e sete fui o único a passar a tudo. Acabei por ficar por aí pois a minha vida familiar complicava-se, saía do trabalho ia para explicações jantava tarde e a minha família era prejudicada. Hoje tenho pena e que inveja, no bom sentido, tenho de você e Valupi por escreverem tão bem. Peço desculpa por este comentário não sei se o vão publicar, mas faz bem às vezes desabafarmos.Cumprimentos
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Oferta do nosso amigo Manuel Pacheco
É das coisas mais belas que li no Aspirina.
A mais bela.
Belo texto. Também concordo, só agora (9h 46m) aqui cheguei e fico contente por este texto ter surgido num comentário a um post meu. Houve aqui entendimento – também eu ouvi dizer com aquela mesma idade «Os filhos dos motoristas não vão para o liceu!». E não fui. Fui para a Escola Técnica…
Belíssimo texto, caro amigo (sim que a gente sente logo amizade por quem escreve assim…)
Eu sou de 55, do Porto
Os meus pais eram “remediados” como se dizia então, por isso pude ir para o liceu e mais além…
Mas nunca lá aprendi a escrever assim :)
Obrigado.
e está impecavelmente escrito, a vida é a escola.
Muito bem, é bom ensinar como era a quem não sabe e relembrar a quem esqueceu, propositadamente ou não, o que foi. Os exilados dentro da sua própria Pátria também existiram e ele foi de uma violência feroz. Mas vencemos!
Obrigado.
Essa inveja positiva é a inveja positiva que ainda hoje sinto quando vejo um jovem ir para Belas-Artes com o apoio dos pais, da família; mas tento, de uma maneira ou outra, recuperar o tempo perdido.
Filho de gente pobre. Ao me referir a essa situação nunca me quiz intitular como um miúdo diminuído ou com uma infância triste. Pelo contrário era alegre, dado a muitas traquinices e um pouco rebelde. Todos os dias fazia várias asneiras só mais tarde depois de a minha mãe me dar uma sova, com uma escova de escovar roupa, é que vinha a reconhecer o mau porte que tinha tido.
Nas férias escolares saía de manhã para a brincadeira, sabia que ao meio dia menos dez tinha de estar em casa para levar o comer, se é que aquilo se podia chamar comer, ao meu pai que trabalhava numa fábrica de moveis, como serralheiro civil. A minha mãe vinha ao meu encontro porque me atrasava sempre. Não havia relógios, regulava-me pelo sol, nos dias de sol, mas ele às vezes tramava-me. O meu pai sabia das dificuldades e com receio que quando chegasse a casa não tivesse nada para comer, deixava-me um resto que eu ali mesmo tragava. Com o estômago remediado encontrava os colegas de brincadeira, íamos acabar o jogo que foi interrompido. Lá continuava o Manel até ao fim da tarde. Tocava o canudo da fábrica em que meu pai laborava a dar sinal do fim do dia de trabalho. Pegava na cesta para chegar a casa ao mesmo tempo que o meu pai e assim evitava que a minha mãe me batesse à frente dele. Não valia de nada às escondidas do meu pai levava uns beliscões e mais tarde sabia o que me esperava. Escova de escovar roupa.
Hoje várias vezes me recordo que a minha mãe me batia com frequência umas eram bem merecidas outras era para aliviar a compressão da vida que levava.
Que saudades tenho dela e da escova de escovar roupa. Se hoje me fosse dado a escolher quais os pais que queria têr, escolhia-os a eles, mesmo com todas as dificuldades pelo que passei.
Um ben-haja para eles. Pelo que passaram na terra, julgo que estão no céu. Acho que Deus é justo.
Cumprimentos.
:-)
É com imensa imensa alegria que li este texto.
Parabens
Daniel mota
Parabêns tio.
Embora já soubesse da historia, fiquei mt emocionada ao ler este texto.
Temos escritor na familia.
Beijos e bem haja para ti.
Que coraçoes bons existem aqui!
Tenho mt orgulho em ter um pai assim, nao esquecendo claro da minha mae, q sem ela o meu pai nao era o mesmo….Tenho (temos eu e o meu irmao) os melhores pais do mundo.
Sim, isto merece um espaço para si mesmo. Tanto pela estória em si como pelo estilo de escrita.
Caro Manuel Pacheco: há muito tempo que não lia algo de tão cativante.
Sempre apreciei os comentários do Manuel Pacheco aqui no “Aspirina”. Mas este texto toca-
-nos a alma, como um conto da nossa infãncia, deixa-nos felizes com lágrimas, porque agora sabemos que as privações materiais não o impediram de ser o cidadão excepcional que é. E com uma escrita simples e bela! Também quero mais desta literatura…