Outrora agora

«O leitor deve estar certo de que, por aquele tempo, monopolizavam a curiosidade pública as variadas peripécias da Guerra da Crimeia.

Cecília era obrigada a ler aquelas descrições de carnificina que todos os dias enchiam as colunas dos periódicos; isto o fazia ela sempre com a cara contraída de desgosto.

Manuel Quintino era pelos aliados, José Fortunato esposava a causa dos russos — um e outro sem saberem bem porquê. Cecília era só pelos mortos e feridos.

Um dia, parou no meio da descrição de um dos mais sanguinolentos encontros dos dois exércitos, para interpelar o pai sobre a causa desta guerra implacável.

A pergunta embaraçou consideravelmente Manuel Quintino, que olhou para o Sr. José Fortunato, como a ver se lhe vinha auxílio dali; o Sr. Fortunato o mais que pôde dizer foi: — «Que a guerra era lá por causa de umas coisas.»

Cecília também não exigiu saber mais.

— «Os russos. — leu ela naquele serão — fazem fogo durante a noite sobre o campo dos aliados; estes abstêm-se de responder.»

— Têm medo — comentou logo o Sr. José Fortunato, com um sorriso.

— Isso é plano! — acudiu Manuel Quintino, com ares de quem entrava no mistério.

— «Os atiradores aliados respondem, porém, de dia com proveito» — continuava Cecília.

— Então? Era ou não era plano? Eu logo vi — exclamou Manuel Quintino, exultando.

— Balas perdidas — replicava o outro, encolhendo os ombros com desdém.

— «Os soldados — prosseguiu Cecília — pedem com entusiasmo ao general em chefe que dê a batalha» — e, acabando de ler isto, fez um gesto de aversão.

— Pois vão para lá! — respondia o Sr. José Fortunato, como homem que conhecia a preceito os recursos de defesa da praça.

— «Em Sebastopol há 2000 bocas-de-fogo» — lia ainda Cecília.

José Fortunato olhou para o seu amigo, com gesto provocador e triunfante; parecia que o convidara a atacar, propondo-se ele a defender com aqueles auxiliares.

Em seguida Cecília leu que Vassif-Pachá acabava de tomar o comando do exército da Ásia.

Foi a vez de Manuel Quintino pagar o gesto do outro, como se depositasse grande confiança no Vassif e nas operações campais do exército da Ásia. Mas o gesto de triunfo foi maior ainda quando ouviu que, a 30 de Janeiro, partira para a Crimeia Ulrich, que ele não sabia quem era, com a guarda imperial francesa; José Fortunato só teve, a compensar-lhe o receio desta acometida, a notícia de que estavam 6000 russos em Pruth.»


Uma Família Inglesa_Júlio Dinis

18 thoughts on “Outrora agora”

  1. a crimeia foi e será sempre a primeira a rebentar no realismo do medo, das balas perdidas que só apanham inocentes. e depois, no romantismo do detalhe do sangue e das lágrimas, resta o silêncio do porquê. porque nunca há razão pertinente para a guerra, para quê perceber aquilo que contraria total e valentemente o progresso e a evolução humana? a guerra é a maior e mais dolorosa forma de humilhação da vida colectiva – isto é realismo; a guerra é a maior e mais dolorosa forma de humilhação dos afectos. percebemos mais e melhor, através da guerra, a guerra nunca é dos outros nem no país dos outros, a guerra é sempre de todos nós, que nada sobrevive para lá dos afectos. o romantismo pode salvar-nos de nos diluirmos na realidade. um bocadinho que seja, sentir como uma brisa.

  2. É muito raro comentar neste blogue porque regra geral seria contrapruducente, mas desta vez vale, que muito bem lembrado e que naco de prosa este do Júlio Dinis, a história a repetir-se como farsa (sorte a dele que no seu tempo não havia armas nucleares).

  3. outrora e agora : são sempre os mesmos a fomentar e a lucrar com as guerras. há famílias que vivem disso há séculos , estão quase todas na América , mas tem “filhos” no mundo inteiro .

  4. Este post ’tá mais sossegadinho, por isso deixo aqui uma sugestão:

    Estive a ouvir um programa na Antena1 intitulado “Radicais livres”. Conta com a presença de um gajo que não gramo, de seu nome Jaime Nogueira Pinto e outro de quem não gosto chamado Pedro Tadeu.
    Se estiverem interessados em ouvir esta discussão, mais fundamentada, que contextualiza o conflito de outra forma, vão reparar , forçosamente, que o jornalista está completamente desfazado por se encontrar embebido na básica narrativa dominante. Vale a pena.

    https://podcasts.apple.com/pt/podcast/a-crise-ucraniana/id1472217322?i=1000552295582

  5. nada vale a pena, Vieira, para uma alma que seja pequena – pequena onde não cabe a básica narrativa que se quer sempre dominante: a da sobrevivência que se impõe, pela força e pelo terror, à da liberdade de viver. estou farta de aturar o chico-espertismo das narrativas alternativas e elaboradas que esquecem a vida e a sua condição de liberdade.

  6. “… não gramo, de seu nome jaime nogueira pinto e outro de quem não gosto chamado pedro padeu.”

    duas faces da mesma moeda, liberalismo neo-conservador, fachismo, racismo e banonices.
    não gostas, mas vais consumindo e recomendando filhos da puta, por conveniência ideológica e programática.

  7. Façam o amor, não façam a guerra, amar é tão mais bom, o meu ex-marido era russo, bonitão e fez-me um filho….

  8. Inácio:
    Só quis demonstrar que não são apenas os teus odiados “comunas” que abordam o tema a partir de outro ponto de vista.
    Claro que não ouviste, nem queres saber de nada que não esteja dentro dos parâmetros homologados mas, também, não estava à espera de outra coisa da tua parte.

    Olinda:
    Para não ir mais longe, desde 2001 que mundo está pejado de guerras, chacinas, massacres, ocupações, atropelos ao direito internacional e às resoluções da ONU. Só Israel, neste assunto, ostenta um palmarés invejável.
    Sabes o estado em que se encontram, em termos humanitários, os países intervencionados à boleia da “Guerra ao terror” ?
    Não sabes, não queres saber e tens raiva de quem sabe.
    Sabemos falar, neste blogue, do problema da credibilidade do jornalismo e da desinformação, mas quando toca a ponderar um pouco o contexto informativo em que se desenrola uma guerra entre potências, já podemos engolir tudo o que nos fornecerem de um só lado sem pestanejar.

    É que os outros são pretos e muçulmanos, certo? Ou comunas, não é?
    Um embargo a Cuba que dura há mais de 40 anos? Tá-se bem.
    Por ex: A Penélope chegou a referir que não existe consenso entre palestinianos no que respeita à configuração do pretendido estado e a ligação à Faixa de Gaza. Pelos vistos, que ninguém reparou na transformação dos mapas desde 1948.
    Não têm estado, portanto, não têm soberania, portanto não são povo, são feios e cheiram mal. Que se fodam.

    O “lado dos bons” é fácil, é barato e dá milhões. Para não falar que são agressivos, arrogantes e prepotentes como o caralho!
    Não interessa a opinião de quem não surfar na onda. Que a justiça ou a democracia se fodam porque estão certos.
    Desde que estejam do lado dos fortes, fingem que defendem os fracos e apoiam a guerra aos “maus”, sem perguntar nada.
    Deviam questionar TODAS as guerras, não apenas esta.
    Miseráveis!

  9. Vieira, não vou voltar a dizer o que já disse porque cabe em todas as guerras nas suas variâncias: tudo começa e acaba pela usurpação da liberdade nas mais variadas formas em que esta se assume. o resto são retalhos e detalhes que se perpetuam em quem pela guerra passa, a guerra, essa invenção sórdida que só serve aos monstros que dela precisam para valorizar a paz.

  10. “Só quis demonstrar que não são apenas os teus odiados “comunas” que abordam o tema a partir de outro ponto de vista.”
    qual é a diferença que encontras entre as abordagens do facho e dos comunas? nenhuma, tudo farelo do mesmo saco. tu bates palmas e ficas deliciado com esse quadro enternecedor, um facho da aristrocracia salazarista que se junta ao filho do jardineiro para venderem supremacia, nas versões racista e moral, respectivamente. parvos do caralho, a desorganização mental é tanta que já não se lembram do que combatiam ou se calhar fingiam que combatiam.

  11. A Europa, toda rota, faz a mesma coisa que fez quando a União soviética invadiu a Hungria, invadiu a Checoslováquia…uma vergonha de museu arruinado que se transformou a Europa.

  12. Bem, mais um pouco de bate-boca que não leva a nada, mas enfim:
    Tu és uma joia de pessoa com quem dá gosto falar. A tua argumentação centra-se na parvoíce idiota com laivos poéticos, temperada com vernáculo da barracaria e a perspicácia de um taxista.
    Baseias-te na ofensa e no ataque de caracter para discutir qualquer assunto. Seja futebol ou física nuclear, tens tempre o mesmo tipo de argumentação porque, com tanta estupidez que sai desse teclado, às tantas, já nem te lembras do tema.
    Pode ter piada quando um gajo não tem nada para fazer mas, depois, começa a cansar tanto copy/paste comentado com essa raiva que até dá vómitos.
    Quanto ao trauma, já percebi: Foste violado em criança por um comunista russo, certo?

  13. retirei estas duas frases que me parecem mais significativas da tua reflexão sobre ofensas e ataques de carácter.

    “Tu és uma joia de pessoa com quem dá gosto falar. A tua argumentação centra-se na parvoíce idiota com laivos poéticos, temperada com vernáculo da barracaria e a perspicácia de um taxista.”

    “Quanto ao trauma, já percebi: Foste violado em criança por um comunista russo, certo?”

  14. Essa foi golpe baixo, meu.
    Também estava a molhar na sopa, não sou perfeito.
    De qualquer forma, são mais constatações do que ataques de carácter. É o que se depreende, naturalmente.
    Já agora, se quiseres ser minimamente honesto, também podes comparar os comentários em que tentei, construtivamente, argumentar alguma coisa que fizesse sentido, com as tuas simpáticas respostas iluminadas.
    Acho que ficas a ganhar.

  15. Olinda,
    Para não variar, disseste: Nada.
    Muito concretamente, em relação a Gaza, Cuba, Iraque, Afeganistão, Líbia, Iémen,… Nunca saíu uma frasezinha espirituosa, cheia de poesia, sensibilidade feminina e mais trêtas falsas que tentas transmitir. Ai! Que riso!
    Neste caso, enquanto os coitadinhos dos ucranianos estiverem a chacinar os “maus” das províncias separatistas, estás na boa. Não falam disso nas Tvs, não é?
    Assume, mas é, a tua futilidade hipócrita e deixa-te de merdas.

  16. qual é a diferença que encontras entre as abordagens do facho e dos comunas? nenhuma, tudo farelo do mesmo saco. tu bates palmas e ficas deliciado com esse quadro enternecedor, um facho da aristrocracia salazarista que se junta ao filho do jardineiro para venderem supremacia, nas versões racista e moral, respectivamente

    DIGAM-ME QUE ISTO É SOBRE ISRAEL!!!!

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