Setembro

Um casal de amigos meus, norte-americanos actualmente a viverem em Londres, enfrentou um cancro da mama descoberto em 2011 na M. de forma completamente estranha para os hábitos portugueses: partilhando todas as informações clínicas, desenvolvimentos e consequências corporais da doença com a família e amigos, inclusive recorrendo a fotos da estadia no hospital, da parafernália de tubos e ligaduras, do corte de cabelo, da sofrida alteração daquele rosto. Através de um website fomos tendo acesso ao decorrer do processo. Para além disso, o M., dotado de talento profissional para a comunicação, usou a escrita para tranquilizar a comunidade ali reunida em angústia. Os seus textos conseguiram aliar o mais cru relato da realidade com a mais terna exaltação do optimismo e da indestrutível alegria de viver da sua mulher, daquele casal.

Em Portugal está a acontecer algo parecido, e numa escala de exposição muito maior quanto ao alcance. Miguel Esteves Cardoso tem relatado no Público a doença da Maria João com inaudita transparência e intimidade. Como estamos perante um dos nossos melhores escritores de sempre, os seus testemunhos – servidos por um ritmo de escrita diária e sintética, etimológica e formalmente à maneira de um blogue – conjugam o dilaceramento pungente face ao pânico, à degradação da saúde, à morte, à finitude com a lírica de um artista da palavra, a capacidade de exorcizar a sua dor no acto mesmo de nos convidar a senti-la como só nós, cada um de nós na nossa irredutível solidão, a poderá fingir.

Esse o contexto, o subtexto e pretexto para esta lindeza tamanha:

Ainda assim Setembro

Setembro é o mês que recapitula o Verão, narrado pela voz do Outono, ainda longe da pressa do Inverno. Na zona equatorial não há estações do ano. Contou um escritor do Sri Lanka que viveu um ano em Londres como aprendeu a achar graça às mudanças das estações do ano, apesar de não gostar da maneira como havia meses muito mais frios do que os poucos que não o eram.

Tem sido tão estranho este ano. Setembro, nos últimos dez dias de Verão, ainda poderá ser um regresso ao ano passado, em que as coisas estavam mais bem encaminhadas, ao ponto de estarem à espera dos prazeres da praia em Outubro.

Este ano, até hoje, fui só uma vez à praia, tomar banho, sem ter tomado no dia anterior e sabendo que não iria tomar no dia seguinte. Mas não são os anos que são maus: são as vidas. São as estações. São os dias. São as manhãs. São as horas. É a noite, todas as noites, da noite a começar, mais uma vez.

Todos os dias a Maria João tem fotografado o fim do dia, visto das muitas janelas da nossa casa nova. Chama-me para ver o que às vezes até conseguiu fotografar. Ela diz-me: “É único”. Ela diz-me: “Está quase a acabar”. Ela diz-me: “É lindo”. E eu penso, como ela quer que eu pense: “Nunca mais vai ser assim”. A não ser, talvez, amanhã. Amanhã ainda é Setembro. Ainda falta mais de uma semana para o Verão acabar. Os nevoeiros desceram e as pessoas voltaram ao trabalho.

Mas ainda falta uma medida certa de magia. O nome do mês conta o segredo: é Setembro.

Miguel Esteves Cardoso, 11 de Setembro de 2012

38 thoughts on “Setembro”

  1. Não deve ter havido maior admirador do MEC do que eu, lá nos anos 80, quando ele escrevia no Jornal e no Sete e depois no Expresso (acho que era por esta ordem), se é que alguém aqui se lembra. Emparelhava no espanto geral com o Herman José, que escrevia e desenhava basicamente nos mesmos jornais. Alguém aqui se lembra do Bolas para o Pinhal, do Escritica Pop, das hilariantes crónicas de costumes? Aquele miúdo revolucionou este país. Criou um marca, o MEC, um logótipo, aquela cara redonda com óculos e um sorriso diferente, e um produto radicalmente novo. Devia-os ter registado, porque depois apareceu uma legião de imitadores, a escrever à MEC, mas isso é outra história.
    Agora sobre o tema do post, esses hábitos americanos não são apenas estranhos aos portugueses, aquilo é tipicamente americano, embora se vá espalhando. Não é em nada diferente de qualquer reality show. O melhor amigo deles é uma webcam, que são capazes de ligar para se mostrem ao mundo desde que acordam até que se deitam, de manhã à noite, incluindo os arrotos e as funções intestinais.

    Dizendo isto, o estilo do MEC é diferente. Apesar de tudo, aquele tipo de reality show americano criará alguma empatia e quanto mais não seja, toda a gente secretamente gosta de parar para ver acidentes. O MEC apenas consegue ser embaraçoso, com aqueles “oh meu amor, meu amor, minha querida Maria João, olha que lindo o pôr do sol”, e variantes, incuindo as queijadas de Sintra e demais fofinhices, como a sua eterna busca do melhor pão de mafra, ou lá o que é. É do género “ai tão lindo e tão bem escrito”, muito do gosto das senhoras sensiveis e letradas q.b, e que é a maior praga da escrita portuguesa dos últimos trinta anos . Há dias, apelava aos leitores para que lhe encontrassem um gato, terminando com um hilariante de tão pungente “quem encontrar o meu gato que o trate bem”, qualquer merda assim. Ora, muito obrigado, dei uma boa gargalhada, porque sou um gajo perverso, mas a porra do piruças do MEC apenas interessa aos que acham que ele é um dos maiores escritores portugueses de sempre, as tais senhoras, mailos rapazes sensíveis. Há quem apeteça fazer festinhas na carola do tadinho do MEC, a mim, quando ele escreve aquilo, apetece-me dar-lhe um carolo. É desejos mesmo de bullying contra miúdos mariquinhas e parvinhos. Ler as suas crónicas dele todos os dias, equivale a fazer uma dieta de farófias (esse texto aí em cima equivale a um barril de leite condensado). O tal website americano deve ser um empaturramento de carne vermelha. Aquilo deve provocar rapidamente um enfarte, o MEC apenas provoca um definhar lento com diabetes. Eu até leio sempre que posso. Apesar de tudo, assistir ao vácuo é interessante, à sua maneira.

  2. eu tenho mesmo mesmo de te dizer isto, Pedro: se o cheiro que tiraste da flor de laranjeira que é o texto foi este, de facto quem está a assistir ao vácuo – que és tu – sou eu. és fácil, fácil.

  3. Pedro, se bem te compreendo, estás zangado por já não estares nesse belo e vitalizado tempo em que eras o maior admirador do MEC, lá nos anos 80. Pois é, o tempo é fodido.

  4. quando aparece um azeitolas vem logo dois ou três de ignatz, a gritar que também tem bolas – quais colhões, quais quê, sacos de vácuo pendurados. :-)

  5. Olinda, “a flor de laranjeira que é o texto”, é muita lindo e o “dera a ti” tem uma finesse retro, como o atum tenório com que o MEC barra o pão de Mafra. Muito bem. Mas depois desafinaste. Para escatologias e correlativos, o MEC, apesar de tudo, ainda se ajeita bem e escreveu umas coisas bem mais catitas. Trabalha melhor essa parte.
    Val, o tempo foi mais fodido para o MEC. Deve haver textos antigos dele por aí, vai ver. vai com calma, porque não tem aqueles soluços liricos de diário de adolescente do texto ai em cima.
    Ignatz, o MEC é um fenómeno. Dão-lhe um ano de crónicas em qualquer jornal para ele relatar todos os dias as consultas no proctologista.

  6. o desafino faz parte, Pedro, e adoro desafinos – dos meus e dos do MEC. já as tuas palmadinhas nas costas – dá-as a quem se fartar de trabalhar para te agradar, coronel. está-se mesmo a ver que precisas de relatar as tuas consultas, tamanha é a dor nesse cotovelo, no osteopata. :-)

  7. Val, eu tenho a certeza de que já leste toda a obra do MEC, incluindo os papelinhos onde ele escreve as listas de compras na mercearia. Às vezes, é só uma questão de relembrar.
    Olinda, eu tinha inveja do MEC quando era adolescente.

  8. Pedro, mas tu queres que os outros se relembrem do que tu te lembras, como te lembras e quando te lembras? Estás perdido algures nesse passado onde o MEC não ficou porque tinha mais e melhor para viver. Mais, porque mais tempo. Melhor, porque outro tempo.

  9. ai, Val, agora esse teu soluço lírico, essa tua prosa poética, deixou-me libidinosamente feliz. olha a beleza do que é não ficar no passado por mais e melhor para viver. mais, porque mais tempo. melhor, porque outro tempo. encantada. :-)

  10. Mas o que é que vos deu? Isto está a parecer um recital de poesia no salão da senhora viscondessa de rilhafoles no século dezanove. Val, em não estou perdido algures am lado nenhum. Estava eu a dizer apenas que o MEC agora é chato como a potassa. Acontece aos melhores. Já agora: vocês eram aquela malta do pastilhas?

  11. Pedro, tens de pedir o dinheiro de volta a quem te vendeu o bilhete prometendo que aqui conseguirias escapar à poética da viscondessa de Rilhafoles. Tu estás apenas a dizer o que pensas e os outros também. Estou com a leve suspeita de que as caixas de comentários não se fizeram para outra coisa.

    Quanto a sermos aquela malta do Pastilhas, não faço a menor ideia. Eu só lá passei muito de vez em quando.

  12. assim está bem, Pedro, saltaste fora antes que eu te metesse – também no século dezanove – (mas) na feira das vaidades.

    (a mim não deu alguma coisa fora do normal – a prosa poética num homem inteligentíssimo activa-me a existência) :-)

  13. Val, acredites ou não, não dou por perdido o dinheiro. E também estou com a leve suspeita de que as caixas de comentários são para se dizer o que se pensa, mas vou mandar investigar melhor. Do Pastlihas, andei agora a ver e não encontrei rasto, o que é pena. Encontrei o clube de futsal, Os Pastilhas, “mais do que uma colectividade, uma paixão”. E agora, vai castigar o violoncelo a distinta menina filha da senhora viscondessa.

  14. Olinda, o Pastilhas era uma coisa muito distinta na internet lá muito para trás comandada pelo MEC. Saiu de lá gente muito famosa.

  15. deixei de se leitor do jn, depois da contra -revoluçao levado a cabo por Oliveirinha. das poucas vezes que o fiz( à borla) não deixei de ler M.Pina (desaparecido?) e MEC. fiquei triste com o drama que está a viver,mas não me parece correto traze-lo para a praça publica de uma forma mais que esporadica.

  16. incorrecto, nuno da cm, é o novo acordo ortográfico e enviarem-me emails de encomendas, que supostamente fiz, de fossas biológicas. escrever a dor ou a esperança ou o amor nunca é demais e cada um liberta-se, para se revitalizar, da forma como lhe é – e faz – mais feliz.

  17. Pungente e lírico, sim. Mas sem deixar de ser corajoso, quem passou por isso, entende dessa coragem. Quem somos nós para exibir cinismos ou minimizar o jeito que cada um encontra para viver diariamente uma situação como essa? Não falo de webcam, falo de coração disparado 24 sobre 24 horas, falo de revolta que é preciso sufocar, falo de perda do sentido da vida que é preciso sublimar seja como for. E falo de compaixão. Palavrinha chata, não? E fora de moda. Pois é, os saraus da condessa de Rilhafoles são os blogues dos nossos dias, sobretudo os comentários aos blogues, mas isso é um direito de cada um, tudo bem. MEC, se tem que ser assim, partilhe à vontade o seu amor, sem medo de ser “fofinho”, seja lá o que isso for! fatima

  18. oh bécula! agora emborca o tubo que ficas a cagar cultura e inteligência de esguicho. se calhar ainda não tinhas nascido quando inventaram o pastiche.

  19. andas a faltar às lições do JPC no mvflux: quando muito, o aspirina é um belo original de paródia: transformou, fazendo muito maior, o arquigénero.

    aqui pelo norte também se usa pastilhas como sinónimo de toino.

    (sou centenária como a árvore das camélias. vai dar banho ao ganso, ó pastilhas!) :-)

  20. olinda,eu posso lamentar a minha vida consigo se for minha amiga,desabafar ajuda.Outra coisa,é trazer um drama da minha vida privada para os jornais.A inspirição para falar de outros assuntos não deve ser muita, mas dramas em portugal é o pão nosso de cada dia e sofridos em silêncio.Isto é a minha opinião,nada tenho contra MEC, pessoa que admiro.

  21. percebo. assim como também tu poderás perceber que, às tantas, nesta fase da vida dele, deles, só existe o homem e não apenas a eventualidade de homem por detrás do escritor. às tantas, como homem, precisa de partilhar com estranhos o que sente – ao mesmo tempo que não precisa de retorno da sua partilha. às tantas ele precisa só de ser. deixa-o ser só ser.

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