O busílis da questão

André Lamas Leite parece ser jurista e decente, decente e jurista. Seguramente, dele não podemos dizer – como há a dizer do seu colega de lides jurídicas, e de pasquim, Francisco Teixeira da Mota – que promove o populismo judicial e persegue uma certa força política ou os políticos por atacado. Em vez disso, temos do professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto regulares exercícios técnicos adentro das ciências jurídicas. A propósito da polémica a respeito da directiva sobre poderes das chefias no Ministério Público, deu-nos este saboroso naco argumentativo:

«Ora, a autonomia interna – na vertente em que os procuradores que têm fundadas razões de facto e de Direito, devidamente fundamentadas, para considerarem dada ordem de superior hierárquico gravemente violadora da sua consciência jurídica – impede, em meu juízo, que se possa caracterizar a relação intercedente dentro da estrutura do MP como de verdadeira hierarquia, mas sim em sentido impróprio. É certo que se não trata da independência que a CRP garantiu aos juízes, devido às suas funções, mas também não foi intenção do legislador constituinte que quem ocupa uma posição mais baixa nesta hierarquia imprópria não possa manifestar a sua discordância e que tal fique a constar do processo. Só assim se assegura que a garantia de respeito por uma autonomia técnica reconhecida aos magistrados do MP – ainda que limitada – não é letra morta.» <- Fonte

Só para entendermos os itálicos teríamos de fazer umas cadeiras numa escola de Direito jeitosinha, para entrarmos a fundo na problemática precisávamos de ler pelo menos metade dos calhamaços que o ilustre André papou. Porém, para um leigo armado aos cucos, o que o parágrafo oferece ao pensamento é algo deste género: “A autonomia dos magistrados do MP (como qualquer outro constructo jurídico) não pode ser definida com rigor apodíctico por causa da amplitude e ambiguidade semântica inerente à língua natural, daí valer tudo para qualquer.” Ou seja, quando se disputa qual foi a “intenção do legislador constituinte”, independentemente da matéria em causa, é avisado reconhecer que, falhando nalguma das partes em confronto a honestidade intelectual, a probabilidade de irmos parar a um concurso de erística é mais alta do que a de continuarmos a ver o Sporting sem um título de campeão no futebol nos próximos 30 anos. Dito ainda de outra forma, tudo no Direito, incluindo os códigos legais, começa e acaba na interpretação. E assim tem de ser, pois a letra é inferior ao espírito.

Neste litígio que serve os interesses de um sindicato avesso ao Estado de direito, SMMP, o autor optou por apoiar o ridículo e sinistro Ventinhas. A forma como o faz permite a exploração política que talvez não seja da sua responsabilidade, isso de o título e o destaque do artigo estarem a promover a tese da “politização do MP” como plano de Lucília Gago. É uma opção editorial que o texto não suporta explícita e veementemente, daí apostar que foi obra do editorialismo sectário do jornal. Porém, colhe pegar precisamente nessa arma de arremesso e virá-la ao contrário. Leia-se o original completo:

«Aqui está o busílis da questão: um MP politicamente condicionável não leva a juízo factos com relevo criminal em que haja suficiência de indícios, pelo que os mesmos não serão sequer julgados. O MP é a mola propulsora do sistema penal.»

Podemos deixar na borda do prato a inverosimilhança – a impossibilidade política, social e comunitária – de existir algum caso na Justiça portuguesa onde “factos com relevo criminal em que haja suficiência de indícios” sejam abafados por ordem de uma chefia do Ministério Público, especialmente se envolvessem figuras públicas, basta que demos atenção ao seu reverso. Com o actual enquadramento estatutário no MP, quão fácil será levar a juízo factos com relevo criminal em que haja insuficiência de indícios? E quão difícil será levar a juízo factos sem relevo criminal? Ao não se pronunciar sobre estas possibilidades, André Lamas Leite ignora a fáctica judicialização da política e a politização da Justiça que têm moldado o devir político em Portugal desde 2004 com a criação do caso Freeport por políticos e agentes policiais e da Justiça, quiçá desde o caso Casa Pia. Será que este senhor também ignora que “levar a juízo” um adversário político num caso em que acabe ilibado é o suficiente para o derrubar? Será que este articulista desconhece as consequências sociais e políticas, eventualmente profissionais e até de saúde, de ser-se arguido num caso com dimensão mediática, mesmo que nem sequer haja acusação? Será que este cidadão convive tranquilo com a condenação sem provas directas – pena celebrada como exemplar pelo seu peso nunca antes registado num tribunal português – de um ex-político, e isto num processo judicial de exploração sensacionalista, persecutória e caluniosa com garantido e vastíssimo impacto político? Será que este académico também ignora que termos um Ministério Público que decide investigar políticos de uma certa área e não investiga de modo igual políticos de outra ou outras equivale a termos uma polícia política?

O busílis da questão, portanto, é outro: que leva esta pessoa que parece jurista e decente a alinhar com os pulhas?

9 thoughts on “O busílis da questão”

  1. e porque quer o superior ter o poder de decidir o que pode ser ou não ser levado à justiça ? os procuradores são alguns atrasados sem competências ?

  2. “os procuradores são alguns atrasados sem competências ?”

    Pois, yo-yo, minha cara, ou meu caro, em muitos casos de que vamos tendo novas pela comunicação social, se não são, parecem. Não todos claro, mas bastantes.

  3. 1 – “Será que este cidadão convive tranquilo com a condenação sem provas directas (…) de um ex-político?”

    2 – “Será que este académico também ignora que termos um Ministério Público que decide investigar políticos de uma certa área e não investiga de modo igual políticos de outra ou outras equivale a termos uma polícia política?”

    3 – “O busílis da questão, portanto, é outro: que leva esta pessoa que parece jurista e decente a alinhar com os pulhas?”

    RESPOSTAS:

    1 – Convive, sim senhor.

    2 – Não ignora, não senhor, mas “convive tranquilo” com isso. Ou melhor, está-se a cagar para isso.

    3 – Esta última é fácil. O cidadão em causa, porque se está a cagar para 1 e 2, apenas confirma que tem cu, e por isso medo. Elementar, meu caro Watsonupi!

    Quanto aos procuradores, é há muito sabido que optam pela profissão os licenciados em Direito intelectual e profissionalmente mais fracos (com poucas excepções), quando tomam consciência de que na advocacia, seu objectivo inicial, nunca passarão da mediocridade, condenados a uma vida extremamente trabalhosa e remuneratoriamente pobre, ou mesmo paupérrima, em permanente concorrência com outros medíocres como eles. Joões Araújos não há muitos.

    Ainda que com menos gravidade, coisa parecida acontece com os juízes. É, aliás, sintomática a batota a que os futuros procuradores quase generalizadamente se dedicam nas provas a que são submetidos quando entram no CEJ com vista à sua sofisticada “formação”. Copianços, conhecimento antecipado de questões a solucionar, etc., como há poucos anos foi noticiado e certamente recordará quem não perdeu completamente a memória. É esta a moralidade de muitos dos administradores da justiça (e da moralidade) que nos couberam, e caberão, em sorte.

    O que fazer? Essa também é fácil! Oremos.

  4. Fartinho , isso é o que se passa com os políticos , psicopatas com anseios de poder e burros que nem portas , ainda por cima dados à corruptela , portanto , a supervisão por um nomeado politico não serve para nada que nos interesse aos cidadãos vulgares.
    Fartinha de maus políticos -:)

  5. Os Académicos, de um modo geral, vivem e (e)laboram no mundo estratosférico da espuma, muitas vezes sem sequer alguma vez terem sentido o sabor, ou até o odor, da cerveja.
    Os senhores doutores vêm descobrir agora o que qualquer Técnico Superior da Administração Pública descobre logo no seu segundo ou terceiro mês ao serviço do Estado: a sua capacidade para manifestar discordância, ou para não violarem a sua consciência técnica, mesmo quando estão em causa regulamentos e a legislação em vigor, está rudemente limitada, salvo raras e mui honrosas excepções, pela discricionariedade e prepotência da sua hierarquia.
    Mas se isto é o oito, o que se passa no Ministério Público é o oitenta: dê por onde der, cago para a hierarquia e faço o que me aprouver!

  6. yo-yozinh ( a ou o, à escolha do freguês), a conversa era sobre procuradores do MP, ou não?
    Chama-se a isso fugir com o cú à seringa, ou estará V. Senhoria a defender a corporação a que pertence? Se não está, olhe que parece.
    E sim, repito o que antes escrevi, “em muitos casos de que vamos tendo novas pela comunicação social, se não são, parecem. Não todos claro, mas bastantes.”!!!

  7. então, se não têm competências para a função , despeçam-nos. como é que são selecionados ? melhorem os critérios de modo a não necessitarem de babysitter.

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