Não é só na esquerda que está em curso um movimento de placas tectónicas como não conhecemos nos quarenta anos anteriores, nesta experiência de termos PCP e BE a aceitarem ser parte (mesmo que periférica, mas concomitantemente estrutural e, por isso mesmo, radicalmente cultural) da governação. Na direita, no deserto causado pela saída de Portas e pela continuação de Passos, igualmente se contempla o fim de um paradigma (no caso, marcado pela decadência) sem que se vislumbre qual será o seguinte (podendo até vir a ser pior). Exemplo maior deste trânsito, Marcelo está no olho do furacão da crise que tem demolido a direita partidária e ideológica.
Ninguém melhor do que o folclórico Rui Ramos para ilustrar o drama. Eis o que ele escreveu nas vésperas da vitória de Marcelo nas presidenciais:
Marcelo Rebelo de Sousa é mesmo um candidato livre e independente, e é disso que os oligarcas não gostam.
[...]
Ao regime convém um presidente com força própria, que lhe permita nomeadamente ser flexível. Marcelo Rebelo de Sousa tem essa força. Tem a força de um dos mais longos percursos públicos da democracia. Tem a força de quem avançou sem precisar de avales de panteão. Tem a força de quem aceitou o apoio de partidos, mas não o pediu. Tem a força de quem fala para todos, sem clubismos ideológicos. Não é apenas o melhor dos candidatos que se apresentaram. É o melhor de todos os candidatos que se poderiam ter apresentado, desde logo porque teve a coragem de se apresentar. Desculpem, mas nunca houve eleições em que a escolha fosse mais óbvia. Se mesmo assim há um problema, não é Marcelo Rebelo de Sousa.
Marcelo Rebelo de Sousa, obviamente
Nesta ode desvairada, Rui Ramos tenta entrar em diálogo com os fanáticos à direita que queriam outro Cavaco Silva para fazer a folha ao Costa e que lamentavam essa perda por antecipação, pois Marcelo não lhes estava a dar os sinais de querer ir por esse caminho de guerrilha sórdida e boicote institucional. A sua mensagem é “Calma, pessoal! O Marcelo é cá dos nossos e não deixará de os foder quando for a altura. Só que vai fodê-los ao seu estilo, um bocadinho mais elegante e charmoso do que o golpista anterior.” De lá para cá, o vento mudou e ela não voltou. Passou um ano e meio de marcelite aguda. Eis-nos em Pedrógão, um feliz acontecimento na vida publica do Rui. Tomai e comei um pedaço do seu entusiasmo:
Pedrógão-Grande é a maior vergonha do actual regime. Morreram dezenas de pessoas, por falhanço de um Estado que continua a falhar: passado mais de um mês, ninguém desfez as incertezas mais básicas, ninguém explicou, ninguém pediu desculpa, ninguém se demitiu, e parece que o dinheiro da solidariedade ainda está para chegar a quem precisa.
Notavelmente – aliás, misteriosamente – num texto onde denuncia “a maior vergonha do actual regime“, o nome Marcelo Rebelo de Sousa e as palavras Presidente da República não aparecem. Vamos recapitular: Rui Ramos, licenciado em História e doutorado em Ciência Política (Oxford), consegue dissociar o maior escândalo do regime e o Chefe de Estado nesse mesmo regime, como se habitasse numa ilha sem vivalma e já não se importasse de passar por maluco. Para lá dos aspectos cognitivos fascinantes nessa operação, o que podemos concluir, recorrendo ao bom senso tão bem espalhado pelo vulgo, remete para um regicídio simbólico. O seu herói a 19 de Janeiro de 2016 desaparece do palco e encontra-se agora, em 25 de Julho de 2017, em parte muito incerta, provavelmente no Inferno. Incapaz de o reconhecer no plano consciente, pois tal estilhaçaria a sua identidade tal como ele a constrói publicamente, o choque leva-o para o estalinismo: apaga-se o traidor da fotografia. Porém, o Rui tem uma poção mágica onde vai buscar a sua força argumentativa sobre-humana: o termo “oligarquia”. Cá está ele em acção:
A oligarquia no poder não é a melhor fonte para percebermos o que é lícito e moral. Esta semana, os oligarcas deram-nos a boa nova de que vivemos em democracia, isto é, num regime em que podemos perguntar e discutir tudo livremente, ao contrário do que acontece em ditadura. Ao mesmo tempo, porém, disseram-nos esperar que não fizéssemos perguntas nem discutíssemos a tragédia de Pedrogão-Grande, como alguns políticos e jornalistas, porque isso seria “aproveitamento político”, o que é “imoral” e portanto inaceitável. Em que ficamos? Pode-se ou não discutir tudo? Até onde chega a democracia em Portugal?
Pedrógão Grande: quem tem medo da “politização”?
É isto. É simples. Acossado e ressabiado perante as declarações do Presidente da República onde este deu dois tabefes na violência da direita fanática, a solução do Sr. Ramos passa por considerar Marcelo, o candidato presidencial que atestou ser detestado pelos oligarcas, como mais um deles, igual, provavelmente pior dada a desilusão amorosa causada. Chega ao ponto de conseguir chamar salazarista a Marcelo por carambola com o obsessivo ataque a Costa. Sendo então mais um dos oligarcas, o texto diz-nos que Marcelo quer destruir a liberdade e acabar com a democracia. Porque é isso que o bom povo faz, pela voz dos iluminados com cursos de História e doutoramentos em Ciência Política, quando se cavalga desenfreadamente uma tragédia como a de Pedrógão e se largam os cães de guerra sobre as suas vítimas. O povo quer linchamentos, fogueiras, sangue – desde que devidamente conduzido para os alvos que os iluminados anti-elites escolham do alto do seu superior discernimento. Quem se opõe ao povo livre, que pulsa e respira nos textos libertadores do Rui Ramos, está ao serviço dos oligarcas situacionistas que defendem um Governo de tiranos.
A lição, sem moral, é esta: a direita decadente, do ódio e do fanatismo, tem parasitado o espírito do tempo; a direita criativa, que traga inteligência e coragem, terá de nascer do espírito do lugar. Que lugar é este onde vivemos uns com os outros?
bom , temos aqui de facto um problema bicudo : se a direita desaparece , lá se vai o iniimigo comum das esquerdas , e , às tantas , as esquerdas começam a discutir entre eles quais as verdadeiras políticas marxistas segundo a bíblia o capital ( que aquilo , segundo parece , é passível das mais variadas interpretações ) e pronto , temos uma guerra civil e Portugal acaba num grande sismo espantástico como o blog 5 dias.
melhor porem uma velinha a são marcelo para ver se mexe uns cordelinhos e se substitui o zombie coelho por alguém vivo.
interessantíssima a questão que lanças. o espírito do tempo, sendo um lugar-comum, é a oposição do espírito do lugar onde – uns mais do que outros, habitamos: na vida, na energia vital, na razão e nas inteligências. da Cidade. para o bem comum.
hum , Olinda ,já informaste a comissão de física que encontraste um tempo sem lugar e um lugar sem tempo ? prémio nobel , de certeza :)
e se o prémio nobel não premiar todos os que encontram lugares sem tempo e tempo sem lugares, restamos desconhecidos. é o eterno desconhecimento de ser. bem bom, yo. :-)
este resume sempre bem as questões importantes . já enjoam os fait divers
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