O QUINTAL DA FESTA

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As festas populares em louvor de São Pedro obedecem às mesmas características das festas de Santo António e de São João: marchas, fogueiras, ruas enfeitadas, sardinha assada, etc. Festividades a servir de remate aos festejos em louvor dos santos populares, que se prolongam, em alguns lugares, por todo o mês de Junho.

Dos rituais que lhe são dedicados, refira-se a festiva e popular «Coroação de São Pedro», em Viana do Castelo, consumada na imagem de granito que ladeia a porta da fachada da Igreja de São Domingos. Consiste o antigo cerimonial em florir o arco do nicho onde se encontra a imagem com um outro de madeira revestido de hortênsias, colocar uma coroa das mesmas flores na cabeça do santo e um ramo na mão que segura a chave.

Soledade Martinho Costa


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Para assistir ao acto, congregava-se outrora um mar de gente, havia tocatas e descantes e uma enorme fogueira feita com troncos de pinheiro. Hoje, mantém-se a concentração do povo, mas aproveita-se a saída das recuperadas marchas populares, na noite de 28, para dar cumprimento à coroação. Como manda a praxe, é efectuada por uma criança, que se eleva até ao nicho (levada por um bombeiro com o auxílio da respectiva escada), para colocar as flores e depor um beijo na face de São Pedro. Todavia, visto a imagem de São Paulo se encontrar num outro nicho, continua a verificar-se o costume de lhe colocar também uma coroa florida.

E porque lembrar do passado as tradições antigas deve ser quase uma obrigação, para que se não percam no futuro (como vai acontecendo), aqui fica, por invulgar e pouco conhecida, a celebração a São Pedro, que tinha lugar, por tempos idos, no Alentejo (Nisa), onde o «príncipe dos apóstolos» (assim o denominavam ali) e patrono dos lavradores nisenses era festejado durante três dias.

Da parte religiosa constava o Canto de Vésperas, na Capela de São Pedro, com a participação de todos os lavradores, que se dirigiam para o local com dois porta-bandeiras, uma levada pelo lavrador que nesse ano «dava a festa», a outra pelo que a tomava a seu cargo no ano seguinte. No dia 29 havia missa cantada e sermão na igreja matriz, para onde a imagem do santo era conduzida em procissão, voltando depois à sua capela.

A parte profana consistia no «segundo casamento» do lavrador que «oferecia a festa», procedendo este de acordo com a antiquíssima tradição, ou seja, como se de facto voltasse a unir-se pelos laços do matrimónio com a mesma consorte. Assim, oito dias antes, o lavrador ou festeiro, percorria as casas dos familiares e amigos para proceder aos convites, contribuindo os convidados com o empréstimo das louças destinadas ao «quintal da festa» (quintal da casa onde decorria o banquete, que se prolongava por três dias, com iguarias idênticas às da antiga boda). Louças devolvidas depois, acompanhadas por bolos (praxe cerimonial que continua a manter-se). Por outro lado, a «cama da festa» (cama dos noivos) ostentava as melhores peças do bragal ainda existentes: colchas, lençóis, toalhas, etc. As vestimentas eram também aquelas que tinham usado no dia do casamento – mais apertadas, naturalmente…

No «quintal da festa», na mesa destinada ao festeiro, colocava-se uma maçã vermelha cravada com um ramo de manjerico e grandes palanganas de barro vidrado contendo vinho, que os convivas retiravam utilizando púcaros de folha. A certa altura o festeiro levantava-se, segurava a maçã e saudava: «É com grande alegria/ e grande satisfação/que vou beber à saúde/de todos quantos estão». Dava uma volta à mesa, dando a maçã a cheirar a todos os convidados, até chegar àquele a quem cabia «dar a festa» no ano seguinte. Oferecia-lhe a maçã a cheirar e este dizia por sua vez: «Vou beber este vinho/vinho cor de romã/é com grande alegria/que pego na maçã».

Findo o repasto, onde não faltava a tradicional sopa de afogado (sopas de pão que levam por cima o caldo e a carne de borrego cozida), o arroz de vinagre e os afamados queijos de Nisa, organizava-se um novo cortejo que se dirigia à Capela de São Pedro, onde tinha lugar a cerimónia da «entrega da bandeira» pelo festeiro cessante ao festeiro eleito, com aclamações e vivas a São Pedro, considerado o «pastor máximo» dos zagais de Nisa.

Os três dias em que durava o «quintal da festa» eram abrilhantados por músicos (pífaro e tambor, a começar no alvorecer do primeiro dia), bailaricos, foguetes e fogo-de-artifício. Toda a vila se associava ao festejo, com a rua do festeiro coberta de junco, além da costumada oferta de tremoços e de vinho à população.

Em tempos ainda mais recuados, efectuava-se a chamada «chacota», cortejo que saía de casa da festeira na tarde do dia 28, com os músicos na frente (pífaro, tambor e gaita-de- foles), seguidos de seis jovens vestidas com esmero a ladear a festeira, que transportava o estandarte, atrás os zagais, outras seis pastoras e duas mulheres com pandeiros de soalhas (chapinhas de lata), às quais cabia «levantar» as cantigas em louvor de São Pedro, que as restantes repetiam em coro acompanhadas por violas.

«Os quintais da festa» ainda hoje são utilizados em Nisa para oferecer o almoço e o jantar da véspera do casamento. Trata-se de espaços amplos, agregados às casas antigas (os quintais), cedidos ou alugados a quem os não tem.

Da Capela de São Pedro, entretanto extinta, resta o nome, a designar o local onde existiu outrora o templo do santo. A antiga imagem foi transferida para a igreja matriz, enquanto as pedras serviram à reconstrução da capela de Santo António, que, à época, se encontrava em ruínas.

Soledade Martinho Costa
Festas e Tradições Portuguesas, vol.V
Círculo de Leitores

2 thoughts on “O QUINTAL DA FESTA”

  1. Soledade,

    só agora me apercebi que a Soledade do Aspirina é a Soledade Martinho Costa co-autora da monumental colecção “Festas e Tradições Portuguesas”. Enquanto feliz possuidor da mesma, aproveito a oportunidade para lhe dar os parabéns. Notável trabalho! E a ilustração fotográfica é soberba.

  2. gibel:

    Não podia deixar de agradecer-lhe o seu agrado pelo meu trabalho. Considerar-se um “…feliz possuidor da minha obra”… Que mais pode um autor desejar!?
    A colecção esgotou alguns meses depois, mas o Círculo continua a fazer pequenas reedicções.
    Um abraço.

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