Li no Acidental um simpático texto que me era directamente endereçado,em resposta a um post meu. Infelizmente, Henrique Raposo não se referiu a nenhuma das minhas críticas e, pelo que escreveu, nem sequer leu o texto.
Eu não critiquei Henrique Raposo por usar escritor liberais, eu apenas disse que ele não percebe nada de autores marxistas, TAL COMO EU TERIA DIFICULDADE EM CRITICAR UM LIBERAL, USANDO OUTROS PENSADORES LIBERAIS, QUE EU CONHEÇO POUCO.
Sobre as minhas críticas de substância, Henrique Raposo não respondeu a nada. E mais grave, não me enviou a listinha de obras para me libertar do Espada.
Junto deixo os dois textos para as restantes pessoas ajuizarem.
Caro Nuno Ramos de Almeida,
Compreendo a sua indisposição. Um conservador a escrever sobre Negri sem o insultar?! Sem o apelidar de terrorista?! E, ainda por cima, usando autores marxistas (Amin)!?
Caro, critiquei Negri fazendo apenas duas constatações óbvias para quem conhece o pensamento de esquerda do século XX: não é novidade e já tem muito pouco de marxista. E não sou eu que o digo. Os verdadeiros neo-marxistas como Samir Amin fizeram-me esse favor. Acho curioso que me critique por usar… autores liberais. Mas quais autores liberais? Tive o cuidado de colocar o meu texto a girar em volta da argumentação de Amin. Mas é isso que o irrita, não é? Ao usar autores de esquerda para criticar um autor de esquerda, sabia que iria causar algumas cócegas, quer à esquerda quer à direita. Estava curioso. Obrigado pela confirmação.
Compreendo que não goste que critiquem os seus autores. Tudo bem. Mas a sua atitude revela uma velha arrogância de esquerda: um autor de esquerda só pode ser criticado por alguém de esquerda. V. não critica o meu argumento. Diz que é apenas um desastre. E porquê? Porque ousei dar uma visão diferente da sua – e da esquerda em geral – sobre um autor da moda. Pior: porque sou de direita e, portanto, a minha visão será sempre um desastre quando a questão é um autor como Negri.
Agradeço esse desdém, essa aura de superioridade. Vindo de um esquerdista, é um elogio e a confirmação que fiz alguma coisa certa. Se Utopia totalitária é pleonasmo, esquerdista humilde é contradição. Essa atitude de provedor dos leitores é gira. Fico satisfeito por verificar que V. sinta a necessidade de avisar as massas que a minha visão não serve. O melhor elogio, meu caro. O melhor. E agradeço que vá comentando tudo aquilo que escrevo. É bom ter um eco. E dá para afinar a pontaria.
HENRIQUE RAPOSO
Caro Henrique Raposo,
Compreendo o seu dilema: você nunca perdeu tempo com autores marxistas (havia sempre tantos livrinhos com capinhas coloridas para ler). Acontece-lhe o que me aconteceria a mim, se me pusesse a criticar um qualquer liberal, citando outros liberais: não dominaria suficientemente a matéria. Mas isso não o deve impedir de se precaver e de evitar fazer figuras tristes nas páginas dos jornais. A sua crítica sobre o último livro de Negri na revista do Diário de Notícias é um desastre. Para começo de conversa, deixo-lhe algumas precisões e uma lista de compras:
1. Ao contrário do que sucede nos conservadores, não existem “neo-marxistas”, muito menos tipos representativos dessa suposta corrente, que você com tanta graça identificou como sendo o Samir Amin e o Immanuel Wallerstein . Mesmo no “Ocidente”, os marxistas são muito variados. Recomendo-lhe que leia urgentemente um livrinho pequenino e velho, existe em inglês e em português, de Perry Anderson, “Considerations on Western Marxism”.
2. Dizer que para Negri o mundo está reduzido ao Império e à Multidão e que nos processos entre eles e na história não existem homens e ideias é confundir Negri com uma vulgata de Althusser. A corrente em que Negri se insere, o “operarismo”, pode ser criticada pelo inverso, por um certo subjectivismo. Veja: no marxismo clássico, os Modos de Produção (Feudalismo, Capitalismo, etc..) só são substituídos quando as Forças Produtivas entram em conflito com as Relações de Produção. Esse conflito, em grande parte das correntes marxistas, tem uma origem quase tecnológica: os capitalistas que concorrem entre si para obter a sua fatia de mais valia, vão modernizando progressivamente as empresas, num processo de desenvolvimento tecnológico que correlativamente provoca uma maior concentração e centralização do capital. A produção torna-se cada vez mais social, enquanto a posse dos meios de produção é cada vez mais individual. Essa situação, no capitalismo, tende a despertar a consciência de classe do proletariado que passa duma consciência individual para uma consciência de classe, com implicações na acção política. É essa mesma classe que encabeça a contestação ao capitalismo. Desculpe a vulgata, mas você precisa de um curso básico para poder não escrever disparates.
No “operarismo” o processo tem outra interpretação:
Escreve Tronti, um dos fundadores do “operarismo” com Negri: “ Nós consideramos, também nós, primeiro o desenvolvimento capitalista e só depois as lutas operárias. É um erro. É preciso inverter o problema, mudar o conceito, e voltar a analisar: e o começo é a luta da classe operária”. Para o “operarismo”, a luta de classes é que explica a evolução tecnológica do capitalismo e a passagem do Fordismo e do Taylorimo para o pós-fordismo e pós-taylorismo só pode ser esclarecida à luz da luta conduzidos por segmentos da classe operária. Para esta corrente, a classe operária não é una, está em permanente recomposição, e não se opõe da mesma maneira ao capitalismo.
3. Aqui entra o problema da “alienação” já presentes nos escritos de Marx, mas que retomada pela “Escola de Frankfurt” (não, não são neo-marxistas) do qual Marcuse faz parte. Para Marcuse, como para outros teóricos há uma quase impossibilidade da revolução porque a classe operária se encontra inserida no sistema, presa às suas prestações do carro e da casa e já tem algo a perder. Neste contexto há camadas mais capazes de contestar o sistema, dada a sua situação de precariedade. Embora extremado em Marcuse, esta preocupação já existia em muitos pensadores anteriores e até em parte das obras de Marx, nomeadamente nos Manuscritos de 1844, em que Marx explica os mecanismos pelos quais o trabalho se torna estranho e alienado do trabalhador. Mesmo no Capital, o problema da alienação está sempre presente: “na realidade a relação capitalista dissimula a sua estrutura interna na indiferença total, exteriorização e alienação, nas quais coloca o operário em relação às condições de realização do seu próprio trabalho (…) o operário comporta-se perante o carácter social o seu trabalho (…) como se tratasse de uma potência estrangeira.”.
Como vê, a coisa é bastante mais complexa do que o seu artigo deixa antever. O resto da sua crítica sobre Negri, fica para uma outra altura, quando eu me apetecer toturar os leitores deste blogue. Claro que ficam por discutir as incursões e Spinoza, a perda de soberania dos Estados Nação, a ideia de multidão. Sobre o facto de Negri perder tempo a discutir o amor, sempre lhe digo que há coisas piores, e o homem é um filósofo, há uma longa tradição de discussão filosófica sobre essa matéria, e se até o Jon Elster que é considerado de uma corrente de marxismo analítico tem um livro sobre paixões, porque não o pobre Negri…
Sugiro-lhe para final de conversa que adquira dois livros com urgência: o “Dictionnaire Critique du Marxisme” organizados por Georges Labica e Gérard Bensussam, editados pela Presses Universitaires de France e o mais acessível (há em inglês e português) “Dicionário do Pensamento Marxista” editado por Tom Bottomore, existe uma edição da Jorge Zahar Editor. Estes livrinhos não substituem a leitura dos originais, mas evitam que se escrevam disparates.
Caro Henrique Raposo, boas leituras e mande-me com urgência uma listinha de livros neo-cons, talvez eu veja a luz. Tenho lido o João Carlos Espada com afinco, mas ainda não consegui.
NUNO RAMOS DE ALMEIDA
Tens sorte. No outro dia, manifestei a minha sincera admiração pela forma como ele escolheu para “facto revelador de 2005” um evento que, a fazer fé no exército americano no Iraque, nem sequer aconteceu… e o bom Henrique não me respondeu.
É bonito de ver a defesa corporativa da classe! Unidos contra a Direita venceremos. Malandros!
Camarada Nuno,
Confesso que adorei a tua lição de marxismo ao Raposo, que é aliás o estado alma que de mim se apodera quanto leio muitas outras na mesmo estilo e humor de gente que não se cansa de martelar a vida inteira sem ser capaz de provar porra nenhuma de utilidade para a compreensão deste mundo. Se, como penso, e parece-me que já o disseste neste blogue, és Marxista, também não vejo muito bem por que é que discordas do homem quando ele fala de neo-marxismo. Então já se acabou com a liberdade de podermos admitir por exemplo que Cristo não era Deus, mas apenas um homem, de rever, de aceitar os pontos bons e deitar o resto no lixo, ou vice-versa? Mesmo assim, tendo presente a enorme dificuldade que se tem quando se quer saber um pouco daquilo que não existe de acordo contigo, é muito a medo que te pergunto: não serás, tu também, um neo-marxista? Diz-me que não e convidas-me a perguntar-te se estás disposto a seguir, ou a cumprir à risca, todos os ensinamentos do profeta, incluindo as famosas predições do Manifesto que ficaram nas águas de bacalhau que todos sabemos. Sabes o que quero dizer, espectro do COMUNISMO, rátátá, rátátá.
Pensando bem, o melhor se calhar seria não te mandar esta opinião importuna. Mas já que comecei, acabo, e ajudo-me da filosofia materialista ao alcance dos desiluminados. Elogios ao Marx e ao marxismo já tenho ouvido e lido de muita gente, incluindo grandes homens de estado ao serviço da tal Casa Branca de má reputação. De lordes, banqueiros, generais e até industriais socialistas está o mundo capitalista a abarrotar, constato com tristeza. O que não temos são operários de esquerda politicamente arregimentados sem remela nos olhos para repararem nestes senhores.
Esqueçamos, admirando, essa descoberta fantástica da mais-valia que funcionou como uma lamparina a iluminar as vielas escuras dos cérebros dos operários explorados do século XIX. Coitados, nem eles, pobresitos, faziam ideia do enorme segredo capitalista que os amarrava a salários de merda! Nem o suor, os calos, as doze horas de trabalho por dia e os filhos de 10 e onze anos a trabalharem ao seu lado. Veio Marx , fez-se a luz e nunca mais parámos de rezar.
E a minha reza é esta. Para mim, Marx era, foi, sobretudo da cintura para baixo, tão bom quanto Cristo. Um comia a Madalena em várias posições e o outro não se ficava atrás com a sopeira quando a aristocrata com quem casou (aristocrata? sim, aristocrata, disse bem, até pensava que me tinha enganado, era o Trotsky é que era casado com a filha dum banqueiro) se sentia mal ou tinha dores de cabeça. Não me consta que qualquer deles tivesse procurado um trabalho regular que os habilitasse a inscreverem-se num sindicato desses tempos e ao mesmo tempo sustentar uma família numerosa. Sortudos filósofos. Há sempre gente rica com uma gamela na mão para os ajudar (dai as tuberculoses que afectam as criancinhas dos pais que não lhes ligam nenhum porque passam os dias a filosofar a melhor maneira de salvar a humanidade) e encorajá-los na histórica missão para que foram talhados ou convencidos ou iluminados. Serem judeus – a tal família das passeatas por todo o lado que não se livra da fama de ter criado o mesmo capitalismo que muitos elementos dessa mesma famílias depois se propuzeram destruir com montes de conversa e barbaridades, espécie de trabalhar para o boneco – não faz abrir a boca a ninguem de espanto porque já andamos a ser lembrados disso há muitos anos. As religiões que nos têm incomodado vêm todas dessa banda ou dessa macieira.
E quem é? O Negri, tu ou o Marx que diz que a classe operária encabeça a luta contra contra o capitalismo? Pode encabeçar. Não duvido, hoje chove e amanhã faz chuva. Mas também não duvides que meu avô foi soberano dum país da Escandinávia e depois estùpidamente resolveu emigrar para Portugal, tanto assim que quando me corto a barbear ainda vejo uns laivos de azul no meu sangue. Se isto não te convence, vai dar uma vista de olhos à lista das figuras que compunham os órgãos da chefia politica e policial da ditadura incial do camarada Lenine e diz-me quantos operários é que lá vês. E depois conta-me. Estou aberto à reconversão sem dor.
Excelente post! Sou sobretudo adepto do rátátá.
Agora seriamente, limitei-me a alertar o Henrique Raposo que a sua leitura e conhecimento dos marxistas (modernos, antigos e o próprio que afirmava, como sabes, que não era Marxista) era muito superficial. E recomendei-lhe a compra de dois dicionários: obras que dão sempre jeito, cá em casa há vários desde Aritmética até à Zoologia, passando por religiões como a psicanálise.
Estou ciente que o Felix Djerzinski era um péssimo proletário. Sobre esta “opção de classe” há uma anedota da época que conta que um diplomata soviético encontrou-se com o seu homólogo britânico que lhe confessou ser filhos de operários, e lembrou o soviético que ele tinha menos autoridade de falar sobre os operários, visto ser de origem nobre. O soviético sorriu e disse: “tem toda a razão, ambos traimos a nossa classe”.
No meu caso pessoal, “neo” não sou muito: caminho alegremente para jovem agricultor e tirando nos maunuais do Piskonov nunca detectei uma corrente única de pensamento marxista. E, também, não sei se a classe operária encabeça qualquer coisa, mas como dizia um marxista-leninista-pós-moderno (não sei se os hífenes estão ideologicamente correctos) apenas constato que é hoje mais fácil admitir que este planeta corre alegremente para a destruição do que as pessoas aceitarem que há necessidade de conseguir um modelo de sociedade radicalmente diferente.
Finalmente, devias saber, até porque te denominas Andronicus, que sem dor não há prazer…
Ora aqui está aquilo a que chamo ténis de mesa entre homens de fraca cultura.