O jornalista

O jornalista tinha despachado um tríptico sobre o tribalismo. Magnífico. Três sovas três na malvada esquerda. Culpada de tudo e, em especial, do triunfo de Trump e da erupção do Ventura. A esquerda, com o seu fanatismo religioso, reinventou a inquisição para castigar os deploráveis, noticiou o jornalista.

Depois desse homérico esforço, o jornalista sentiu falta de prestar um serviço à sua tribo. Pelo que foi a correr alistar-se na milícia que persegue a ministra da Justiça. Contradição? Nenhuma. Para ensinar o povo acerca dos malefícios do tribalismo dos outros é necessário ser-se especialista no tribalismo dos seus. E o jornalista teve engenho e arte para escolher o bom tribalismo, aquele que odeia o mau tribalismo. Numa feliz coincidência, o bom tribalismo tem bom dinheiro para gastar com caluniadores profissionais. Pelo que no dia 5 de Janeiro lá deu notícias frescas sobre o plano de Costa para meter a sua bandidagem a controlar a Justiça.

O dia 6 de Janeiro costuma seguir-se ao dia 5 do mesmo mês, e neste ano não foi diferente. Pois o jornalista passou grande parte desse tal dia 6 a olhar para o televisor. Havia cegada no Capitólio, vidros partidos e chatices. A consequência de a esquerda dizer coisas feias dirigidas aos deploráveis tinha provocado aquele sarilho, concluía o jornalista agastado. Que mais é que eles podiam fazer, coitados? Quem é que, sentindo-se perseguido pela esquerda e suas “palavras-cianeto”, não sente um irreprimível desejo de fazer 300 km para ir defecar num corredor da sede do poder democrático dos Estados Unidos da América? É que, enfim. Nisto, o jornalista olhou para o relógio e assustou-se. Já eram onze da noite e ainda não tinha enviado o texto para o jornal. Saltou para o computador e teclou furioso sobre o assunto mais importante do dia que estava prestes a acabar, um artigo de António Cluny.

Os dias continuaram a passar, numa monotonia implacável. Aquilo na América, causado “pelos autoproclamados progressistas” e a sua “obsessão pela pureza da alma”, continuou a entreter o Mundo e a dar conteúdo a historiadores. Nada que impressionasse o jornalista. Ele não tinha escolhido a heróica vocação jornalística para se deixar levar pelos diabólicos truques da esquerda, useira e vezeira na “sacralização de certos valores “. O jornalista faz como os deploráveis vítimas dos “justos” e da Hillary Clinton, igualmente caga nesses valores. Daí ter continuado impávido e valente a dar notícias preciosas a respeito dos temas da actualidade em que nos devemos concentrar. No dia 9 de Janeiro, cuidado com o Sócrates. No dia 12 de Janeiro, a culpa não é do Ventura. No dia 14 de Janeiro, não sei quê das vacinas.

Não é para qualquer um ser como o jornalista. É preciso estar disposto a radicais sacrifícios. E, como se vê, o jornalista não teme passar por marciano distraído. Alguém tem de denunciar os planos da esquerda que nos quer tiranizar, roubar as pratas e engravidar as filhas. Ainda não chegámos à América, informa o jornalista.

5 thoughts on “O jornalista”

  1. Valupi,

    (Este comentario contribui para a lamentavel descida de nivel deste blogue que tenho incansavelmente denunciado, mas paciência)

    Devias ver a importante decisão do TEDH contra Mediapart (acordão de 14 de Janeiro de 2021) que diz que é perfeitamente legitimo punir jornais que publicam escutas ilegais. Eu, que como sabes sou um liberal inveterado e irresponsavel, acho a decisão lamentavel e uma restrição problematica do direito de informar. mas enfim, parece que ela esta relativamente bem fundamentada (ainda não li tudo) e vem confortar os numerosos posts e comentarios que por aqui se leram sobre os abusos na publicação ou utilização das escutas àquele antigo ministro do ambiente, como é que ele se chama, bom v. sabem de quem estou a falar.

    Ver detalhes a partir de aqui : https://www.echr.coe.int/Pages/home.aspx?p=home&c=fre

    Quem é que é amigo, quem ?

    Boas

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