Vinte Linhas 796

O menino, o cão de pilhas, as molas de madeira e o azulejo

O cão de pilhas assusta o menino de dez meses. Seu ruído chinês agride o ambiente com a luz verde dos olhos e a simulação das quatro patas em movimento. O cão de pilhas não anda mas assusta o menino porque os seus olhos e todo o rosto são o espelho de uma negação. Ele não quer nada com o cão de pilhas. Teme o ladrar mecânico, o verde dos olhos e os movimentos sincopados. Vendido num passeio do Rossio, o cão de pilhas fica a meio caminho entre o brinquedo e o lixo. As molas da roupa são um brinquedo de madeira mas esse brinquedo o menino de dez meses não teme. Recebe o cesto de verga cheio dessas molas antigas (do tempo de seu pai bebé) e brinca sem se cansar.

Mas vê de relance um azulejo e tudo se suspende no olhar do menino. Intriga-o o jogo de cores, o grotesco dos bonecos, todo o insólito da composição. Ele ainda não sabe que a cerâmica é uma arte dos pobres: um pouco de terra, um pouco de água, um pouco de côr, um pouco de fogo. Mas não é, de maneira nenhuma, uma arte pobre – entre artifício e matéria, quanto mais simples mais sumptuosa. O esplendor do vidrado consagra muitas vezes a vitória da fantasia sobre a pobreza do material.

Os olhos do menino de dez meses reflectem a seriedade com que uma criança tão jovem na idade se abeira de um ojbecto tão antigo. E não é por ser popular ou por não ser assinado que o azulejo vale menos na cotação das artes. Luxo dos pobres, ostentação dos ricos, azul de Delft à mão de semear, memórias islâmicas que permanecem até hoje, o azulejo que o menino admira é tudo isso. Tudo isso e mais a estranheza do seu olhar que interroga sem palavras a peça azul no foco de luz dum corredor numa casa de Lisboa.