Plúvio e o haxixe

A ilusão de verdade é um mecanismo cognitivo descrito cientificamente por psicólogos desde 1977. De lá para cá, o fenómeno não desapareceu nem diminuiu de incidência, aumentou foi a sua literatura e alargou-se o campo experimental, teórico e prático da investigação. Consiste em algo que achamos básico, à disposição do senso comum, assim que tropeçamos na sua descrição: o que nos é familiar parece-nos mais verdadeiro.

Por exemplo, imaginemo-nos a viver numa sociedade onde ouvimos dizer em casa, na escola, no emprego, na rua, que mulheres, etiópicos (ou caucasianos, ou mongólicos), ciganos, homossexuais e judeus (ou muçulmanos, ou cristãos, ou…) são seres inferiores, por isto e por aquilo. E que podem ser ameaçadores, para isto e para aquilo. E que precisamos de fazer qualquer coisa para lidar com a ameaça, diminuir o perigo e garantir a nossa segurança. O que Lynn Hasher, David Goldstein e Thomas Toppino descobriram há 42 anos foi que a frequência com que encontramos certas ideias verbalizadas por terceiros leva-nos – apenas por surgirem mais vezes na cognição – a atribuir-lhes maior verosimilhança. O processo é automático, independente da nossa volição. Parece-nos mais verdadeiro aquilo que conhecemos melhor, e parece-nos que conhecemos melhor o que se repete no nosso mundo social. Espantoso? Ao contrário, perfeitamente lógico numa lógica de sobrevivência para animais sociais. Perfeitamente adequado à vida tribal.

O processo é o mesmo seja qual for o conteúdo da mensagem. As temáticas podem ser inócuas e banais. Como isso de acharmos que conhecemos razoavelmente os vizinhos no prédio, e que só por isso, pela frequência com que nos cruzamos e trocamos palavras de circunstância, eles nos merecem alguma confiança. Exactamente pelo mesmo processo, calhando começarmos a ouvir relatos de que um certo vizinho não é boa rês, que fez ou faz umas coisas terríveis, ou que anda metido com gente do pior, tenderemos a acreditar nos boatos numa relação directa com a quantidade e extensão das ocasiões em que a narrativa se reproduza. Rapidamente, será impossível voltar a olhar para esse vizinho sem a crença de que ele, nalgum grau ou modo, corresponde à imagem espalhada a seu respeito.

Mas não precisa de ser um vizinho, pode ser um colega de escola ou trabalho. Ou uma figura pública. Ou um ex-primeiro-ministro. Imaginemos que um certo político, temido pelo seu carisma e resultados eleitorais, arrastava um histórico de suspeições criminais desde que tinha chegado à liderança de um Governo, suspeições lançadas pelos seus adversários políticos e que se esgotaram na calúnia por nunca ter aparecido sequer indícios, quanto mais provas de ilícitos para oficializar as suspeitas. E que após abandonar a ribalta política partidária se via alvo de uma investigação judicial onde, finalmente, ficava como arguido, preso e acusado de crimes de corrupção que atingiam em cheio as suas decisões executivas como primeiro-ministro e os Governos respectivos como um todo. Não é preciso ter mais de dois neurónios para perceber que o caso irá ser inevitavelmente politizado por todas as razões e mais algumas. Acrescentemos um procurador e um juiz justiceiros, um Presidente da República e um Governo rancorosos e vingativos, uma Procuradora-Geral da República comissária política e uma comunicação social quase totalitária disposta a violar os códigos deontológicos da imprensa e a cometer crimes na ânsia de fazer o linchamento da figura delirantemente odiada até ao desfecho judicial do caso – resolução do mesmo a anos de distância e sendo o auto-de-fé continuamente alimentando pelas violações do segredo de justiça, pela deturpação na apresentação e interpretação dos materiais e dos registos obtidos pelo Ministério Público na investigação, e pelas declarações dos inúmeros protagonistas e comentadores. Neste contexto, a resposta normal das inteligências normais, independentemente da preferência partidária ou ideológica, é a de acreditar no que se ouve a respeito desse famoso e importantíssimo político, no que se lê, no que é repetido de forma sistemática – e báquica – à nossa volta desde 22 de Novembro de 2014. Papa-se tudo, há sangue e fúria, o espectáculo não pode parar. Anormal será manter o espírito crítico.

Saltemos para o Plúvio, personalidade blogueira que ficará soterrada no esquecimento com a marca de ter sido mais uma das vítimas do diabólico engenheiro. Dotado de um impulso anal que o faz coleccionar calinadas das figuras públicas (ou nem por isso), cultor folclórico da língua portuguesa (e nada contra, antes pelo contrário) e usando o HTML para produzir boa diversão com laivos eruditos (foi exactamente para isso que o Al Gore inventou a Internet), borrou completamente a pintura quando entrou em modo Clara Ferreira Alves e desatou a tentar arrancar a mão que, in illo tempore, deu um bacalhau a Sócrates. Nesse seu transe, é possível assistir via blogue ao mecanismo da radicalização social e política comum a milhares e a milhões. Está em causa a sua identidade, a qual ele (tal como a Clara Ferreira Alves a respeito da sua) considera maculada por se ter pronunciado favoravelmente sobre Sócrates algures no tempo – ou assim achar que os outros pensam e não se esquecem. É o que volta a explicar aqui – José Sócrates – à mistura com a promoção de José António Saraiva e do blogue “Porta da Loja”, escória patologicamente fanática. O narcisismo ferido faz exóticos companheiros de cama. Contudo, só trago este relambório chuvoso porque o ladino Plúvio resolveu convocar o grande Valupi, alguém que o deixa confuso e desesperado porque lhe aparece como um defensor desse Sócrates infame criminoso já condenado e executado no seu augado bestunto de fulano que escreve coisas para outros lerem. É assim que nasce o maniqueísmo, esse atrofio bestial, e sumamente estúpido, do “quem não é por mim é contra mim”. Daí não ser capaz de conceber que Sócrates merece um julgamento justo, e que os tribunais existem para nossa segurança colectiva e não para servirem objectivos sectários.

Porém, o que verdadeiramente me interessou no patético exercício de bílis e péssima consciência foi o remoque acerca da palavra assassinato, em que o implacável caçador de desvios gramáticos vai buscar o seu critério punitivo a uma entrada de 1997 no Ciberdúvidas. Ora, tenho uma outra referência de autoridade para a troca: Assassínio ou assassinato é sempre crime.

COROLÁRIO
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Ganza-te à vontade, Plúvio, mas, se a ideia for a de ires teclar a seguir, então mete mais tabaco nisso.

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22 thoughts on “Plúvio e o haxixe”

  1. … Eles que se ganzem (ou zanguem, e por isso se ganzam…)… Vão continuar a transgredir tudo o que possam até voltarem a instalar-se no “pote”… Só tenho que lhe agradecer, Valupi, por mais esta magnifica descrição irónica da “verdade construída” que teimam em nos vender….

    Hoje só venho aqui desejar a quem frequenta esta farmácia que o Novo Ano de 2020 nos traga uma boa saúde de ferro – para aguentar a corrosão dos que nos querem esgotar a paciência com tanta desonestidade intelectual…. E aqui viremos para tomarmos a necessária aspirina! …. BOM ANO DE 2020!

  2. tanto ansiólitico que para aqui vai. e hipnóticos. porque só assim se explica que alguém que oiça o menino da mama a responder ao sr. dr. juiz com cofres mágicos e quilos de empatia pelo próximo ( então , não andamos todos com 15 mil euros no bolso nas férias ? : e lá na serra ? não têm todos 3 pares de skis ?) continue a achar que , apesar do homem de ter uma pele de raposa ainda quente e a sangrar ao pescoço , não é o zézito o autor do assassinato do bicho, foi um ovni. enfim .

  3. Bem, se se quer consultar verdadeiros especialistas, veja-se o Vocabulário Ortográfico de Rebelo Gonçalves, que considera “assassínio” forma preferível a “assassinato”. Não é com certeza com o “Bom Português” da RTP/Porto Editora que lá vamos.

  4. João Cabral, no dicionário Houaiss encontramos a data de 1712 para “assassínio” e a de 1670 para “assassinato”. As datas referem-se aos primeiros registos conhecidos de cada vocábulo na língua portuguesa.

    É a tua vez de jogar.

  5. João Cabral, vimos os dois. Tal como todos podem ver, na mesma página e só um bocadinho mais acima, aquilo que a síntese pedagógica no programa da RTP informa: na origem, está o árabe. Donde, parece ridículo – ou seja, coisa de puristas acerca de uma coisa que nunca foi pura, a língua viva – estar a querer ostracizar a variante vinda pelo francês para ficar com a que vem pelo italiano.

  6. O primeiro dicionário de português, de 1712, considera ambas as formas, Assassinato e Assassínio. Os tais “puristas” dirão que o autor desse dicionário era francês, Bluteau. O mais engraçado é que a palavra Purista não aparece nesse dicionário, embora Puriste já existisse no dicionário da língua francesa de Furetière de 1690, com o significado que a palavra tem hoje. Bluteau apenas considera a palavra Puritano, mas com o sentido de calvinista.
    O dicionário de português Morais de 1789 também não considera Purista, mas sim Puritano. Na edição de 1813 o Morais já inclui Purista, mas remete para Puritano, onde dá a seguinte definição de Escritor puritano: “o que não usa senão de palavras castiças e que afecta isso, não se servindo nunca de palavras estrangeiras”.
    Moral da história, os puristas deveriam ter vergonha por terem um nome afrancesado. Puritanos é que eles são, e afectados!

  7. Há uma terceira forma, “assassinamento” (que Blutheau não regista), lídima, livre de polémicas e contemporânea de “assassinato”, senão mesmo anterior. É uma alternativa defendida, por exemplo, por Vasco Botelho de Amaral, desabonando “assassinato” (que nem sequer é registado por Morais no dicionário de 1789). E vale dizer que esta última é de uso muito mais corrente no Brasil em comparação com o raro “assassínio”.
    Quanto ao emprego da palavra “purista”, foi em referência ao que está efectivamente escrito no dicionário Houaiss, e só em algumas cabeças será em sentido pejorativo. Mas não deixa de ser curioso o recurso a dicionários centenários para chamar afectados aos tais puristas. Bem, creio que nada se ganhará em desvios para lateralidades.

  8. Ouçamos novamente Helder Guégués: “Jornalista João Botas, no Telejornal de ontem: «No local do crime, a polícia procura pistas que possam ajudar a explicar o assassinato com golpes de cutelo de um soldado britânico em plena luz do dia num bairro do Sul de Londres.» Se há mais de uma forma, escolhem sempre a pior.” Pois é.
    https://linguagista.blogs.sapo.pt/739003.html

  9. o caça pintelhos guégué deve ser o equivalente ao nuno rogeiro para cenas de corrector ortográfico. no último poste confunde símbolos com abreviaturas: “Ainda não aprenderam que o símbolo de minuto é min, e não m, que é o símbolo de metro.” e depois caga pérolas destas montado no escadote da supremacia linguística.

    anexo 3 – unidades de medida de tempo
    https://publications.europa.eu/code/pt/pt-5000300.htm

  10. Veja isso bem que o engano é seu e da página que apresenta. Deve consultar o Sistema Internacional de Unidades: https://www.bipm.org/utils/common/pdf/si_brochure_8_en.pdf. Ou então até um dicionário: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/minuto, um dicionário especializado: https://www.infopedia.pt/dicionarios/siglas-abreviaturas/min ou a simples Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Minuto. Ou seja, o símbolo é min.
    Mais cuidado antes de escrever e nesse tom.
    Mais uma vez, desviamo-nos do assunto.

  11. tá bem abelha, o erro é meu e das norma internacionais (ISSN 1831-5380). nem percebo como é que bruxelas perde tempo com estas cenas quando poderia oficializar as pédias que para aí flanam.

    “Mais cuidado antes de escrever e nesse tom.” – qual é o problema? fazes figura de parvo por conta de outro e ainda não deste por isso.

    “Mais uma vez, desviamo-nos do assunto.” – qual assumpto? aquela cena do assassinato é assumpto? dass… e noção, sabes o que é?

  12. Ficou demonstrado que está errado, bem como a página que apresentou. Veja a versão em inglês, por exemplo, onde está certa a indicação: https://publications.europa.eu/code/en/en-5000300.htm. Tome lá mais: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/sobre-os-nomes-e-simbolos-das-unidades-fisicas/3260 (astrónomo e físico Guilherme de Almeida), https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/o-simbolo-de-minuto/18756. Quer leis? Aí tem: https://dre.pt/application/dir/pdf1sdip/2010/12/23400/0544405454.pdf.
    Ainda vocifera? Que pobreza, enxergue-se.

  13. Ó Cabral, os espanhóis também devem ser afrancesados, mais até do que nós, pois só têm Asesinato. Falta-lhes lá um Guégués, pobrecitos.
    Eu prefiro Assassinato a Assassínio (forma que jamais utilizei) também por uma razão fonética: é que Assassínio soa quase igual a Assassino.
    Quanto a Purista não ter um sentido pejorativo, é mentira. É quase sempre assinalado um elemento de excesso, de pedantismo ou de afectação no purismo, tanto nos dicionários de ontem como nos de hoje. Já os franceses, que inventaram o termo, definiam Purista como “Alguém que se gaba de uma grande pureza de linguagem, até com afectação. Os puristas são pessoas difíceis de satisfazer, não acham nada a seu gosto” (dic. Furetière, 1690).
    Os puristas resistiram sempre à adopção de palavras estrangeiras, aos neologismos em geral, às evoluções semânticas, às novas formas sintácticas, etc. São nacionalistas rançosos, defensores de uma mirífica “língua pura” que parou no tempo… ou que nunca existiu.
    Quando os puristas propõem alternativas nacionais aos malvados termos estrangeiros, geralmente saem coisas hilariantes, como, por exemplo, Balípodo, Podosfera e Ludopédia em vez de Futebol.
    Para terminar, uma história. Fernando Pessoa escrevia razoavelmente bem em português, segundo se crê, mas detestava os purismos e os puristas. Quando um caça-pintelhos qualquer o corrigiu por ter escrito “ter que” em lugar do purista “ter de”, Pessoa repôs o “ter que” e acrescentou: “como em português”.

  14. Não é do francês , o asesinato español, este deriva de asesino , uma espanholização do árabe hashsha-shin , fumador de hachiche . no tempo do Cid , havia uns mouros que gostavam de brocas e eram muiiito maus e faziam trabalho de sniper e de aí o asesino.
    adiós.

  15. O recurso a coisas centenárias continua da sua parte, creio que a propriedade para falar de puristas ou de purismo já se esgotou, especialmente com termos como «nacionalistas rançosos» ou «língua pura» (coisa que não existe em parte nenhuma). Além de que os exemplos de purismos que menciona, como balípodo (extravagância apenas do gramático brasileiro Castro Lopes), podosfera (ainda maior extravagância que nem consta nos dicionários e é usado, sim, em referência a “podcasts”) e ludopédio (este tão raro que até existe um programa em exibição na RTP que o inclui), serem palavras de laboratório e alternativas pouco credíveis perante o já aportuguesado e plenamente aceitável “futebol”, nada tendo, pois, que ver com purismos. Resumindo, faz-se pouca ideia do que se está a falar.
    Quanto à querela do “assassinato”, nada de novo foi acrescentado, e já me pronunciei.
    Sobre “ter de”/”ter que”, consulte este artigo de Maria Regina Rocha para saber a diferença (Pessoa, se fosse vivo, também deveria lê-lo; acontece aos melhores): https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/duvidas-sobre-o-ter-de-e-o-ter-que/14247.

  16. sapador, sapador…é feio gozar assim. a wiki chega para quem nunca ouviu falar nos Nizaríes e não quer ouvir falar mais.

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