
Nessa altura eu tinha namorada, e escrevia num blogue textos de circunstância. Mas a vida não corria bem. Eu há sete anos à procura dela, da vida e da namorada, e ela a persistir em esconder-se. Era uma teimosia. Eu a entregar-me cada vez mais aos textos, ela a desvanecer-se cada vez mais.
Um dia disfarçou-se de comentadora, atrás duma alcunha graciosa, sugestiva. E vinha assídua, calorosa, vinha sempre fiel, estava sempre na caixa dos comentários, quando lá fazia falta. Trazia a sua nota, deixava um incentivo, era a leitora melhor que pode haver.
Até que não resistiu e apareceu-me no e-mail, a duras penas descobrira o endereço. Exagerou na sua admiração, e sussurrou-me, no fim, que dispusesse. Eu culpei algum amigo inconfidente e fiquei sossegado.
Assim passámos a viver a três. A namorada a esvanecer-me em casa, eu a escrever textos de circunstância, e a minha fiel leitora a comentar. A própria namorada lhe sentiu a persistência – tens aqui admiradora apaixonada! – fez-me notar certa vez. De horas em quando ela aparecia no correio, porque há coisas que não cabem na caixa dos comentários. E eu deixei andar por si aquele enleio, a imaginar feitiços na literatura, a convencer-me que o verbo pode operar maravilhas.
Um dia, ao fim de sete anos, acabou por dissipar-se a namorada. Foi-se embora, exasperada, por tanto se esconder. E eu abri a corte à minha admiradora, subindo a escada emotiva costumeira. Ela acompanhava-me a escalada com reticências discretas, e sugestões nebulosas, e os véus translúcidos que um bom pudor não dispensa. As coisas chegaram a aquecer, em bom rigor havia incêndio à vista.
Certa noite chegaram dois e-mails, iguais rigorosamente. Um vinha da antiga namorada, o outro da virtual admiradora. Avisavam que eram ambas uma só, e vinham despedir-se para sempre.
Eu sorri, pus-me a pensar na vida. Se ela não fosse tão curta, quem ficava outros sete anos era eu, a escrever num blogue textos de circunstância. Não chegariam para convencer Labão. Mas ao menos acreditava eu em feitiços da literatura. E vivia a confiar que um bom verbo opera maravilhas.
Jorge Carvalheira
Meu Caro Jorge
Está aqui todo o perfume habitual que rescende daquilo que escreves. Mas fica-se com a impressão de que pensas que o pobre do Jacob teve de esperar outros sete anos por Raquel. Nada disso. Labão exigiu que ele casasse com Lia, e, mal acabada a semana de núpcias, deu ao rapaz aquela que ele verdadeiramente amava. Viveram os três felizes mais ou menos, até que Raquel, que parecia estéril, deu a Jacob a sua serva, para que ele gerasse nela um filho, que haveria de ser acolhido nos joelhos dela, no acto de nascer, e assim seria considerado seu. Raquel acabou por ter filhos, e Lia, que entretanto deixara de os gerar, também deu a serva a Jacob para ter outro filho. No entanto, com a ajuda de umas mandrágoras, a rejeitada voltou a ser mãe.
É verdade que Jacob serviu outros sete anos, mas já tinha recebido o prémio que pretendia. Creio que é desta história que resulta a autorização de Maomé para que um muçulmano possa ter quatro mulheres. Quanto ao facto de ele haver tido treze, isso deveu-se ao chamado privilégio do profeta. Quem lho concedeu, não sei…
Fica-se com a impressão de que penso, Daniel.
Mas é uma impressão atribulada.
Que eu não penso. Escrevo, se o consigo. História não é comigo.
bem, independentemente d ser (ou ñ) fictício, prende-nos do início ao fim!
:)
Bravo, Jorge. Sete vivas.
Espectacular :-)
O pastor de Labão que beijou Raquel. Bela ilustração.
belíssima história, jorge. já me apareceu um rejeitado, mas, felizmente, reconheci-o debaixo das vestes e não lhe passei cartão. as mulheres são mais hábeis, já se sabe… e tramadas.
Este Jorge é incrível! Pois eu consigo pensar sem escrever, mas escrever sem pensar?… Nem pensar!
É giro. Faz lembrar, de longe, o “You’ve got mail”. Como a net proporciona blind dates com… a pessoa ao lado.
Uma história mt bem contada. Dava um (bom) filme. Um final só, mas quantos não são?
Criamos um Segundo Blog onde iremos colocar os Congressos, formações… na área da Saúde. Aproveitamos para convidar uma passagem pelo Cogitare para o avaliar… Ainda está em fase inicial e a construção do template ainda requer mais um tempo.. mas Passem por lá!
Nesta altura eu tinha um companheiro com quem compartilhava uma casa e escrevia num blogue textos que não eram de circunstância. Mas a vida não corria nada bem. Há dois anos já (segunda tentativa) que eu o procurava a ele, ao namorado, mas ele não me via. Era um sofrimento. Ele a entregar-se cada vez mais aos textos e eu a tentar encontrá-lo.
Um dia disfarcei-me de comentadora, atrás duma alcunha graciosa, sugestiva. E vinha assídua, calorosa. Vinha sempre fiel e estava lá quando fazia falta.
Sabia tão bem quando lhe fazia falta…
Quantas vezes me deu a ler os textos antes de os enviar, não à espera de aprovação, claro. Talvez partilha, nunca soube.
Deixava-lhe uma nota, um incentivo, um afecto que lhe sossegasse a alma. Urgia que terminasse uns escritos antigos e muito belos.
Assim passamos a viver a três: eu, ele e eu.
De horas em quando aparecia no correio, porque há coisas que não cabem na caixa dos comentários.
Um dia, estando ele ausente, parti. Doeu e mais ainda porque via escritas as mesmas palavras que já me haviam sido ditas. Quando? Já nem lembro. Há muito concerteza.
E creio que ele se apaixonou… por mim… Que ironia…
Mas certa noite enviei dois e-mails, rigorosamente iguais. Ambas eram a mesma pessoa e era chegada a hora de nos despedirmos para sempre.
Ele, tem o dom maravilhoso da escrita e não se devia perder comigo.
Felicidades Jorge Carvalheira
Daniel de Sá,
Fico com a sensação de que está um pouco perdido na história.
Talvez consultando a Bíblia no primeiro livro, Génesis a partir do versículo 29.
Certo dia encontrando-me com uma terrível dor de cabeça, uma amiga sugeriu-me aspirina. Vindo eu à procura dela, deparei-me com a B!
Foi cura instantânea! Deliciei-me com este blog. Desde então, quando volta a terrível dor, eu corro para a B.
Aquele que escreve, o poeta talvez, grande dificuldade se lhe apresenta em Ver (ler com os olhos da alma )e Amar o Evidente. Para tal, nao precisa de todo ser vidente, mas sim audaz para deixar-se em Harmonia Viver, amando a três: a ele, a mim e à poesia.
Belo texto Jorge Carvalheira!
Anonymous
Eu, que todos os dias olho perplexo para o mundo, desconhecia este inesperado grau de perplexidade.
É no que dá confundirmos o género humano com o Manuel Germano (Mário de Carvalho).
E, último comentário meu, é realmente verdade haver coisas que não cabem na caixa dos comentários.
Creio que não me perdi, meu caro Anonymous.
Da Bíblia dos Missionários Capuchinhos:
“Labão respondeu: «Aqui não é costume dar a mais nova em casamento antes da mais velha. Terminada a semana desta dar-te-ei a outra, sua irmã, sob condição de me servires mais sete anos.»”
Da Sagrada Biblia da Biblioteca de Autores Cristianos:
“Labán le respondió: «No es en nuestro lugar costumbre dar la menor antes que la mayor. Acaba esta semana, y te daré también después la otra por el servicio que me prestes otros siete años.»”
Daniel de Sá,
As minhas desculpas, perdido estava eu.