Marques Mendes, o pontífice e o seu rebanho

«José Sócrates, o País já não tem uma dúvida a esse respeito, usa e abusa das manobras dilatórias. Quer dizer, tem um conjunto de direitos que a lei lhe dá mas abusa desses direitos. Portanto, recursos, reclamações, um conjunto de incidentes. Com o objectivo de adiar o mais possível o julgamento, e até de tentar que o processo vá prescrevendo; ou seja, que vá acabando na secretaria. Este caso também mostra que há uma justiça para ricos e outra para pobres. Isto não é fazer demagogia, é objectivo, é óbvio. Quem tem dinheiro, tem recursos, e portanto pode pagar a advogados e ter outro tipo de despesas, consegue tudo isto. Que a lei vai permitindo, mas que eu acho que é um abuso da lei.

[...]

Isto não é justiça nem é combate à corrupção. O segundo ponto aqui importante é o seguinte. O caso José Sócrates, mas também há outros casos. Quer dizer, em Portugal eu acho que tem que haver outra prioridade no combate à corrupção. Nas investigações e nos julgamentos. É um problema das leis estarem desadequadas e permitem manobras dilatórias, então é preciso haver a coragem de fazer alterações às leis para impedirem estas situações.

[...]

Olhe, na semana passada eu disse aqui uma coisa e queria repetir até porque me perguntaram. Disse aqui: o futuro Presidente da República, seja ele qual for, ninguém sabe quem vai ser... mas eu acho que tem de ser, com a fragmentação que há no nosso Parlamento, tem que ser um construtor de pontes, aproximar posições para se resolver algumas questões, para se fazer algumas mudanças. Agora, perguntado onde, aqui está um exemplo, dos prioritários: combate à corrupção! Tem que ser mais firme e tem que ser mais rápido, nas investigações e nos julgamentos, mudando as leis, não para retirar direitos às pessoas mas para evitar os abusos, abusos, que é isso que se trata!»

Marques Mendes

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Tudo claro como água. Marques Mendes está em campanha eleitoral para as próximas presidenciais, deseja ser a escolha do PSD. O seu marketing já tem um primeiro slogan e jornalistas propagandistas: “construir pontes“. A outra banda onde pretende chegar nesta fase de lançamento é o Chega e a restante direita decadente que se arregimenta bovinamente ao som da palavra “corrupção”. Um tipo de corrupção, explicou entusiasmado este conselheiro de Estado, que se resolve mudando as leis.

Como é que a corrupção pode acabar, ou sequer ter alguma redução, através da legislação? Não pode, como toda a gente sabe, a começar pelo Marques Mendes. Mas isso não o impede de prometer tal violando os direitos de personalidade de Sócrates. Tratando esse cidadão como se já estivesse condenado por corrupção e com a sentença transitada em julgado, dá para reduzir o problema da corrupção ao outro problema de se ver quem se considera inimigo político a defender-se usando as leis. Aqui chegados, por uma das pontes móveis que construiu num estúdio da SIC, fica realmente simples reduzirmos esse tipo de “corrupção”: basta reduzir os direitos e garantias dos restantes cidadãos. Sim, é outra vez o Estado de direito a ser transformado, pelas vedetas da indústria da calúnia, numa coisa desprezível que serve os interesses da bandidagem, que a protege, que impede a sua caça e castigo — eis o subtexto que agita em sinal aberto.

O senhor promete, se eleito Presidente da República, que o “combate à corrupção” passará a ser mais “firme” e mais “rápido”, e isto tanto nas “investigações” como nos “julgamentos”. A partir do Palácio de Belém, ele irá obrigar o Parlamento a fazer leis anti-Sócrates, o corrupto abusador da legalidade. A beleza, até magia, da sua retórica é que não tem de explicar ponta de um corno acerca do que as actuais investigações, a cargo do Ministério Público, e actuais julgamentos, a cargo dos juízes, terão de frouxo e lento. Mas a pulharia e os broncos dispensam interprete porque falam a mesma língua. Um tronco de árvore grosso e uma corda à mão é a imagem prototípica da tal justiça “firme e rápida” que o ilustre advogado dá a papar à iliteracia e ódio político do seu público-alvo.

A parte em que denuncia haver uma “justiça para ricos e outra para pobres”, detalhando que na primeira consegue-se recorrer às tais leis que só existem para realmente serem usadas, é de antologia. E concordo muito com o seu aviso de não estar a fazer demagogia ao tocar essa cassete populista. Fazer demagogia ainda implica algum esforço cognitivo, conduzir o gado para o curral apenas pede uma vara na mão.

8 thoughts on “Marques Mendes, o pontífice e o seu rebanho”

  1. Há tempos a CS tinha divulgado que o Conselheiro de Estado, Marques Mendes, tinha um processo no tribunal acusado de difamação, emperrado desde há anos. Marques Mendes invocava o seu estatuto de Conselheiro de Estado, para protelar indevidamente o processo em que era acusado.

    Será que comportamento pode ser considerado como dilatório?

  2. Curioso que não se critique:
    * A opção, por parte do MP, de instruir um processo único, com milhares de páginas e anexos, dezenas de acusações e testemunhas
    * A morosidade, por parte dos juízes, em responder aos múltiplos recursos legitimamente interpostos pela defesa.

  3. Como é possível que se inverta a lógica das coisas pondo-as de pernas para o ar e haja tanta gente que seja levada a pensar o mundo ao contrário? Como é possível que me torturem para confessar falsidades e depois me acusem de ser falso por não acusar? Como é possível alguém tentar subornar-me e depois acusar-me de corrupto por não me deixar subornar?
    Parece mentira mas é possível e só é possível a quem tem poder para isso. Até Deus que é omnisciente e omnipotente inventou um diabo qualquer que o quer enganar e quanta gente não acredita nisso?
    Pois, esta história da “dilação” premeditada que levou até à demora de dez anos para levar Sócrates a julgamento, é uma dessas narrativas postas a andar viradas de pés para o ar. Então, quem é o dono e tem o poder de preparar, orientar, comandar, controlar, contabilizar e cronometrar o processo? Quem é o árbitro responsável pelo jogo de julgar implícito ou inscrito no processo? Quem define as faltas e as deve fazer respeitar e cumprir rapidamente com o mínimo de perda de tempo? Na edificação de uma obra quem cuida do respeito pelo cumprimento do prazo de execução? Quem dá as ordens, estabelece prazos parciais, quem controla e vigia pelo cumprimento do plano de trabalhos para cumprimento de prazos? E, no final, caso os prazos vão além do previsto sem motivos de força maior são aplicadas multas por incumprimento.
    Na vida real, a prática de fazer, construir não se compadece com o anunciar e esconder, com o fingir e inverter as situações com jogos de palavras circulares ou paradoxos como o há-de-vir impronunciável e outros truques falaciosos.
    Os fulanos como os malandros políticos calculistas-oportunistas tipo marquito Mendes ou a anita Gomes são coristas de ddt que dançam coreografias definidas e velhas como a História do mundo.

  4. O Lawfare fez ricochete no Brasil e nos EUA. Se José Sócrates fosse a eleições teria mais votos do que alguns pensam.

  5. «Se José Sócrates fosse a eleições teria mais votos do que alguns pensam.»

    Neste país de carneiros e cornos mansos, não me espantava. Basta entrar num café ou restaurante e ouvir os comentários da malta lá sentada – ‘ele é que é esperto!’ ou ‘se fosses tu não roubavas também? ai não que não roubavas!’ – quando aparece um político, trafulha ou mamão na TV.

    Ainda mais que os Relvas, Varas e 44s, o pior deste país é esta manhosice chico-esperta, eu-cá-fazia-o-mesmo, pode-ser-que-sobre-algum-para-mim que corrói qualquer hipótese de uma democracia séria e informada. Assim só é possível isto que temos: uma partidocracia podre, apática e corrupta, onde máfias concorrentes e cronicamente impunes vão alternando no poleiro e no pote.

    A ausência de uma cultura política informada e exigente – em vez da pulhitiquice e bitaitaice que enche os dias nos me(r)dia – cria este eleitorado acarneirado, afutebolado, ignorante, que confunde arrogância com ‘carisma’, fura-vidismo com ‘coragem’ e premeia o rouba-mas-faz. Para gente assim o 44 é um candidato ideal: determinado, pesporrente, aldrabão, corrupto até à medula. Um herói.

  6. https://conversa2.blogspot.com/2015/10/o-44-e-ex-namorada-de-socrates.html

    “Ando há meses com vontade de dizer isto, e vai ser hoje: trocar o nome de uma pessoa por um número é uma estratégia para ferir deliberadamente a dignidade humana. Em termos simbólicos, chamar “44” ao José Sócrates não é muito diferente de lhe tatuar esse número no braço. Em termos simbólicos, repito. Durante meses, uma certa comunicação social usou e abusou dessa estratégia e não foi impedida, por quem de direito, de introduzir nos nossos costumes uma prática de raiz ideológica nazi.”

  7. chamar 44 ao zezito é a lei do menor esforço a funcionar , nada mais. chamo botas ao salazar , por exemplo , porque é mais curto .

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