Uma das memórias mais doces e mais permanentes da minha infância é a das quadras das cantigas de roda da escola primária no Montijo. As meninas cantavam assim:
Fui lavar ao Rio Lima
Cheguei lá sem o sabão
Lavei a roupa com rosas
Ficou-me o cheiro na mão
Um dia destes, uma querida amiga (que aprendi a conhecer melhor numa revista literária onde ambos fizemos tarimba jornalística) fez 53 anos. Logo me lembrei de lhe dedicar uma quadra de sabor popular sugerindo uma estrondosa troca de algarismos. Foi assim:
Trinta e cinco na verdade
São os anos que respiras
O bilhete de identidade
É um poço de mentiras
A resposta via SMS foi um longo «Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!» seguido de um «Bom dia!»
Também me lembrei de uma quadra famosa do João de Deus feita a pedido de um vizinho que, perante a morte de um cunhado, se deslocou a casa do poeta com o irmão do falecido pedindo um epitáfio, mas onde eles constassem. O poeta fez num instante a vontade aos dois vizinhos. Assim:
Aqui jaz João Morgado
Homem honrado e benquisto
Seu irmão e seu cunhado
Mandaram aqui pôr isto
Tudo isto para dizer que fica sempre bem dizer a uma senhora de 53 anos que na verdade tem 35, e que o erro é do BI.
Por minhas mãos, entrou aqui o «post» mais burguês da história do Aspirina. Ainda as mãos – as mesmas – me tremem de indignação.
Ihihih, deu-me 1 boa ideia para hoje, em que a minha Mãe faz uns garbosos 81 anos…. Nada mais a preceito e a gosto de época…
E até vai resultar melhor, quer ver? … “Dezoito são na verdade / Os anos que tu respiras /…
A indulgência é muiiiiito mais larga!!!
Já agora só vou mudar 1 palavra, para respeitar a métrica…
(Não leve a mal, a sílaba a mais é o selo do repentista! Que ainda por cima tem o bom gosto de dizer essa coisa tão simpática a uma amiga!)
…O cartão de identidade / É um poço de mentiras.
Nunca as mãos te doam, caríssimo. Há uma componente lúdica na poesia em geral e na quadra em particular (uma resposta ao drama em gente…) que não pode ser descurada, não pode nem deve. Juntei as três quadras porque me lembrei das outras duas ao mesmo tempo – a da infância e a do João de Deus. Não há nada de indigno no lúdico: a poesia pode ser satírica sem deixar de ser poesia. Nunca as mãos te doam.
Pois claro, Zé do Carmo. Dizer implicitamente, mas tão descaradamente, que a idade diminui o valor às mulheres, é engraçadíssimo.
Cairá isto também sob a liberdade de expressão, Valupi (& tutti quanti)? Terei eu o direito de ferir?
Melhor mesmo, só quando as de 35 aparentam 53
Gosto mais de quadras fesceninas. Bora lá dizer algumas?
Caros literatos do Aspirina: lembrei-me agora dum poema dum heterónimo anticlerical do Pessoa, Joaquim Moura Costa. O poema, de 1909, é endereçado ao Gomes Leal, que se tinha convertido, mas está incompleto. Aceitam-se sugestões para completar o verso inacabado, assinalado com ……. Não é fácil.
Vão longe, Gomes Leal,
Os tempos do ‘Anticristo’.
Com que então ‘crente’? Afinal
Chegamos todos a isto.
Como primos solteirões
Que riem do casamento
E nas magnas conclusões
Da vida, …………………….
Casam relesmente e mal,
Chegaste, ó ateu, a isto…
Bons tempos, Gomes Leal,
Os tempos do ‘Anticristo’.
dá para tirar a vírgula? «da vida em cada momento.»
da vida, o nosso fermento
da vida, e seu complemento
da vida, e teu suplemento
da vida, esse portento.
da vida, sem pensamento
da vida, com fingimento
da vida, ó grande jumento
da vida, que nem comento.
:D
Sem saber a tua idade
Nem se és sério de nascença
Valeu a pena vir cá
Sem ter pedido licença.
parabéns,
http://www.portugaldiario.iol.pt/noticia.php?id=922428&div_id=291
Good try, Susana. Aqui vão mais algumas.
da vida, sem avisamento,
da vida, sem cabimento,
da vida, sem cometimento,
da vida, sem confortamento,
da vida, sem comprazimento,
da vida, sem contentamento,
da vida, sem convencimento,
da vida, sem avaliamento,
da vida, sem julgamento,
da vida, sem fé nem tento,
da vida, sem abrasamento,
da vida, sem deslumbramento,
da vida, em atordoamento,
da vida, em confrangimento,
da vida, em constrangimento,
da vida, sem discernimento,
nik, e a métrica? alguns fogem-lhe. (queres um mento?)
Já não ha cavalheiros como antigamente…
JCF
Não discuto idades de ninguém. E, se a amiga ficou satisfeita, bem bom.
Z
Obrigado por essa notícia. Sou amigo do José Carlos, e fico muito satisfeito por tal reconhecimento público.
Um nota a respeito de como vem referida a sua naturalidade, em que consta “freguesia” da Ribeira Grande, que é uma cidade com cinco freguesias. Mas a culpa não é do “Portugal Diário”. Por estranho que pareça, a freguesia onde ele nasceu, a da Matriz, tem no seu brasão o seguinte: “Freguesia da Ribeira Grande – Matriz”. Foi um pateta qualquer da Comissão de Heráldica que disse que era assim a denominação, mandando à Junta de Freguesia, como prova, a lista nacional de freguesias por altura de umas eleições. Nessa lista vinha primeiro o nome das povoações, como é normal, e, a seguir, as freguesias de que eram compostas, nos casos em que tinham mais do que uma. Seguindo o critério do homem, deveríamos dizer, por exemplo: Freguesia do Porto, Sé; Freguesia de Lisboa, S. Pedro de Alcântara, etc..
E nas magnas conclusões
da vida, fazem tormento.
Têm que ser heptassílabos. E tem que ter sentido: casamento / tormento.
Pouco sabem vocês, portugueses, de cantigas populares.
Tinha razão Lopes-Graça quando dizia:
«Pois que, neste campo, toda uma tarefa de revisão de conceitos e de valores se acha por fazer, a ponto de quase se poder afirmar que, na realidade, a canção popular portuguesa é uma coisa que permanece ignorada dos Portugueses.»
Fernando Lopes-Graça, 1953
Ó Bastonada,
O tempo em Portugal passa devagarinho, a gente sabe. Mas hás-de ter reparado que 55 anos sempre são, eh pá, cum carago… 55 anos. Se, para saberes o que a gente hoje sabe ou não, tens de socorrer-te de tão frescas informações!
Essa só mesmo à bastonada… Safa!
haha! Em 55 anos aprenderam a esquecer Camões…
Ah, mas em 1953, ao Camões, ainda o conhecíamos… Se isto não dá uma ganda esperança!