O ministro da Defesa não especulou

Futebóis à parte, é raro, raríssimo, discordar da opinião política do Pedro Adão e Silva. Mesmo quando calha não concordar, tal não implica que esteja em desacordo. Posso, não concordando, reconhecer o mérito de uma divergência ou oposição. E devo, e mais ainda nas vezes tantas em que se trata de dados e referências que desconhecia, apreciar e agradecer a informação relevante que traga para as análises. Isto porque a forma como fundamenta os seus raciocínios exibe os traços essenciais da cultura académica, onde é obrigatório justificar com o máximo de honestidade intelectual possível os fundamentos donde se parte e as conclusões a que se chega num qualquer exercício pensante. Pensar, na tradição académica cuja origem é o legado da Filosofia Grega, não se confunde com o fluxo mental e verbal que perpassa espontânea ou intencionalmente por uma consciência humana sem necessária coerência nem necessário sentido. Pensar, sendo característica comum às ciências naturais e humanas, empíricas e teóricas, mais matemáticas ou menos, consiste em elaborar demonstrações que ambicionam um qualquer grau ou tipo de universalidade. Com esta ressalva: a universalidade não é um equivalente da “verdade”, antes um núcleo conceptual documentado que fica como património intelectual comum da humanidade se for habitado por outras consciências que lá cheguem através do mesmo caminho pensante. Esta tipologia argumentativa ainda é uma minúscula minoria no comentário político, sendo usual tropeçarmos na tradição litigante e tribunícia cultivada pelos profissionais de Direito, onde os sofismas são a munição corrente, ou na tradição propagandista ubíqua na imprensa, onde a retórica inflamatória e as distorções factuais são a convenção que preenche e extravasa as secções de opinião.

Fazer comentário político na comunicação social, porém, é algo muito diferente de fazer investigação e exposições na academia. O Pedro Adão e Silva comentador está perfeitamente adaptado aos limites e condicionalismos das intervenções que faz na TV, rádio e jornais, conseguindo comunicar com eficácia seja qual for o constrangimento do meio e situação em causa. Na terça-feira da semana passada gastou pouco mais de 1 minuto para comentar a entrevista de Azeredo Lopes e respectiva polémica. E despachou o assunto dizendo isto:

"O caso da Defesa é um episódio bastante insólito. Porque as responsabilidades de um ministro da Defesa não são iguais às responsabilidades de um ministro da Educação, da Saúde ou da Segurança Social, e foi o ministro que se colocou numa posição de ter mais responsabilidades políticas. Devo dizer que li com estupefacção a entrevista do ministro neste fim-de-semana ao Diário de Notícias e à TSF, porque acho que o ministro da Defesa tem como dever apurar as responsabilidades e proteger a instituição militar, e tem de dar garantias sobre a segurança nacional. Foram tudo coisas que ao longo destes meses o ministro não foi capaz de fazer. E o que é que fez? Dúvida metódica; quer dizer, faz da dúvida metódica o alfa e o ómega das suas intervenções sobre este tema. E isso não é o papel de um ministro, e muito menos da Defesa. O ministro da Defesa não especula, e o que o ministro da Defesa voltou a fazer foi especular. E eu devo dizer que isso é uma coisa que me surpreende bastante."

É raro, raríssimo, discordar da opinião política do Pedro. Daí não querer perder esta oportunidade de discordar com toda a cagança e toda a pujança que conseguir reunir neste HTML. Começo por admitir que o factor tempo, isso de o moderador ter colocado o tema em discussão quando estavam em cima do final do programa, terá influenciado a sua mensagem. Talvez sabendo que teria à sua disposição 10 minutos de paleio ele tivesse, pelo menos, conseguido justificar as suas reacções e carimbos. Mas não foi o caso, e nada sabemos, de forma aferível, acerca do que o levou para a opinião que assumiu. Nesta, tropeçamos num discurso voluntariamente emocional, onde quem fala pretende anunciar uma grande perturbação, um choque: “episódio insólito“, “li com estupefacção“, “que me surpreende bastante“. Pelo meio, alega que o ministro está a ser irresponsável, mas não diz porquê nem em quê. Limita-se a fazer variações redundantes da ideia de falha funcional do ministro. Finalmente, e esta é a parte tangível que permite ligar a sua intervenção à fonte e dinâmica da polémica, alega que o ministro da Defesa fez especulações; portanto, que fez algo que não pode fazer sob pena de ser veementemente denunciado pelo Pedro. Por aqui, estamos na dimensão em que o título da entrevista, uma invenção perversa dos jornalistas que não corresponde ao que foi declarado pelo ministro, se constitui como a matéria-prima da polémica. Curiosidade: não tratou o ministro pelo nome.

Esta patarata mas relevante questão dos efeitos causados pelas opções editoriais do DN começa e acaba no título dado à entrevista: «“Não sei se alguém entrou em Tancos. No limite, pode não ter havido furto”». As aspas fazem crer que estamos perante uma citação integral, mas não estamos. Em parte alguma da entrevista o ministro afirma o que o título lhe atribui. Os jornalistas colaram e alteraram partes de duas respostas para criarem uma manipulação sem defesa possível (pun intended).

Para a primeira parte do título, foram buscar o começo da resposta dada a “…Esteve alguém dentro das instalações que não era suposto estar?“. A pergunta é cavilosa, ou tão-só parva, porque pressupõe que o ministro, naquela entrevista, pode dar uma resposta satisfatória; isto é, definitiva ao se basear nas conclusões dos inquéritos. Só que não pode, pois a investigação está em curso, daí a forma como inicia a fala, com uma expressão exclamatória, de impaciência. Quem se der ao trabalho de ler a resposta do Azeredo encontra uma posição imaculada em defesa da separação de poderes, adversa a qualquer tipo de especulação. Atente-se na ironia: é exactamente por não pretender fazer sequer um esboço de especulação que o ministro refere – no contexto dessa pergunta – que não sabe se alguém entrou nas instalações. Qual é a alternativa desta posição? É a contrária, pois estamos num binómio, a de o ministro enquanto ministro saber ou ter um qualquer palpite a respeito do que factualmente aconteceu e achar que o deve divulgar.

Para a segunda parte, foram buscar o final da resposta dada a “Falou numa concentração deste tipo de instalações. Já está escolhido o sítio?“. Quem se der ao trabalho de ler o texto completo constata que o ministro está a expor precisamente aquilo que está ao seu alcance mudar no imediato, e o que já começou a mudar. A lógica dessas alterações levaram-no a querer ilustrar o seu alcance dando um exemplo que nomeia o acontecimento de Tancos em investigação. Ele não está, neste passo, a fazer qualquer especulação, ao contrário. Volta a ironia: ao pretender mostrar que se podem evitar especulações como aquelas que circulam actualmente, daí as decisões que refere que visam alterar aspectos estruturais e funcionais na forma como se guarda o armamento militar, Azeredo forneceu aos jornalistas um conjunto de palavras que podia ser usado para se criar uma mentira que quebrou a patilha de segurança posta no uso da expressão “por absurdo“. Na resposta à armadilhada pergunta seguinte – “Mas está convencido de que houve furto?” – chega a invocar a sua honra para garantir que não quer fazer especulação alguma, que o seu estado é de ignorância absoluta até que as autoridades respectivas apresentem as suas conclusões.

Todas as respostas que deu, inclusive aquelas relacionadas com as declarações de Marcelo, são apropriadas, coerentes, sensatas e convencionais. Aparece a dar conta do que fez e a fazer pressão, ao lado de Marcelo, para que os agentes judiciários sejam o mais rápidos que conseguirem nas investigações dado o que está em causa: a segurança nacional e o prestígio e organização das Forças Armadas. Só que à sua frente estavam dois jornalistas que, em secções de editorial e opinião, tinham-se exibido nas semanas e meses anteriores furiosos contra o Governo por causa dos acontecimentos em Pedrógão e Tancos. As posições que nesses textos exploraram com retóricas sensacionalistas são a origem daquele título, num mecanismo psicológico de confirmação e reforço das críticas negativas que assinaram. Optaram por lançar para o espaço público um título traiçoeiro, vingativo. Uma verdadeira notícia falsa.

Quem é académico tem essa acrescida responsabilidade de cultivar uma independência intelectual que não se deixe atrofiar pelos laços afectivos e afinidades de grupo. Quem é investigador nas áreas das ciências sociais e políticas não pode alegar incapacidade cognitiva para entender o processo que leva à criação daquele título e de como ele induz em erro a sua audiência e promove uma deturpação no espaço mediático ao serviço de agendas políticas e pessoais. Neste tempo em que o fenómeno Trump corresponde – nas origens sociológicas, no calendário e nos efeitos – à maior ameaça que alguma vez a imprensa livre de todo o mundo enfrentou, ver Pedro Adão e Silva a não ter o discernimento crítico para interpretar, na esfera das técnicas de comunicação e dos modelos psicossociais, o que Paulo Tavares e Anselmo Crespo fizeram configura “um episódio insólito”. Mas ver o Pedro a violentar caricaturalmente o discurso de Azeredo Lopes, de uma forma que até ofende a inteligência do público a quem se dirige, é algo que “me surpreende bastante” e que registo com “estupefacção”.

5 thoughts on “O ministro da Defesa não especulou”

  1. «… e foi o ministro que se colocou numa posição de ter mais responsabilidades políticas.»

    O Adão queria dizer “que se pôs a jeito”, como já vem sendo, para quem anda atento, seu fundamento habitual.
    E quanto mais cadeirões académicos, mais espaços de comentário escrito, mais tempo de microfone e sobretudo mais tempo de antena com espelho e tudo bem regado para fazer crescer a conta bancária, também cada vez mais os seus ‘fundamentos’ se vão modelando ao sentir, à forma e ao pensamento de quem lhe dá a palavra.
    Mais um Pacheco, uma Clara, um fedorento a caminho de mais um ‘observador’ de estilo novo. É preciso renovar para voltar a enganar o pagode que os antigos já todos os topam.

  2. fiquei a pensar que na política, por entre razão e emoção, comunicar é exibir – não a emoção – o comportamento onde habita a emoção. comunicação límbica.

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