O festim dos luditas

Voto numa das freguesias mais populosas do País, e fui lá marcar um voto anónimo por volta das 5. Tirando a estranha ausência dos vendedores de castanhas, estava o ambiente normal de outros actos eleitorais. Dentro do pavilhão escolar onde funcionava a Junta de Freguesia, porém, havia confusão maior do que o costume, resultante de uma bicha com algumas 50 pessoas que afectava a mobilidade naquele espaço exíguo. Ao entregar o boletim à mesa, ouvi o diálogo em que uma eleitora sexagenária (?) descobria que tinha de se deslocar à Junta, a funcionar no andar de baixo, para descobrir onde conseguiria votar. Ela respondeu que não o faria, que já lhe tinha custado a deslocação quanto mais ter ainda de estar à espera. A presidente da mesa despachou-a com indiferença, largando um impaciente Pois, lamento, mas nós aqui não podemos fazer nada. Nem sequer a tentou convencer a aguentar o último esforço para poder cumprir o seu direito, tratou-a ao pior estilo do funcionalismo público e revelando uma absoluta ausência de espírito republicano e dever de cidadania. À saída, nos grupos que estavam à conversa ou se afastavam pelo passeio, ouviam-se comentários de protesto contra os atrasos e confusão resultante.

Para além daqueles que não votaram apesar de terem ido até à assembleia, muitos outros ficaram em casa por lhes terem pintado retratos de caos em primeira mão. Não sei se será possível fazer um cálculo com alguma legitimidade científica acerca do impacto dos problemas técnicos na abstenção, mas mesmo que só tivessem afectado um eleitor continuariam a ser inadmissíveis. O que sei é que uma parte do problema teria solução simples: aumentar os pontos de informação nos locais de voto. É que bastava alguém com um portátil e uma ligação à Internet, não parece que as Juntas de Freguesia tivessem dificuldade em montar tal extensão aos seus serviços. Quanto à ausência de uma campanha informativa que preparasse os eleitores para os problemas que se verificaram, parece agora óbvia a sua necessidade.

Nas próximas horas, e dias, ouviremos ataques ao Simplex, ao Cartão de Cidadão, à Internet, aos computadores, à electricidade e à água canalizada, obras maléficas do Governo. Sócrates será acusado, enfim, de ser um dos principais responsáveis pela civilização – e isso, convenhamos, não está muito longe da verdade.

9 thoughts on “O festim dos luditas”

  1. Por acaso, o facto do Cartão de Cidadão não incluir o número de eleitor, deve-se ao Costa. O António. Mas, não quero daqui deduzir que a culpa é do PS. Trata-se da tradicional incompetência técnica dos portugueses.

  2. Boa noite,
    Se até no Alentejo profundo a junta de freguesia da minha terra tem um computador …o que se passará na capital do ex-império ?
    Quanto ao nº de eleitor falo por mim. Há 2 anos e meio quando saí da capital para o Alentejo alterei todos os meus registos pessoais ( cartão cidaão, carta de condução, NIF, etc ) e profissionais ( NIF, registo comerical, segurança social,etc da minha empresa ). Correu tudo bem. Não demorou nada mais de 3 semanas.
    Voltando ao nº de cidadão : recebi uma carta do MAI, pouco tempo depois de ter o Cartão de Cidadão, com o respectivo nº e na qual solicitavam, se houvesse algum erro, que eu os informasse.
    Mas isso devo ser eu que sou organizado.
    Quanto a ter havido, hoje, uma avaria no sistema informático …são os riscos da civilização , que foi inventada pelo Sócrates, grande malandro.

  3. Voto numa freguesia também com muita gente. Fui depositar o meu voto por volta das 11:30, sem saber do cartão de eleitor, levado certamente pelos duentes nocturnos que se divertem a esconder coisas em minha casa. No gabinete de apoio, 3 pessoas em bicha, 1 minuto de espera, computador online, sorriso compreensivo, resposta na hora. Perfeito.

    Isto, apesar do malandro do Sócrates, não é tudo mau.

  4. Lamento desiludir os defensores de Sócrates (não é a personagem que está em causa!) mas o sistema informático não funcionou na minha freguesia e havia dezenas de pessoas na Junta a perguntarem o seu (novo) número de eleitor, pois alguém se lembrou de alterar os antigos números a quem possuia um novo Cartão de Cidadão. Foi o meu caso e não fui informado de nada. Em qualquer país desenvovlvido e onde o estado respeita os seus cidadãos, o CNE local envia em tempo útil uma informação escrita para todos os recenseados e quando chegamos ao local não há problemas. Esta é a diferença entre os deslumbrados da tecnologia que pensam que todos os portugueses tem internet em casa e sabem utilizar os SMS. Existem 10% de portugueses que não sabem ler nem escrever e 45% são analfabetos funcionais. Ontem havia dezenas de idosos, que voltaram para casa, pois não estiveram para apanhar frio para se deslocarem às Juntas e esperarem nas filas pela informação. Esta a questão central: os cidadãos não são respeitados neste país e os comentadores pensam que é um ataque ao primeiro-ministro. É a cidadania, estúpido!

  5. Portugal tem essa característica fantástica de nunca ninguém assumir a responsabilidade por nada. No Domingo algo falhou e impediu que algumas pessoas votassem. Who cares… sigamos em frente. Que saudades da terrinha :)

  6. Não há SIADAP algum que ponha na ordem a irresponsabilidade e a incompetência endémica dos portugueses. Cuidado com a tecnologia avançada nas mãos calejadas de um tractorista: não só não consegue fazer nada com ela, como ainda despista o tractor e atropela o informático…

    (este comentário foi escrito por um finalista da 4ª Classe em 1969)

  7. Que alguém tem de ser responsabilizado, disso não haja dúvidas, mas não podemos procurar bodes expiatórios que irão sair do MAI ou da CNE para outro ministério.
    Nos últimos anos, a necessidade de mantermos a CNE tem sido quase nula. Domingo foi mais um exemplo. A CNE nunca fez mais nada para além da actualização de dados de recenseamento, preparação de actos eleitorais e fiscalização dos mesmos.
    Hoje, essa fiscalização já não existe. A actualização dos dados de recenseamento ou é feita automaticamente com a actualização de dados do cartão de cidadão ou através das autarquias locais, que posteriormente, só têm de informar a CNE. E o que se passou no Domingo mostra que a preparação também não existiu.
    Mais do que um sistema que nos foi impigido por “ai-tão-modernos-que-somos” sem haver a devida capacitação para o utilizar, houve uma falha enorme de um organismo estatal, pago pelo dinheiro dos contribuintes (que, por acaso, alguns deles até podem votar).
    A CNE já tem vindo a ser posta em causa desde a re-eleição de Guterres, mas lá se tem mantido, como um belo sítio onde cultivar boys e girls partidários (esquerda, direita, PS e PSD, não interessa). As actuais funções da CNE podem muito ser distribuidas e articuladas entre uma secretaria menor no MAI e as autarquias locais, acabando-se com um fundo de despesa do Estado.

    O meu caso prático: estive numa destas mesas de voto. Só duas pessoas não votaram na “minha” mesa por não estarem lá inscritas. Um, tinho mudado de morada depois da actualização dos cadernos, por isso votava no sítio onde estava ante. O outro, mudou para outra mesa por qualquer razão inexplicável. De resto, soubesse ou não o número de eleitor, todos poderam votar desde o primeiro minuto de abertura das urnas graças às maravilhas da tecnologia que são uma base de dados dos eleitores por ordem alfabética, papel e uma impressora. Mérito ao presidente de Junta, muito mais bem preparado que qualquer agente da CNE.

  8. Valupi, a nossa civilização e seus hipotéticos incautos malefícios – pese embora a possibilidade de ser resultante de um conjunto de acções concertadas (consciente e motivada, condições básicas para o aparecimento daquela) do engenheiro Sócrates -, não se conhece a si mesma. Não se analisa, nem procura olhar para dentro de si mesma a não ser quando com isso ganha alguma coisa. Egoísmo a quanto obrigas a ser transmitido desde tenra idade, porque tolo é aquele que estende a mão a um desconhecido e se prontifica a dar um pouco de si. Louco, gritam-lhe de todos os lados. E ainda que movido por uma força extrema e autónoma, como resistir à pressão da maioria? Logo, é ou não muito mais fácil culpar quem faz alguma coisa, ainda que contestável? Livra-se a “água do capote” que os dias já de si se apresentam pesadíssimos…

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