Pedro Mexia, homem da cultura mas não do cultivo

«Há uns meses, consultando o arquivo Eduardo Lourenço para organizar uma antologia temática que sairá em breve, fiquei impressionado com “a vida do espírito” que aqueles papéis documentam. Uma divisão inteira da Biblioteca Nacional com centenas de pastas de correspondência, fotografias, fotocópias, recortes de imprensa, manuscritos e dactiloscritos, ínfimas agendas totalmente preenchidas de anotações, lembretes, aforismos, esboços, diários, pequenos ensaios. Um espólio atento, interrogativo, inquieto, a gaveta igual à obra, a obra igual ao homem.

O Prof. Eduardo Lourenço ensinou-nos o que ficou nos livros, o que fica dos livros. Mas com o seu exemplo aprendemos que é possível que a inteligência não degrade as virtudes antigas, como aquela comum decência que, segundo Camus, vem antes de qualquer ideia abstracta, por mais que essas ideias nos confortem e nos transformem.»


Pedro Mexia

?

Transmite imediata simpatia, ou então ausência de antipatia. Os seus modos contidos, sóbrios, estão em perfeita harmonia com o berço aristocrático e o estatuto de intelectual. E como intelectual tímido, armado em dandy que não aceita armar-se em dandy, move-se nos corredores alcatifados da elite ocupando diversos cargos de alto prestígio; de que o menor não é ser o actual consultor para a cultura da Casa Civil do Presidência da República. Trata-se, pois, de um rapaz que não deixará ninguém ficar mal se o levarmos a uma reunião de família ou aparecermos ao seu lado num foyer, numa vernissage ou numa sessão da Cinemateca.

Embora também tenha molhado os pés na política partidária em regime salta-pocinhas (por exemplo, ajudou em 2019 a Dra. Assunção Cristas a terminar mais cedo a sua carreira política), ninguém saberia quem era o fulano para além dos maluquinhos que lêem, vêem e ouvem as secções de cultura na comunicação social não fora a sua presença no elenco do “Governo Sombra”. Foi lá parar depois de recusar continuar no “Eixo do Mal”, para onde tinha ido a pensar que a função consistia só em mostrar erudição avulsa e em doses homeopáticas. Assim que percebeu que se esperava dele trabalho político e energias bélicas para fazer frente à esquerdalha, saltou logo fora. Já o “Governo Sombra” tinha o irresistível apelo de não ter essa exigência, antes prometendo ser uma infantilóide sátira aos programas de comentário político para públicos que queriam rir com o famoso Ricardo fedorento. “É mesmo aqui que eu quero estar, é disto que a minha carreira precisa, risota e vedetismo para polvilhar por cima do árduo e solitário caminho de subir aos cumes da “vida do espírito” e daí contemplar os abismos da existência”, pensou o ensaísta e poeta Mexia quando lhe disseram que havia bom dinheiro para lhe pagar e tudo.

Feita a introdução, vamos às interrogações. Como é que uma inteligência brilhante, a sua, que consegue relacionar as “virtudes antigas” (sejam elas quais forem, que há para todos os gostos) com a “comum decência” em Camus (seja lá o que isso for, desconfiando que nunca o apanharemos a explanar), aceita passar por hipócrita no acto mesmo de homenagear quem alega ser seu mestre exemplar? É que este melro não é apenas um leitor de livros difíceis (difíceis para o vulgo ignaro, claro) escritos por antiquíssimos gregos e romanos, ele também se licenciou em Direito. E se há algo que podemos legitimamente acalentar a respeito dessa gente que passa anos a estudar as leis é que, no final do processo, o diploma signifique que conseguiram adquirir algumas luzes, por mais fracas e à beira de se apagar em que se encontrem, acerca do que seja um Estado de direito democrático. Será pedir muito?

Ora, o que Mexia faz no “Governo Sombra” é algo que jamais Eduardo Lourenço aceitaria fazer, podemos começar por concordar. Isto porque não há memória de alguma vez se ter visto Eduardo Lourenço a ter em público um qualquer comportamento, dito ou gesto que se possa associar ao conceito de indecência na sua elástica semântica. Acontece que não estamos perante um caso único, uma ave rara, pois seria possível reunir milhares, até milhões, de outros portugueses, cidadãos, seres humanos, que igualmente passaram os seus dias comportando-se decentemente e esperando que os outros lhes correspondessem com uma comum decência que não precisa da caução de Camus nem de uma genealogia da moral.

Sim, pá, despachar eulogias faz-se na boa mas tu sabes, e melhor do que nós, que o espantado e trágico Eduardo Lourenço jamais teria dito isto que se segue, nem que lhe prometessem fortunas, tronos e impérios:

«Acho que, a partir do momento em que elas estão no espaço público [as escutas a Sócrates], parece estranho fingir que elas não estão. Houve uma pessoa qualquer que se levantou num programa de televisão para não comentar escutas. Isso não faz sentido, pois apesar de tudo estão no espaço público, acho um preciosismo. Tudo isto é divertido, tudo isto nos ajuda a formar uma convicção; que neste caso percebe-se qual é... Qualquer pessoa que a ouça, não é? Quando ouves aquilo, quase só mesmo o círculo mais próximo dele é que não fica com aquela convicção.»

Sabes, não sabes? Ou estarás a precisar de reler o Camus, desta vez com um explicador ao lado?

10 thoughts on “Pedro Mexia, homem da cultura mas não do cultivo”

  1. Tudo bem espremido : “Não tenho nada a dizer sobre o texto do Pedro Mexia, mas ele não passa dum reles sacana que disse, e ainda diz, mal do Socrates, portanto quero que ele morra, ele e todos os cães da sua laia.”

    Não devias desbaratar tanta raiva cega e provinciana. Senão, quando envelheceres mesmo, ja não vais ter temas para resmungar e vais ter de te contentar com a temperatura da sopa.

    Boas

  2. fizeram um funeral católico a um agnóstico, certamente contra vontade do próprio e cumplicidade da família, para mais uma sessão pública e televisionada da série deus, pátria & autoridade. não houve desacatos nem perturbação da ordem pública, tudo numa nice. o caixão top, em forma de portugal, foi mais uma genialidade presente do design contemporâneo nacional. portantes a padralhada, o célinho, o agnóstico costa e restantes figurantes, incluíndo a camisola da catarina martins estão de parabéns.

  3. Quem achar que JM Tavares é a pessoa mais obcecada pelo Sócrates em Portugal, venha a este blogue: não fosse a excelente qualidade da prosa e ausência de citações, dir-se-ia que era o próprio a escrever, mas na terceira pessoa, tipo o Jardel.

  4. JPT o Tavares ainda é a pessoa mais obcecada com o demo? Pensei que ele ao ouvir Miguel Sousa Tavares numa entrevista radiofónica que lhe fez, tinha perdido um bocado dessa pulsão…

  5. Mas vale ainda a pena comentar figurões como os do “Governo Sombra”, principalmente o tal Tavares, uma das NÓDOAS mais brilhantes do jornal Público (o Mexia é apenas “bom rapaz”)? Isso é o que eles querem: protagonismo.

  6. que eu saiba fez uma coisa completamente indecente , o génio retroactivo ( o bloguista José M. Graça é o máximo) que foi visitar o demo no inferno de Évora. “diz-me com quem andas dir.te-ei quem es “, como pensam os milhares , milhões !, de portugueses decentes que não querem ser confundidos com psicopatas e que cunharam o proverbio.

  7. Valupi, a crítica moral acerca do pensamento de trolha, burlão, venturista, anti-estado-de-direito e de total incompetência e imoralidade jurídica inscrita no texto, só peca por defeito.
    Como jurista além de ensaísta, poeta, crítico de literatura, poesia e cinema, conselheiro cultural presidencial e um, também, considerado pensador da nação tinha obrigação de fazer juízos com argumentação lógica, fundamentada, esclarecida e não com base no facto de que alguém (alguém, quem?) não quis debater acerca de escutas. Alguém não quis debater, porquê? Não disse, nem explicou.
    Mas de tal facto tira conclusões imediatas, proverbiais, simplórias, oraculares que dão para tudo (sobretudo para fazer chalaça como é próprio do “governo sombra”) e como as do célebre juiz; “quem vende cabritos e cabras não tem” ou da yo; “diz-me com quem andas dir-te-ei quem és”.
    Quem disse a Mexia que ele tem razão e não o tal “alguém” que não quis discutir assuntos de K7 com convesras pessoais familiares ou de amigos de casa e café que até foram obtidas ilegalmente e acerca das quais o Presidente do Supremo já tinha considerado como escutas ilegais e que, além disso, não continha a ponta de corno de informação prestável ao célebre caso do “atentado contra o Estado de Direito por meios pacíficos”. Leia-se na revista “Referencial” Nº 138 da Associação 25A o artigo, já aqui referido, de Noronha de Nascimento; “O lado obscuro do Ministério Público”.
    Será que Mexia que anda por fora dos meandros da justiça na babugem das tv, do cds, do Marcelo e dos jornais sabe mais da poda do que quem anda lá pelo interior mesmo no centro!
    Foi tão só por “alguém” levantar o cu da cadeira da tv que a Mexia lhe cheirou mal e logo ali formou uma “convicção”? Tão forte que ele soube logo ali conviccionou, de seu faro infalível, qual o sentido, valor moral e justeza de sua convicção.
    Ó Mexia, lá por andares metido nessa charada humorística do fedorento-mor e do “eu e eles” à maneira do venturinhas não tens obrigação de ser igual a eles, porra!
    Nem fingires que és mais sério o que te denuncia e faz, também a mim, formar convicções acerca da tua honestidade intelectual.

  8. “Mas com o seu exemplo aprendemos que é possível que a inteligência não degrade as virtudes antigas, como aquela comum decência que, segundo Camus, vem antes de qualquer ideia abstracta, por mais que essas ideias nos confortem e nos transformem.”

    Mexia disse bem. Mas ele não aprendeu. Nem ele nem outros tantos canalhas que esta semana se puseram em bicos dos pés.

    https://tvi24.iol.pt/sociedade/eduardo-lourenco/filosofo-visita-socrates-na-prisao

  9. Só um pequeno aparte derivado do comentário da/do you: esse diz me com quem andas… Não se aplica fora do círculo de Sócrates ? Porque não vejo muita gente preocupada com essa questão a propósito da dupla passos/ relvas… é só um exemplo

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *