Se há alguma vantagem no relatório do FMI, é esta: goste-se ou não, o que ali está obriga finalmente a esquerda, e sobretudo o PS, a defender activamente o estado tal como nós o construímos nas ultimas décadas. Depois disto já não basta dizer – aliás, acho que nunca bastou – que não se discute, que não se admite, que é de alguma maneira impensável e nem se quer ouvir falar nisso. Não é, nunca foi, e vai discutir-se agora, e nas piores condições possíveis para a defesa deste. O que provavelmente era a ideia. Mas vai discutir-se. Vamos pois a isso.
O que ali está descrito, desde já, antes de todas as incorrecções, distorções e manipulações, é um conceito de estado muito diferente do que temos agora. O que temos agora é um estado social que, com todos os seus defeitos, tem a sua razão de ser na inclusão. É aberto a todos e é construído por todos que, pobres ou ricos, velhos ou novos, doentes ou saudáveis, nele participam e beneficiam. Mesmo indirectamente. Não estás doente? Muito bem, participas para tratar os que estão, porque a sociedade fica melhor por isso, e isso é benéfico para ti. Não tens filhos, ou tens os teus num colégio privado? Pagas a escola publica à mesma, porque uma sociedade melhor educada é mais próspera, e isso beneficia-te, já para não falar dos teus filhos. És mais rico que os outros? Pagas mais impostos com a mesma naturalidade com que compras um carro mais caro. Porque podes contribuir mais para a sociedade. Para a sociedade ficar melhor como um todo mais ou menos homogéneo. Mais uma vez, e repete comigo, porque isso te beneficia.
E com a vantagem de, sempre que precisares de alguma coisa do estado social, ele estar lá, sem olhar para quem és, o que fazes, quanto ganhas. Não és mais do que os outros, mas também não és menos. Ajudaste a construí-lo, é também teu.
Há no entanto outro conceito de estado social, um baseado na exclusão, porque é essencialmente assistencialista. Um estado baseado na exclusão funciona assim: não existes enquanto não fores necessitado. Um dos que “mais precisam”, para usar uma expressão favorita de Passos Coelho. Este estado não te chateia tanto, é verdade, porque não quer na verdade saber de ti. Queres assistência médica? Pagas um seguro a empresas que não existem para promover a saúde, mas para lucrar com as tuas necessidades. Embora tenham hospitais mais bonitos onde te administrarão os melhores e mais caros cuidados, porque a seguradora paga. Desde que aprove, claro. Para a seguir te aumentar o prémio. Estudos para os teus filhos? Pagas propinas a uma escola privada. O teu vizinho, que não tem filhos, não está para contribuir para a educação dos teus, embora não desdenhe as vantagens deles serem educados. Pensão para a velhice? Descontas para um fundo privado, administrado por uma empresa financeira que só quer o teu bem. Ou talvez a tua empresa tenha um plano excelente. Antes de falir, isto é. Ou achas que é impossível, porque o dinheiro é teu?
Neste estado, pagas menos impostos. Ficas com mais dinheiro disponível para pagares os mesmos serviços a privados, com a vantagem de poderes escolher. Entre a Médis ou a Multicare, por exemplo. E não tens que te preocupar com os azares do teu vizinho, e ele não tem que se preocupar com os teus. Estás por tua conta e risco.
Claro que se te acontecer um azar, tens um estado social mínimo e “eficiente” para tratar das tuas necessidades básicas. Isto não é a Somália. Não morres à fome, porque alguém te entregará comida. Não morres de doença, porque algum hospital dedicado te receberá em ultimo caso. E alguma instituição caridosa poderá, também em ultimo caso, tratar dos teus filhos. Mas não te vai acontecer nenhum azar, pois não? Não a ti.
Entre palavras sonantes como eficiência ou sustentabilidade, isto é o que vem descrito no relatório que o governo encomendou ao FMI. Um estado social que, ao contrário do que acontece agora, pede desculpa por existir, mas tem de ser porque algumas pessoas são falhadas, pobres e precisam de ajuda, coitadas. Mas promete desaparecer sem incomodar muito e sem pedir muito dinheiro.
Estes são os dois conceitos de estado social agora em cima da mesa, o que existe e o que nos querem vender . E pensando bem, talvez a melhor maneira de começar a discussão seja simplesmente descrever bem a outra hipótese. Afinal, sempre é mais barata. Vem é menos equipada. Mas não faz mal. Pagas tu os extras que quiseres.
Vega, não posso estar mais em desacordo contigo, no que toca a discutir um “memorando” que pretende substituir a CRP, “sem que se fale nisso”. A direita está mesmo à espera que se caia nesta esparrela de discutir a Constituição, sem que o “grande público” se dê conta do que está a acontecer e do que está em causa; quando acordar, já está feito, e a oposição participou no debate, mas perdeu, porque estava em minoria. Golpada de mestre. Nessa revisão, nada encapotada para quem tem os olhos abertos, dispensava-se, meu caro Vega, a maioria qualificada de 2/3 exigida pela normal revisão. Se cais com esta facilidade nas armadilhas da direita, já não estranho nada que o PSD continue a subir nas sondagens. E que acabe por fazer a revisão constitucional sem sequer “falar disso”.
Olavo, a discussão está em marcha, quer queiramos quer não. E das duas uma: ou defendes o teu estado social com argumentos, e denuncias muito claramente aquilo que nos querem impor, ou deixas que os argumentos sejam feitos apenas pelo outro lado. Eles parecem razoáveis, preocupados com “custos” e “sustentabilidade” (que são questões que existem) e tu ficas o intransigente, o pouco razoável, aquele que quer um estado “para além das nossas possibilidades”. E mesmo com a constituição do teu lado, perdes a discussão. O que significa que será uma questão de tempo.
Mas por que a 2.ª hipótese pode ser considerada, minimamente como Estado Social?
E se não temos direitos, pagamos impostos para quê? Para pagar os ordenados dos que nos tiram os direitos que os impostos nos garantem?
Aí há gato… Repense!
Está a começar a levantar-se o tapete.
Mas é uma pontinha pequenina! Ainda falta muito.
Certo, Vega, por isso é que, em vez de aceitar discutir um facto consumado, se dê um murro na mesa, com estrondo, para que o povo seja despertado para o que está a acontecer. Isto já não vai lá com debates nos canais pagos e, muito menos, com os comentadores avençados dos canais abertos, todos a puxar para o mesmo lado. Acrescenta-lhe a rádio e as “primeiras páginas” de todos os seus jornais e aí temos a revisão efectiva da CR a “passar como faca em manteiga”. Tal como as coisa estão, só a revolta “institucional” dos deputados conseguirá lançar o alarme. Duvido que um simples pedido de audiência ao comprometidissimo (senão cumplice) Presidente Cavaco seja suficiente para alertar os portugueses e, também, as instituições europeias. O caso é grave e urgente, Vega. Uma discussão como a que propões vai arrastar-se pelo tempo que a direita e a sua comunicação social quiser. E o seu PR Cavaco. Depois de Fevereiro e deste “memorando dos 4 mil milhões”, será tarde. A constituição acabará revista perante os gritinhos inúteis do PS mais que ingénuo. Irresponsável, direi mesmo. Mas, acredita, Vega, depois deste PS ter feito eleger Seguro, tudo é possivel. Sobretudo, essa dscussão inócua que propões. Digo “inócua”, não pela discussão em si, mas porque não vai valer de nada.
Vega: Mas eles não querem uma real discussão. Se quisessem, tinham tido a coragem de apresentar esse programa a eleições e discuti-lo então. O que fizeram foi escondê-lo, falar apenas em gorduras do Estado, delapidar durante ano e meio as condições do SNS e da educação para agora, a coberto do FMI, impô-lo como inevitável face ao desastre económico que eles próprios provocaram. É demasiado claro e muito desonesto.
Vega, porque não começar por cima? Para quê pagarmos impostos? Para sustentar um governo bastaria existirem umas taxas a cobrar sempre que um cidadão necessitasse de alguma coisa, não é verdade?
Queres comprar uma propriedade? Pagas uma taxa para a registares num qualquer local que te garanta a veracidade da compra.
Queres um médico? Pagas a taxa da consulta,
Queres aprender a ler? Pagas a taxa de frequência?
Queres aprender um ofício? Tornas-te aprendiz junto a um oficial da profissão e pagas o sustento.
Queres andar numa estrada? Pagas a respetiva portagem.
Queres casar? Pagas a taxa ao oficiante do casório.
Pagas o que quiseres, ou melhor, o que puderes, pois quem não tem dinheiro não tem vícios.
Acabem-se com as reformas, com as pensões, com os rendimentos de inserção, com o livre acesso ao ensino, à saúde, à proteção social, pois os mais jovens não podem andar a sustentar os mais velhos toda a vida.
Já agora, deixem os pais de sustentar os filhos, ou os filhos de sustentar os pais, pois cada um por si é que estará bem.
Solidariedade afinal para quê, para andarem uns malandros a viver à custa dos que tanto se esforçam? Já basta nascermos todos por buraco idêntico e outro nos aguardar no fim da vida – para a igualdade ficar tratada. Quanto à liberdade ,aí está ela em toda a sua força, seremos livres finalmente para fazer tudo aquilo que nos deixarem fazer, ora não será assim tão bonito?
Muito bem escrito, aliás como sempre – não há muitos a escrever como o Vega9000 na blogocoisa.
E muito bem observado, também como sempre.
Grande texto, Vegabro.