Carta a Marina por causa do galego – 5

Cara Marina,

Escreveu você, na mensagem que, haverá duas semanas, me inspirou esta série: «Fico lixada com essa cena de intregracionismo». E ajuntava: «O galego de Castelao, do Rivas, da Rosalia, é lindo, esquisito, rural, e não quero que seja portunhol». Eu intervim no seu texto, esclarecendo – para o leitor português – que ‘esquisito’ devia ser entendido como ‘refinado’.

Antes de prosseguir a conversa, importará explicar àquele português e meio que nos venha lendo que «cena» é essa do «intregracionismo». Serei breve.

Existe um movimento intelectual galego que aspira a ver o idioma da Galiza reconhecido como pertencendo ao âmbito do que actualmente se conhece por português. Um âmbito que, lembram, já foi o seu. Por isso se denominam reintegracionistas. Trata-se, atenção, dum movimento linguístico e, mais amplamente, cultural – não duma opção política. O reintegracionista galego não se envergonha de ser espanhol, menos ainda o esconde. Vinca sim – e não é pouco – que existe uma parte da Espanha que, escapando culturalmente ao projecto geral espanhol, deve participar, com naturalidade, num projecto doutro âmbito, aquele em que se inserem Portugal e outros países de fala portuguesa.

Neste movimento reintegracionista, damos com um agrupamento de razoável porte e diversificada actuação, a Associaçom Galega da Língua (AGAL), e com bastantes outros, aderentes ou não a ela, com um mais especializado programa. Na sua expressão escrita, utilizam, em maioria, a norma do galego desenvolvida pela Agal (a chamada Norma Agal) construída sobre o padrão português, este em que escrevo, enquanto outros adoptaram o padrão português puro e simples.

*

Mas as margens do Reintegracionismo são fluidas, muito fluidas. A ideia de ser o galego, através do português, um idioma internacional é partilhada por muitos outros galegos. Para eles, a escrita do galego à portuguesa, ou forma próxima, é uma opção defensável, até mesmo um objectivo, mas de modo nenhum uma urgência. Entre eles encontra-se gente com a visibilidade do antigo eurodeputado Camilo Nogueira, da deputada Pilar García Negro, do linguista Ramón Freixeiro Mato, dos escritores Manuel Rivas e Xavier Alcalá, um galego, este, ‘por adopção’. Eles publicam no padrão escrito de galego concebido sobre uma ortografia espanhola.

Você sabe, Marina, que a ortografia dum idioma, sendo uma bandeira, é também uma camuflagem. O galego escrito à espanhola é dificilmente distinguível como língua diferente. O mesmo valeria, de resto, para o português. A reconfiguração castelhana a que os nossos antepassados o submeteram foi camuflada por um sistema ortográfico divergente. Nós somos, uns mais outros menos, mas todos um pouco, uns fetichistas da ortografia. Nisso não há mal. O problema surge quando, com o balde da ortografia, se deita fora o bebé do idioma.

Grafado em espanhol, ou em cirílico ou em ideográfico, o galego será, sempre e ainda, a nossa língua. O galego poderá grafar-se, pois, em feição portuguesa (aliás, largamente incongruente, não raro caótica, mas sempre muito ‘etimológica’…) e continuar a ser ainda perfeito galego: no léxico, na morfologia, na fraseologia, no mundo de referências que as palavras carregam e acordam. O problema começa quando, em alguns reintegracionistas, é toda a expressão que tende para o português, que a ele se acomoda, ao ponto de ser bem mais ‘português’ do que o brasileiro o é. Alguns, mais irresponsáveis, ou mais fanáticos, propõem  isso como norma de língua a adoptar na Galiza. Sob o nome de português. Nisso são coerentes.

Essa deriva lusófila é a própria caricatura do projecto reintegracionista. Já não é um esforço de aproximação entre galego e português. É um exercício de poder, perfilamento pessoal, tentativa de comando da tribo. Entretanto, toda a riqueza lexical e fraseológica galega é remetida, displicentemente, ao ‘rural’, ao ‘recunchinho’, ao que eles, num virtuosismo pateta, chamam ‘as falas galegas’. Não admira que outros galegos conscientes (é o seu caso) desenvolvam uma aversão a esse reintegracionismo.

Quando falo em ‘rural’, Marina, viso-a igualmente a si. Também você tem do galego uma concepção que, parecendo envolvê-lo em carinhos, acabará por asfixiá-lo, por fazer dele um idioma de gentes simples, meio poéticas meio ignorantes, mas de idade elevada, e portanto, a breve trecho, bastante silenciosas. Mas – vê – não está sozinha. Os seus aliados objectivos é que são bastante inesperados.

Para desqualificarem o galego, valem-se, esses senhoritos aí, do português Manuel Rodrigues Lapa (excelente medievalista, magnífico pedagogo, mas não decerto um historiador da língua), que, em 1973, escrevia ser «o português literário actual a forma que teria o galego se o não tivessem desviado do caminho próprio».

É uma afirmação datadíssima. Está hoje desenvolvido, passados 35 anos, um modelo culto de galego, e o português não foi alheio à sua criação. Mestre Lapa nunca teria dito aquilo se tivesse lido Méndez Ferrín ou o Portal Vieiros. Mas é, também, e como já lhe mostrei, uma afirmação rotundamente errada. Quem cedo se desviou do caminho, quem se afastou da matriz galega, foram os portugueses, castelhanizando – espectacularmente, alegremente – o seu idioma. Só bem mais tarde, e não de livre vontade, senão sob tremenda pressão política, os galegos iniciaram o desvio deles.

Parece, pois, claro: é a atitude dos próprios galegos frente ao galego (uma atitude estimuladora, ou paralisante, ou achincalhante) que será decisiva. Ninguém pode forçar-vos a nada. Mas, suceda o que suceder, isso atinge-nos. Porque o vosso é o nosso idioma.

Há ainda muito em que empenhar-nos, muita coisa a fazer, em Portugal e na Galiza. Sobre isso, Marina, lhe falarei em breve, na minha, talvez, última carta.

Fique bem.

8 thoughts on “Carta a Marina por causa do galego – 5”

  1. Pare de me envergonhar , Fernando. Ver assim exposta a forma vulgar como me expressei é “lixado”.
    E nunca tinha pensado que o agarimo e mimo em demasia a uma lingua a pode impedir de crescer. Como aos bébés.
    Até a sobrevalorização do rural por minha parte ( não sou nada señorita , a sofisticação urbana cansa-me) pode estar errada.
    Sem dúvida que abalou as minhas certezas.

  2. Não precisa de se envergonhar, Marina. Eu tenho incomparavelmente mais respeito pelo seu ponto de vista do que tenho pelo dos provocadores de direita (espanholistas) ou de esquerda (lusófilos fanáticos). O perigo são eles. É a eles que importa denunciar e enfrentar.

  3. Mais um belo texto, Fernando, mas eu continuo com a minha ideia de que o português e o galego só serão a mesma língua na medida em que caibam num certa definição de língua, pois há definições feitas à medida para tudo o que se queira. Antes de vir para aqui ouvir as conversas, tinha estado precisamente a ouvir/ver o “Telexornal”, em que apareceram várias vozes a falar castelhano pelo meio do galego dominante. Atento apenas ao que se dizia, por vezes nem me apercebia da mudança. E vi o programa que se seguiu, sobre uma padaria com pão feito de farinha moída em moinhos de água iguais aos que até há poucos anos trabalhavam aqui na Maia. Só faltava o cheiro. (Uma curiosidade: o “penado”, o nome dado aqui ao rodízio, rodava apoiado numa pedra e assentava sobre outra, que, por não haver pedras basálticas suficientemente duras para o efeito, eram trazidas da Terceira do que fora lastro dos navios que vinham carregar trigo e cevada para o Reino e praças do Norte de África. Também as há cá na ilha, mas era mais fácil pedir aos seminaristas que as trouxessem quando vinham de férias.)

  4. Lamento gravemente dissentir do Fernando, como bem conhece, mormente na afirmação, sem grande fundamento, seguinte:
    «O problema começa quando, em alguns reintegracionistas, é toda a expressão que tende para o português, que a ele se acomoda, ao ponto de ser bem mais ‘português’ do que o brasileiro o é. Alguns, mais irresponsáveis, ou mais fanáticos, propõem isso como norma de língua a adoptar na Galiza. Sob o nome de português. Nisso são coerentes.
    »Essa deriva lusófila é a própria caricatura do projecto reintegracionista. Já não é um esforço de aproximação entre galego e português. É um exercício de poder, perfilamento pessoal, tentativa de comando da tribo. Entretanto, toda a riqueza lexical e fraseológica galega é remetida, displicentemente, ao ‘rural’, ao ‘recunchinho’, ao que eles, num virtuosismo pateta, chamam ‘as falas galegas’. Não admira que outros galegos conscientes (é o seu caso) desenvolvam uma aversão a esse reintegracionismo.»
    ….
    Como o senhor carece a experiência imediata do que se passa na Galiza (na verdade, na “Comunidad Autónoma de Galicia”), talvez lhe aconteça o que parece acontecer à Marina, mas por motivações divergentes:

    1.- Para Marina o “galego” (desculpe, mas ela sim parece reduzi-lo a simples fala do “pobo”) não é comparável, ombreável, com o castelhano. Corresponde-se com o discurso dominante, desde a Hispnofonia que o “Reino de España” assumiu como própria e (quase) exclusiva. Por outras palavras: O castelhano (ou “español”) é «la lengua oficial del estado», quer dizer, é a “lengua nacional del Reino de España”, única, enquanto o “galego” (como o basco ou eúskaro ou esukara, e mesmo o catalão, divido pela oficialidade espanhola em “catalán” e “valenciano”) é «lengua también oficial», mas apenas no seu recanto, na “Comunidad Autónoma de Galicia” (como «las demás lenguas españolas» o são nas «respectivas comunidades autónomas de acuerdo con sus estatutos [de autonomia]»). Estou a citar rases do art. 3.º da «Constitución española» de 1978. Essa oficialidade permitida acha-se sempre submetida e subsidiária da oficialidade do castelhano, de modo que do ponto de vista administrativo ao “galego” unicamente lhe é permitido desenvolver funções de “dialeto”. De facto, assim é filologicamente descrito e “normativizado” pelas instituições espanholas, a Real Academia Galega e sobretudo o Instituto de la Lengua Gallega, dependente da Universidade de Compostela.

    2.- Para Venâncio parece incompreensível o proceder dos que procuramos que nos usos e, à partida, na conformação ortográfica e, desde ela, a morfossintática o Galego possa ombrear-se com o castelhano: Entendemos que o Galego é com todo o direito na Galiza língua nacional e essa dignidade deve ser-lhe reconhecida. Começamos, como digo, pela conformação ou ortografia, entendida como escrita correta. Mas procuramos que também nos usos lhe seja reconhecida essa condição. Daí que face ao castelhano graficamente unificado e consolidado, nós opomos o Galego com formalização equivalente à do castelhano. É por isso que não apenas consideramos Português o Galego do ponto de vista filológico, mas também quanto à formalização gráfica, o tratamos como Português. Nada obsta denominá-lo Galego na Galiza ou fora dela.
    Sem dúvida, dependendo de textos e de ocasiões, o Galego pode ser mais Galego ou mais Português: Na literatura, será Galego; nos âmbitos científicos ou de especialidade, confundir-se-á com o Português comum. No jornalismo, quando na Galiza haja jornalismo galego, será Galego; nas leis, enquanto a “Comunidade Autónoma de Galicia” faça parte do “Reino de España”, será Galego-espanhol.

  5. AGIL,

    A ânsia de alguns lusófilos galegos é exactamente essa que expôs: a de ver o português a competir internacionalmente com o espanhol. É uma ânsia disparatada, e eu vou dizer-lhe porquê.

    O modelo culto de espanhol é, para os (penso) 37 países de língua oficial espanhola, o modelo desenvolvido em Espanha. De facto, de todos esses muitos países, só o México poderia ombrear com a antiga metrópole, e não o faz. E, assim, no grémio académico de todos eles, a Real Academia Espanhola é, de facto, prima inter pares.

    Bem outras são as relações dos países de fala portuguesa. Existem dois (de momento, dois) modelos de língua, o português em sentido estrito e o brasileiro. Se alguma comunidade formamos, ela é bipolar. O modelo de língua brasileiro é nitidamente diferente do português, e seria ridículo que eu me pusesse a exprimir aqui como um brasileiro.

    Se há galegos que (pelas razões mais compreensíveis) não se reconhecem no modelo de língua hoje vigente na Galiza, eles devem – em vez de submeter-se a um dos dois modelos existentes na comunidade de fala portuguesa – definir o seu próprio modelo de língua.

    Com efeito, não se percebe porque haveriam eles de tomar como modelo uma variedade do seu próprio idioma que, primeiro devido ao subjacente moçárabe, e depois graças a uma ingente castelhanização, tem hoje a conformação que se lhe conhece.

    Em vez de se acomodarem a esta casual deriva do galego que conhecemos como «português», façam os senhores, aí na Galiza, o grande favor a si próprios, e a nós, de preservarem aquilo que, do nosso idioma, nós um dia desprezámos.

  6. “Essa oficialidade permitida acha-se sempre submetida e subsidiária da oficialidade do castelhano, de modo que do ponto de vista administrativo ao “galego” unicamente lhe é permitido desenvolver funções de “dialeto”.”

    A cooficialidade é nefasta para o galego, mas é exagerado dizer que hoje em dia a lingua é tratada de dialeto, nem por esta razom nem por outra. A língua é maltratada de moitos outros jeitos, mas ninguém sério ousa discutir a sua independência do castelhano, apesar das contaminaçons.

  7. Só concordar plenamente com esta parte. Nom podo falar por ninguém mais ca mim, mas se nom hai moita resposta aqui de parte do reintegracionismo “bem entendido”, quero acreditar que é porque nom atopamos moito que acrescentar.

    Por certo, Deus lhe pague (nom som religioso, mas achei que preferiria ler a forma galega) as referencias a galeguismos no castelhano. Acontece que algumhas delas voltaram ao galego como castelanismos, reais ou imaginados. Por ejemplo, aqui moita gente evita “afeitar”, preferindo o supostamente mais galego “barbear”. Também se di coloquiarmente “botar de menos”, mal retraduzindo o castelhano “echar de menos”.

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