Uma Justiça a passeio na marginal

Há dias, com a importância que cada um quiser dar ao facto de ter escolhido a abertura do Encontro Anual do Conselho Superior da Magistratura como enquadramento paisagístico, Henriques Gaspar lembrou-se de algo original: pedir aos juízes portugueses para respeitarem a Lei. Este senhor talvez seja um socrático criminoso, pois teve o atrevimento de sugerir que a Justiça não só vai nua como também se apresenta emporcalhada e coberta de mazelas, mas por enquanto ainda passa por presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Eis os seus recados:

– A independência dos juízes não permite a estes profissionais ignorarem a lei.
– Se a sociedade aceita a importância da lei para regular os comportamentos dos indivíduos, a independência dos juízes não pode significar a desconsideração da lei nem a interpretação ou aplicação por acto de vontade.
– Independência significa liberdade de decisão, mas de acordo com a lei e os princípios normativos fundamentais.
– Os juízes têm de ter resistência em relação às pressões – quaisquer que sejam e venham de onde vierem.
– A independência é a compreensão da distância entre o juiz e a política, entre o juiz e o militantismo, e entre o juiz e a opinião pública.

Como dizem os franceses, ring any bell? Que raio se estará a passar? É que, de acordo com a nossa imprensa, o problema com a nossa Justiça é a sua morosidade, não a estrambólica ideia de existirem juízes que não cumprem as leis. É que, portanto, a existirem monstruosidades dessas, seguramente que já teriam chegado aos nossos valentes jornalistas. Por exemplo, Vara foi condenado sem provas e com uma pena muito acima do que é comum em casos similares. Houve escândalo? Alguém na nossa imprensa de referência sugeriu, sequer ao de longe e entredentes, que os juízes que castigaram tão exemplarmente tão maligno criminoso o fizeram violando alguma lei? E que dizer do festival de recursos perdidos por Sócrates nos tribunais de diferentes instâncias ainda na fase de inquérito, não estará aí a evidência de que todas as decisões tomadas contra os seus interesses foram legais porque similares? Por exemplo, isso de se ter detido e prendido Sócrates por razões que se vieram a revelar infundadas, e se ter mantido preso um inocente por razões contraditórias e igualmente infundadas, gerou na comunicação social alguma reflexão sobre a qualidade profissional do juiz Carlos Alexandre? Que nada, o homem é intocável e tem canais mediáticos que trabalham diariamente na blindagem política do seu poder. Logo, provavelmente também não é dessa sinistra figura que o juiz Gaspar está a falar. Mistério.

Apesar dos tabus que ainda reinam em Portugal a respeito da classe médica e suas inevitáveis falhas de diagnóstico e terapia, não admitimos que um médico exiba clamorosas incompetências. Esperamos dos médicos a perfeição, e estamos sempre atentos à reputação que vão obtendo, pois se esperam milagres deles nas horas da aflição maior. Igualmente esperamos dos militares um comportamento exemplar, ao nível do poderio que lhes damos em recursos letais. Se algum começar a mostrar que não está à altura da responsabilidade, a instituição militar é rápida e implacável, ou nisso acreditamos, em conter e anular o perigo que tal representa. Mas com os juízes, e ainda mais com os procuradores do Ministério Público, reina uma complacência que nasce directamente da herança salazarista ainda activa no imaginário e nos poderes fácticos. Fingimos que os magistrados são semideuses, imunes a falhas cognitivas, doenças psíquicas, preconceitos morais e tentações criminosas. Recusamo-nos a pensar nos magistrados como seres humanos inseridos em redes de influência e pressão. Nem sequer quanto à formação intelectual dos magistrados há curiosidade e avaliação, limitando-nos a gozar e a bater o pé quando alguns deles deixam lavrado por escrito o mundo pequenino, e tantas vezes deformado, que os habita. Que sabem eles de psicologia, antropologia, sociologia? E de história ou de física, de matemática e de estética? Que sabem eles dessa natureza humana que é suposto decifrarem e moldarem com as suas consciências?

O filme “Camarate”, de Luís Filipe Rocha, chegou às salas em 2001. A data de lançamento é, segundo os meus cálculos, anterior a 2002, ano em que rebentou a bomba chamada Processo Casa Pia. A imagem da Justiça portuguesa que o filme retrata não perdeu um grama de actualidade. Pelo contrário, como o que aconteceu no ano a seguir confirmou, e como o que temos visto no Processo Marquês e conexos instituiu definitivamente. Ou seja, a Justiça portuguesa chegou ao ponto de ter de rogar aos seus recursos humanos para não serem tão exuberantemente marginais.

21 thoughts on “Uma Justiça a passeio na marginal”

  1. 1. «Por exemplo, Vara foi condenado sem provas (!) e com uma pena muito acima do que é comum em casos similares» (?), que caraças.

    2. «Por exemplo, isso de se ter detido e prendido Sócrates por razões que se vieram a revelar infundadas (?!), e se ter mantido preso um inocente (?!) por razões contraditórias (?!) e igualmente infundadas (?!), gerou na comunicação social alguma reflexão sobre a qualidade profissional do juiz Carlos Alexandre?», glup!

    Valupi, ai-ai!

    Olha lá, como os teus exemplos com outros exemplos se pagam, como é que na tua cabecinha alguém pode ser condenado a «uma pena muito acima do que é comum em casos similares» se, segundo a douta-doutrina-Valupiana-que-vive-noutro-mundo, o tipo coitado «foi condenado sem provas»? Estás a ver, tens de repensar o que escreves, de o reescreveres ou, mesmo, de te reabilitares como acontece com os prédios para o alojamento local… né, Valupi?

    Sobre a prisão preventiva diz-me tu quais os fundamentos que não se aplicavam a José Sócrates e se, no lugar do Carlos Alexandre ou de um qualquer outro qualquer juiz à excepção do desembargador Rangeliano de má-nota, alguém faria diferente?

    Enfim, é o que sobra das vossas desgraçadas carradas de areia que tanto serviram para cegar os parvinhos, que hoje são de inspiração Jasminiana o que já é dizer bastante sobre o teu actual estado intelectual e que servem para nada porque, sob anonimato, já se percebeu que a vergonha não mora nas redondezas.

    G’anda tosga, ó Valupi!

    ______

    Ah, já tiveste tempo de ler a acusação do MP? Se calhar, se pedires, se se.

  2. Realmente, Valupi, até parece que andamos todos drogados…. Como é possível o titular máximo do CSM dizer tais verdades “de la Palisse” em público…. Como se não fosse a razão de ser das magistraturas, de aplicar a lei!…. Mas tudo continua na mesma…. O último exemplo deste descalabro a que a aplicação da Justiça chegou, é o “Douto Sr. Dr. Juiz Moura” que segue o seu percurso profissional como se as infracções à lei (!), que cometeu no julgamento da mulher agredida pelo marido e pelo amante, em nada possam pôr em causa a sua competência!….
    Sim , porque quanto ao “Processo Marquês”…. é melhor nem falar…. Só em Portugal foi possível prender um P.M. sem qualquer base legal…e pior…tendo-se ele próprio oferecido para prestar declarações ao Ministério Público!!!
    …… No campo da Justiça, o nosso País é a “República das Bananas” !

  3. Olhando para Portugal e para o Brasil, nos últimos anos, fica-se com a impressão que os corruptos mais corruptos da sociedade estão entre os que mais clamam pelo combate à corrupção, quando não mesmo entre aqueles a quem está entregue esta função.

  4. Aquilo a que chamamos Justiça não é, claramente, imune à política e já a maioria dos portugueses o percebeu.
    O efeito começa a ser nulo.
    Há que repensar estratégias, sei lá, dizer que o Costa come crianças ao pequeno-almoço talvez resulte.

  5. As conspirações mais sofisticadas, as golpadas mais bem planeadas, os planos mais bem definidos e até um assassinato feito por um reduzido gang tem sempre pontos fracos dada as mudanças sociais e de interesses que o correr do tempo produz nos indivíduos alterando o sentimento, o pensamento e posicionamento de alguém que fez parte desse gang o que, alguma vez, fará desfazer a unidade que levou ao cometimento do crime.
    Um contratempo recém-surgido capaz de emperrar a “engrenagem” montada para o caso foi a eleição do Marcelo. Este, que ninguém ultrapassa como finório, não vai deixar de, embora invisivelmente, querer defender o grande amigo pessoal e padrinho familiar R. Salgado. Talvez a coragem do presidente do Supremo já tenha algo a ver com o facto de haver um Marcelo na Presidência do Estado.
    No caso “marquês” um dia saberemos todos quem e como foram tecidas as arbitrariedades e ilegalidades cometidas para exercer um poder de vingança em jeito de perseguição terrorista.
    E a História fará o registo verdadeiro dos factos face aos documentos e ilegalidades praticadas condenando os carrascos à vergonha de apenas terem exercido a desumana função de carrascos.
    A própria contradição entre quem enumera todos os dias, durante anos seguidos, sobre alguém casos de corrupção em praticamente todos os actos pessoais e públicos da vida normal desse alguém e depois, tendo a mão, as gavetas, as secretárias, as prateleiras e os armazéns de arquivo repletas de resmas de casos de corrupção do corrupto leva anos a cagar e tossir na imprensa sem apresentar imediatamente uma acusação indefensável.
    Porra, que são magistrados ou muito estúpidos ou então querem fazer de nós os muito estúpidos.

  6. tudo muito bonito e coisa e tal, mas depois aparecem os erics da nossa vida e tomamos consciência que ainda à muito trabalho por fazer.

  7. prontes , Eric , se condenarem o zézito há-de ser sem provas e a pena desmesurada tal e qual como o mártir Vara :) :) tanta letra quando tudo se resume numa frasesita nanica.

  8. «E que dizer do festival de recursos perdidos por Sócrates nos tribunais de diferentes instâncias ainda na fase de inquérito, não estará aí a evidência de que todas as decisões tomadas contra os seus interesses foram legais porque similares?», conclui-se assim que o arguido Valupi é acusado de plágio, que teve acesso a um televisor ou viu as reportagens online e que acompanha atentamente a série de trabalhos e o suor do Pedro Coelho na SIC. Tanto que agora se copia por aqui, sublinho o agora porque é uma cena que nunca tinha apanhado ao Valupi!, o que não é bonito para um homem ou para uma mulher crescidinhos.

    Ora, que tal assim?
    – E sobre o que são as reportagens, menino?
    (pergunta o Valupi)
    – São sobre o BES… os tipos que foram roubados pelo do Ricardo Salgado da Operação Marquês do José Sócrates!!
    – Socorrrrrrrrro!
    – Olha, fugiu…

    ______

    Nota, a correr. Aliás, este post Valupiano é também maravilhoso porque “inspirando-se” (como é norma dizer-se, quase sempre por quem é apanhado) e reconheço que tal até pode ser verdade da parte de quem se presta diariamente a uma overdose mediática com personagens que não interessam nem ao menino Jesus que são as que temos no espaço público, mas é maravilhoso, dizia, porque consegue entronizar o beirão Armando Vara e o modernaço José Sócrates, pelo menos!, no papel de lesados de uma conspiração jurídicas dos tribunais superiores. Esta inversão é maravilhosa, repito, e segue as pisadas do estranho reflexo que o ex-PM via no seu espelho quando se comparava cheio de latosa ao Luaty Beirão então em greve de fome. Mais: que Sócrates e o amigo ex-bancário e banqueiro no BCP e na CGD, eles sim, foram roubados e que, portanto, não pertencem a essa malandragem dos banqueiros caídos em desgraça, o que só está ao alcance de uma brilhante cabeça na sua enorme complexidade e, repare-se!, num dos seus melhores dias… É pensares um bocadinho, Valupi. Os recursos rejeitados aos lesados do BES/GES foram diversamente apresentados por dois/três/quatro advogados em comarcas diferentes mas têm, pelo menos, por fundo o mesmo objecto. Dito isto, é aparentemente verdade que as sentenças produzidas são quase copy & past (e por isso são indecorosas, concordo). Ora, a orgia dos recursos para o TRL e para o STJ apresentados pela firma Araújo e Delille & C.ª, Limitada foram-no por tudo e por nada e demonstram à saciedade e de há muito tempo atrás como disse oportunamente, e à falta de uma frase mais elaborada, uma enorme… imperícia profissional.

    [Sim ou não, senhores/as?]

  9. Correção, que reli agora. «Os recursos rejeitados aos lesados do BES/GES foram diversamente apresentados» etc., não porque se trataram de acções julgadas na primeira instância (não sou especialista para explicar, sequer para desejar compreender, as diferenças hierarquicamente existentes nos tribunais cíveis, criminais e comerciais por onde o caso do BES/GES se vai arrastando). Em Lisboa, em Santarém ou algures, de memória.

  10. Hum, e a pasta da cassarola do refinado paladar italiano de José Sócrates (ou seja, a pasta que era paga com a pasta do Carlos Santos Silva, ou a pasta proveniente sei lá de que paradisíacas mãozinhas segundo a acusação do MP escreve-se com é (copy & paste com é, não queira escrever o que eu escrevo Jasmim, dozela Jasmínica!, tanto como se deseja para os outros casos perdidos que arrastam os seus esqueletos pelo Aspirina B).

  11. Quando os advogados de Sócrates intentaram um pedido de Habeas Corpus com vista a libertação imediata do seu constituinte este foi indeferido.
    A imprensa, solicita, informou a populaça que ” A Justiça Portuguesa não tem a tradição de acolher os pedidos de habeas corpus”.
    Ora, sr.Eric perdoe o atrevimento, mas o Supremo Português não deveria aceitar ou rejeitar o HC pelo mérito ou demérito de cada causa ? Pode um cidadão ficar preso illegal e arbitráriamente só porque os Meretissímos não têm tradição de acolher o HB? Sempre é uma peça basilar das garantias individuais que agora cumpre 800 anos, e que consta em todas as ordens juridicas daqueles que convencionalmente se chamam Estados de Direito. Digo eu de que.

  12. Ola,

    Fui encarregado pelo Conselho da Europa de fazer um relatorio sobre as ideias que circulam pela blogosfera portuguesa sobre a reforma da justiça. Para além da presunção inilidivel de inocência para J. Socrates, ha mais alguma coisa que sugeres ?

    Boas

  13. sugere uma pós justiça , muito de acordo com a pós verdade : após uma eventual condenação , vamos continuar ter entediantes posts lençóis chorosos e indignados a reclamar das provas ( se não for in fraganti e filmado , nada vale , nem sequer uma confissão- tortura!-) e da sentença , sempre uma enormidade desproporcionada . prontes , este blog está embruxado , que pena.

  14. Analfa pretensioso, caga-sentenças de meia-tigela, e que tal voltares para a escola? Talvez aprendas, entre milhares de coisas que não sabes, que não se diz, nem escreve, “não porque se trataram de acções julgadas” mas sim “não porque se tratou de acções julgadas”.

  15. Joaquim Camacho, vai deitá-la (tens andado com problemas nessa cabecinha, ou esperas para ver para onde caem as modas para o ex-PM como um simples cobardolas que és?).

    [É assim, trinta segundos para ti mas dos substantivos e não depressivos como acontece sempre com ti.]

  16. «Ora, sr.Eric perdoe o atrevimento, mas o Supremo Português não deveria aceitar ou rejeitar o HC pelo mérito ou demérito de cada causa ? Pode um cidadão ficar preso illegal e arbitráriamente só porque os Meretissímos não têm tradição de acolher o HB?», cito.

    manuel.m, sobre o teu habeas corpus que vi ontem mas li agora. De acordo com a primeira parte, mas se quiseres que te diga primeiro apresenta-se a “causa” e as coisas em julgamento passam-se ao contrário. Ou seja, a parte do segundo parágrafo onde dizes “pode um cidadão ficar preso ilegal e arbitrariamente» é que é decidida em função do que é apresentado. Ora, se eu bem me lembro, o pedido ou os pedidos de habeas corpus no caso do ex-PM agora acusado pelos bandidos do MP, tendo sido apresentados por um divertido maduro qualquer, eram fundamentados ocupando as margens (?) de um qualquer recorte de jornal (um outro metia um advogado, ou aprendiz de advogado, prolixo nestas cenas). E assim foram os resultados, esperados: aumentaram as estatísticas do não, o/s tipo/s tiveram de pagar as custas porque o STJ se reuniu de propósito e é preciso pagar a gasolina porque não trabalham à borla e, o que é de maior utilidade para as televisões, apanharam algumas imagens de um então quase desconhecido sôtor João Araújo ostentando impecavelmente uma apreciável quantidade de gel na sua guedelha branca sob uma tez de pinta oriental.

    Nota, doutrinária (e dedicada ao irritadiço Joaquim Camacho, pois). Importante seria voltar a esses tempos, de facto. Eu já sugeri por aqui que essa foi a primeira fase (a de Évora, e nem sei se foi toda) em que a opinião pública portuguesa permanecia estupefacta a observar os acontecimentos e em que, laica ou religiosamente, naturalmente exibia a sua compaixão sobre um drama pessoal. Ora, não exactamente o teor da decisão do STJ, apesar do ar compungido do advogado que parecia carregar no seu robusto corpanzil todo o peso da Justiça! com capitular e ponto de exclamação, mas o facto de tudo, afinal, se basear num recorte de jornal deu à coisa uns primeiros sons de opereta que ajudaram um pouquinho os portugueses a deixarem de ser tomados por tontos (e depois de muita água a correr para o mar de continuarem a ser assim tratados, Valupi esta é para ti).

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