Num país de otários

O aumento da desigualdade europeia deve-se, segundo Passos Coelho, tanto "à irresponsabilidade a nível nacional" como ao facto da Europa, "por distração ou negligência", ter consentido essa irresponsabilidade.

Fevereiro de 2014

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Ninguém, a não ser o indivíduo pago pela Lusa para escrever “facto da Europa”, ligou a estas declarações do Pedro. Por boas razões, elas não tinham nada noticiável a não ser o terem acontecido. O serem um facto (algures na Europa). E também porque elas são a repetição da cassete. Todavia, não é por a cassete ser repetida até ao ponto de passar despercebida que a sua intenção perde eficácia. Trata-se de uma cassete de sucesso, de uma cassete popular. Ao ser repetida em surdina continua a ser escutada como música ambiente, mesmo que conscientemente já não apareça no mapa da atenção.

Vejamos como funciona. Começa por se mostrar a ligação à realidade. Na realidade, as desigualdades têm aumentado entre os países europeus. Daqui, parte-se para a sua explicação. Isto porque o Pedro está em condições de explicar, talvez porque tenha estudado, ou talvez porque tenha pensado, ou talvez porque alguém lhe explicou. Ou talvez por ser evidente; sendo que nem todos, quiçá poucos, conseguem aceder às evidências – porque, enfim, se a maioria da população, ou a maioria dos políticos, tivesse como evidente o que o Pedro nos informa ser a evidência, então o problema já estaria resolvido ou em vias de se resolver, em vez de estar a aumentar.

Pois é, o Pedro está em condições de explicar o facto de a Europa estar como está. Foi assim: a nível nacional, irresponsabilidade; a nível europeu, distracção ou negligência. Vejamos com mais vagar. Todos os países onde se deram retrocessos na igualdade, sejam eles quais forem os países e os retrocessos, comungam de uma singular causa para tal fracasso. Essa causa é a “irresponsabilidade”. Mas o que será a irresponsabilidade no contexto em que o Pedro discorre? Será que os processos democrático e legal foram interrompidos e os governantes desses países deixaram de prestar contas às instituições e ao eleitorado? Ou será que o Pedro nos está a dizer que considera irresponsáveis tanto os governantes, como as instituições, e ainda os eleitorados, desses países que ficaram para trás? Interrogações análogas para a explicação relativa à Europa. A “distracção” foi causada por que outros estupendos distractores? Mas se foi “negligência”, e dados os resultados tão graves dela, quem são os responsáveis? E num caso como no outro, não estaremos, portanto, nós os que sofremos com essas falhas da Europa, em condições de pedir uma indemnização posto que houve uma entidade muito mais forte que permitiu o regabofe quando era seu dever educar-nos e salvar-nos da nossa própria irresponsabilidade?

Esta cassete funciona há séculos. É a mais velha técnica da oligarquia para gasto em democracias. Consiste em reduzir a política à moral. A moral serve aqui para desqualificar o adversário, reduzindo-o a uma caricatura. Na versão do Pedro, os adversários são transformados em crianças que se comportaram como criançolas. E a “Europa” é transformada num contínuo de escola, daqueles manhosos que passam o tempo a ler o jornal ou nem aparecem ao trabalho enquanto a rebaldaria se instala no recreio. Resultado: agora o Pedro vê-se obrigado a mandar sair os jovens do País, a tirar o dinheiro à classe média, a levar os reformados para um final de vida muito pior do que aquele com que contavam, a deixar na indigência um número indeterminado de irresponsáveis e ainda a ter de convencer a população de ser, por actos e omissões, a principal culpada pelos presentes e futuros sofrimentos.

Esta cassete é repetida por muito infeliz e por muito maluquinho. Não é esse o caso do Pedro, de todo e absolutamente. O Pedro não é irresponsável, não está distraído, nunca foi nem será negligente. O Pedro sabe muito bem o que anda a fazer num país de otários.

3 thoughts on “Num país de otários”

  1. Mas, o reduzir a política à moral … pode dar para o azar!
    Até porque, rezam as crónicas, o pedro sempre foi alguém
    muito dado à imoralidade logo, será um não político que
    não dispõe de um mínimo de credibilidade! Mais dia menos
    dia, terá à perna um qualquer mascarenhas a fazer um exaus-
    tivo levantamento da sua vida, registos de queixas nas esqua-
    dras da polícia, castings e outras pequenas irresponsabilidades!!!

  2. os imbecis precisam do miguel relvas,como de” pão para a boca”. ele ai está, para vender gato por lebre!

  3. Pedro Passos Coelho inverteu a semântica, pois a verdade inconveniente é que a Europa foi irresponsável, ao criar uma zona monetária única incluindo países tão distintos. Quanto ao nosso país, fomos uns distraídos, outros negligentes, ao termos acreditado em, ou tolerado, a adesão à Zona Euro, com as exigências orçamentais que isso acarretava e sem estarem garantidas, à partida, políticas que compensassem a nossa falta de competitividade. Foi uma negligência — das elites nacionais — bem como uma distracção — do povo, em geral.

    Quanto às “cassetes” do neoliberalismo, o assunto até é interessante… Milton Friedman, que foi um dos principais criadores do neoliberalismo, serve hoje de fonte a grande parte das frases feitas. A principal característica da propaganda política é a repetição acritíca, ao estilo publicitário, de slogans ideológicos, mesmo quando o contexto torna a mensagem completamente incoerente. Isso faz, hoje, Passos Coelho; o que, vindo de quem vem, não me surpreende.

    Só que o próprio Milton Friedman — o criador da ideologia de que Passos é adepto — disse, logo em 1997, que a criação da Zona Euro era um erro. A ideologia é diferente da minha, mas a conclusão é a mesma. E tem que ser a mesma pois qualquer ideologia que não adira minimamente à realidade teria pernas curtas, como acontece à mentira, no ditado popular. Vejamos, então, o que escreveu Friedman sobre o euro, antes mesmo de ser criado:

    “O mercado comum europeu exemplifica uma situação desfavorável a uma moeda comum. É composto por nações separadas, cujos residentes falam línguas distintas e têm muito mais lealdade e ligação ao seu próprio país do que ao mercado comum e à ideia de “Europa. Mesmo sendo uma área de comércio livre, os bens movem-se com menos liberdade do que nos Estados Unidos, e o capital também.
    […]
    … a regulação das práticas empresariais e laborais é mais extensiva que nos Estados Unidos e difere mais de país para país do que de um estado americano para outro. Resulta assim que os preços e os salários na Europa são mais rígidos, e a mão-de-obra menos móvel. Nessas circunstâncias, as taxas de juro flexíveis oferecem um mecanismo de ajustamento extremamente útil.

    Se um país é afectado por choques negativos que obrigam a, por exemplo, salários mais baixos relativamente aos outros países, isso pode ser obtido através da mudança de um único preço — a taxa de câmbio — em vez de exigir a mudança de milhares e milhares de itens em tabelas salariais, ou a emigração do trabalho. Os sacrifícios impostos à França pela sua política do “franc fort” ilustram o custo da decisão, politicamente motivada, de não usar a taxa de câmbio para ajustar [a economia francesa] ao impacto da unificação alemã.”

    Texto completo (uma leitura do mesmo deveria ter sido T.p.C. para o Passos Coelho, quando andava na Lusíada) em:

    http://www.project-syndicate.org/commentary/the-euro–monetary-unity-to-political-disunity

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