Longe da Dinamarca

Em matéria de escândalos, o maior de 2017 (até agora, mas ainda há tempo para superar a marca) na categoria imprensa é o da publicação de excertos de um suposto relatório de um suposto serviço de informação militar pelo Expresso. Tudo no episódio tresanda a golpada política, uma repetição da “Inventona de Belém” no que ao intento de ataque político e promoção de alarme público diz respeito. Primeiro, não compete a qualquer serviço de informação, militar ou civil, estar a coligir e tratar opiniões estritamente políticas e de natureza subjectiva. Segundo, mesmo que elas sejam inclusas nalgum relatório, serão sempre como apêndice de contexto e sujeitas ao sigilo institucional que justificará a sua recolha. Terceiro, a decisão de fazer chegar a jornalistas um relatório secreto que vai ser explorado sensacionalmente como arma de arremesso contra o ministro da Defesa configura um crime. Se não for crime já com moldura penal aplicável, de certeza que ficaremos a precisar de uma. Porque quem tal fez expôs material relativo à segurança nacional a quem não tinha autorização para o consultar, pode-se até esquecer o uso que depois foi feito do mesmo embora seja uma agravante.

As explicações dadas pelos responsáveis do Expresso ficam como um monumento à desonestidade intelectual, expõem impante aversão ao código deontológico da profissão. Agarraram-se à prova de terem na sua posse 63 páginas escritas por alguém, e que nelas estavam realmente as passagens que resolveram publicar e destacar. Assumiram a postura mental de uma criança de 7 anos que foi apanhada a meter as mãos no bolo de aniversário às escondidas antes da festa e que depois se desculpa repetindo que o bolo estava ali em cima da mesa, pelo que a culpa era de quem o lá tinha deixado. Mas nada quiserem assumir em resultado de todos os serviços de informação militar terem declarado oficialmente não terem produzido essa resma de folhas. Ou seja, perante a resposta estatal ao mais alto nível que colocava esse documento, no máximo, como uma peça cujo âmbito e resultados não tinham sequer entrado nas operações formais dos serviços secretos militares, e ainda menos tinha chegado aos órgãos institucionais servidos pelas secretas, os responsáveis por uma escabrosa e indigna notícia falsa optaram pela absoluta irresponsabilidade.

A coisa tem relação com outra coisa, chamada “Operação Zeus”. O que nela surge gravado na acusação, mas com provas que parecem indiscutíveis, será, por sua vez, o maior escândalo nas Forças Armadas até onde a minha memória alcança. Um escândalo em que os valores pecuniários envolvidos são a parte que menos gravidade tem. É o esquema, a sua extensão e a sua duração que mais importa legal, cívica e, acima de tudo, politicamente. Porque quando se põe como hipótese, nascida de testemunhos, que esse tipo de corrupção possa ocorrer há pelo menos 30 anos, e quando se olha para as patentes dos arguidos, então é perfeitamente legítima a suspeita de estarmos, apesar do choque, apenas a olhar para a ponta do icebergue. Isto também se liga, fundamentalmente, com a nossa imprensa (ou falta dela).

No caso do desaparecimento das armas em Tancos houve logo ao começo um aspecto que sobressaiu, tendo ficado ocultado no fluxo noticioso e opinativo seguinte – o da tensão, e mesmo conflito, entre as judiciárias militar e civil. Essa disfunção, posto que era suposto termos os dois corpos policiais a colaborarem exemplarmente, rebentou num novo escândalo, igualmente de imediato abafado, aquando da recuperação do material na Chamusca; onde a Polícia Judiciária Militar esteve no local durante um tempo indeterminado antes de ter chamado a PJ. Que se está a passar? Por mais jornalistas e jornaleiros que consultemos de nada de nada ficaremos a saber. O caudal noticioso e opinativo produzido tem sido um exercício clássico de baixa política e assassinato de carácter. Nesta autêntica campanha pela demissão de Azeredo Lopes, liderada pelo Expresso e pelo DN, a figura de Marcelo tem sido instrumental. Embora as suas declarações sobre o caso de Tancos sejam, literalmente, de um rigor institucional sem mácula – posto que se limita a dizer que se tem de investigar, e só depois apurar responsabilidades judiciais e políticas – elas são invariavelmente apresentadas como se fossem uma forma de crítica e pressão sobre o ministro da Defesa. Como se competisse ao Governo fazer o trabalho das polícias, é o que a imprensa portuguesa tem vendido desde que se tornou público o desaparecimento do armamento. Marcelo poderia pôr na ordem a comunicação social, mas também aqui está a fazer uma gestão política cuja lógica é similar à dos jornalistas: aproveitar os casos que apareçam para avançar com a sua agenda. Mas qual é a agenda dos jornalistas que fizeram uma jura para abater o Azeredo, antigo par com quem talvez tenham contas a acertar ou a quem não suportam o estilo por ser demasiado independente da pressão mediática para o que estão habituados?

A resposta, qualquer que ela seja, está ligada com esta evidência: nunca ninguém leu no Expresso, no DN, ou viu na SIC, ou ouviu na TSF, ou noutro órgão à escolha, uma reportagem, uma mísera notícia, que permitisse começar a desvendar o que se passa nas Forças Armadas; lá onde a corrupção, como se deixa indiciado pela “Operação Zeus”, criou um verdadeiro Estado militar. Em contrapartida, Azeredo Lopes tem mostrado conseguir enfrentar as pressões castrenses sem vacilar no respeito pelo interesse público e pela Lei, como se viu no caso do Colégio Militar. Quando vemos jornalistas a aceitar e publicar documentos apócrifos com ataques políticos canalhas, ou quando vemos jornalistas a perverterem declarações numa entrevista para criarem desgaste político e o abate de um governante, a única conclusão é a de que algo cheira a podre. E essa podridão está muito longe da Dinamarca.

4 thoughts on “Longe da Dinamarca”

  1. Valupi, também sobre o Mr. Magoo da Defesa Nacional vi, entretanto, um comentário deixado por um amigo num blog perto de si.
    Se o leres poderás ver também que tem um bom parágrafo sobre o que foi a blogosfera antes, sobre o que é agora (e como o CC pode ser olhado, por exemplo).
    Concordo bastante com as coisas jeitosas que este tipo disse, nomeadamente a ideia que parece pairar por ali quase sem se deixar ver sobre as vantagens que existem em deixar-se ao povo a possibilidade de observar o desempenho dos actuais protagonistas políticos que ocupam as três instituições da res publica (o PR, o PM e a AR que é um espaço de transparência democrática por excelência e por onde o trabalho da presente solução governativa).
    Por contraponto surge o dark side de uma personagem bastante conhecida por aqui, segundo entendi depois de o ler.
    De memória parece-me que erra no assessor de imprensa eanista, muito embora a silhueta seja semelhante: desempenhou estas funções o Joaquim Letria, se não me falha a memória.
    Tu que és um bloguer já antigo, pode saber-se o pensas sobre tão palpitantes assuntos?

    Arthur diz:
    Novembro 17, 2017 às 19:32
    «Alguns ministros (a começar pelo da Defesa) não deviam abrir a boca em frentes às câmaras de televisão.», Joaquim Moura digo que concordo bastante e espero que a Estrela Serrano faça o favor de reencaminhar essa tua mensagem para o co-fundador deste blogue.

    _____

    «Um porta-voz é uma pessoa com informação privilegiada, com acesso directo às “regiões” onde a informação nasce e se desenvolve. Alguém que possui um profundo conhecimento das técnicas e instrumentos de comunicação.», …?

    Entretanto, discordo no essencial. Desde logo porque, tal como tantas vezes sucede, essas simples palavras sobre o que deve ser e [como deve] processar-se, ou não, o acesso e a gestão da “informação privilegiada” traz para a praça pública uma memória ainda quente sobre o que foi a luta política na net através de blogues de sinal contrário, período este em que, após uma morte natural, pura e simplesmente um spin “primário” e “total” deixou de apresentar resultados fantásticos. Ou seja, melhor seria em minha opinião que ele fosse definitivamente enterrado. Depois de ultrapassado o luto, desejavelmente, reconhecer-se-ia que existe hoje uma complexidade de ferramentas ao alcance dos typos que estão verdadeiramente interessados num ponto determinado (aproveitando para expelir o que não lhes interessa e aproveitando o que sim).

    Mas discordo, essencialmente, por duas breves razões que são complementares.

    1. Não vejo como é que a função de um/a press-secretary é possível de ser ritualizada em Portugal, pois a natureza do cargo ocupado por um PM local é diversa da de um Presidente dos EUA (aliás, valeria a pena perder tempo a compreender-se qual o foi tempo necessário e quais as matizes a que o cargo nos Estados Unidos foi sujeito até ter estabilizado, nomeadamente indo à procura do que tecnologicamente estava disponível em cada momento e quais as respostas institucionais encontradas). Mais, e pior: sendo o Reino Unido uma monarquia constitucional obviamente que, por natureza, a voz do/a monarca não se sobrepõe à do ocupante de Downing Street (o equivalente em Portugal encontrar-se-á nas descrições do que era o ritual do Discurso da Coroa o qual, tendo sido escrito pelo chefe do Governo, era depois mecanicamente debitado pelo monarca).

    2. Mas, ponto importante, o próprio estilo nevrótico do actual inquilino do palácio do Belém e, concomitantemente, o padrão de cobertura mediática de que o PR goza contribui, ele próprio, para que a realidade e a função destinada aos antigos porta-vozes (o chefe da Casa Civil barrosista no tempo de Mário Soares, um Peres Metelo eanista, um João Gabriel sampaista ou um Fernando Lima-vulgo-o-homem-do-sótão depois da intriga cavaquista, por exemplo) estejam para lá de qualquer coisa conhecido neste maravilhoso novo mundo. No limite, e até por isso, passar-se-ia a ter um Marcelo Rebelo de Sousa (ou qualquer outro PR, vendo bem as coisas) que se deixaria condicionar pelas posições expressas por um mero porta-voz do PM que se tenha apressado a chegar junto dos microfones. Isto seria inaceitável politicamente, tal como seria falar por cima ou ao lado, e entrar-se-ia nos domínios do surrealismo artístico do ponto de vista institucional e constitucional.

    Em conclusão, que as coisas se mantenham assim com os actuais protagonistas Marcelo, Costa e Ferro Rodrigues porque as pessoas entendem o que se vai passando. Com as suas idiossincrasias, mas em que as suas qualidades e defeitos estejam à vista de todos.

    Nota, em tempo. Em favor desta conclusão repare-se no facto de o barómetro do Expresso não registar uma clara inversão da tendência apesar da desastrada gestão dos fogos em Outubro, da crise entre o governo do PS e o PR e, ainda, dos respectivos discursos…

  2. (sabendo já da excelência do texto tenho mesmo de comentar o nome da operação que podia bem ser raios e coriscos. :-) quem é que escolhe os nomes, alguém me sabe dizer?)

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *