As sentenças de Marcelo Rebelo de Sousa sobre os sentenciados do Face Oculta teriam sempre um interesse duplo, ou triplo. Tendo sido um dos mais notáveis, e sofisticados, divulgadores das campanhas negras contra Sócrates, o homem é também uma sumidade jurídica e desfruta de uma posição única na sociedade portuguesa: é presença constante na TV de sinal aberto, em horário nobre, com promoção e aparato de vedeta, onde defende as agendas mutáveis e plurais da direita com um domínio perfeito da linguagem televisiva. Nenhuma outra área política conseguiu tal feito.
Dividiu em três aspectos o seu julgamento. Primeiro, referindo o óbvio: o Face Oculta atinge Sócrates e o PS. Há danos inerentes. Depois, fazendo um exercício retórico habilidoso que consistiu em voltar a referir o óbvio, isso de as penas “terem sido muito elevadas” para o tipo de crimes em causa, e apresentando duas hipóteses explicativas da anormalidade. Na primeira, o Tribunal teria sido influenciado por uma suposta opinião pública já formada sobre os arguidos, assim levando os juízes a quererem corresponder à expectativa castigadora do povo. Na segunda, aquela que Marcelo considerou a mais importante, e aquela que deixou para último lugar na sua exposição, o Tribunal teria manifestado um suposto efeito desequilibrante na Justiça que leva ao aumento das penas em crimes contra o património por comparação com crimes contra a integridade física.
Não é um acaso esta teoria da valorização dos crimes contra o património ter ficado para o fim e ser apresentada como a explicação mais relevante. É que estamos perante uma patranha cabeluda, um “facto jurídico” herdeiro da melhor tradição dos seus “factos políticos” da era Expresso. É o próprio que começa por circunscrever o fenómeno a julgamentos com jurados, sendo a tese a de que eles se imaginariam mais facilmente a serem vítimas de ataques ao património do que à integridade física. Nenhuns dados estatísticos são apresentados, nenhuma referência a uma qualquer literatura científica é referida. Mas mesmo que o tivesse sido, este julgamento não teve júri. A prova da desonestidade intelectual está na sua conclusão de que nada se pode concluir, seja porque são raros os processos desta natureza, ou mesmo sendo este inédito em Portugal pela tipologia dos envolvidos e seus crimes julgados, seja porque precisaríamos de uma série longa para começar a perceber como é que as penas respectivas comparavam com esta em ordem a saber se estávamos perante a excepção ou a regra. Ou seja, voltamos a discutir o caso daqui por 100 anos, mínimo.
A hipótese de o Tribunal de Aveiro ter cedido ao clima populista geral, a ânsia de ver políticos no chilindró, é apresentada para que se saiba que o Marcelo sabe que isso também terá acontecido. E que ele aprova. Aprova porque as vítimas são xuxas, ainda por cima de raça socrática. Por isso não perde muito tempo com a coisa e embrulha-a no meio do falatório. Também aqui, porque tem a noção da enormidade que está a celebrar, remete para um futuro longínquo a avaliação do presente. Só com outros julgamentos iguais, em circunstâncias sociais iguais, é que daria para observar se a seta na balança sobe, desce ou mantém-se. Uma chatice, não pensemos mais no assunto.
Súmula objectiva do seu exercício:
– Marcelo atesta que as penas são muito elevadas, ao ponto do exagero caricato.
– Marcelo avança com duas explicações, enfatizando a mais inverosímil e inócua.
– Marcelo não faz referência à decisão de recolher o ADN dos condenados a penas superiores a três anos.
– Marcelo não faz referência à tese do procurador Marques Vidal em que este declarou em tribunal que o Governo de Sócrates violou o segredo de justiça ao descobrir, primeiro, a existência das escutas e, depois, o seu móbil, sendo por isso que o suposto plano gizado por Godinho não se concretizou com decisões governamentais.
– Marcelo não toca sequer ao de leve na novidade de pela primeira vez se ter espiado um primeiro-ministro através da Judiciária e do que se fez judicial e politicamente com os registos obtidos.
– Marcelo não recupera o choque entre as autoridades judiciais à volta deste caso, com os magistrados em Aveiro em conflito aberto com o Presidente do Supremo por causa de umas escutas sem qualquer relevância para o processo Face Oculta.
– Marcelo não retira consequências, para uma correspondente responsabilização das entidades judiciais envolvidas, das explicações que dá publicamente.
Ou seja, Marcelo abafa com rigor geométrico a dimensão política deste caso. Confrontado com o dado bruto das penas e sua desmesura, a explicação mais simples é anulada. A explicação mais simples não é a de que aqueles juízes são volúveis ao brado da turba-multa medido em capas do CM. A explicação mais simples ainda menos é a de existirem jurados, algures, que decidiram não sei o quê não sei quando. A explicação mais simples para aquelas penas, já para não falar na obtenção de prova no que ao Vara diz respeito, é só uma: castigo político. São os próprios responsáveis da investigação, do inspector Teófilo ao procurador Vidal, que publicitam a sua intenção persecutória contra aquele poder político.
Admitamos, para avaliação intelectual, que o Marcelo está cheio de razão. Admitamos que o processo Face Oculta não tem um pingo de motivação política. Nesse caso, será aceitável que um tribunal decida que alguns cidadãos podem ser castigados com penas acima da prática corrente só porque um juiz se lembrou de querer passar uma mensagem através do sacrifício da liberdade alheia? Será aceitável que um tribunal elabore as sentenças de acordo com a sua percepção do que seja a opinião pública do momento? Acaso essas eventuais práticas não são, precisamente, a negação da justiça? Acaso constatar que um tribunal corrompe a função suprema de que está investido não é muito mais danoso, muito mais grave, infinitamente mais perverso para a segurança da comunidade do que as supostas trafulhices do sucateiro e do amigo do outro?
Marcelo Rebelo de Sousa, um dos mais poderosos passarões da nossa elite, ri-se enquanto alvitra que há tribunais e juízes que são inimputáveis, distribuindo penas a bel-prazer que não carecem de justificação. A face oculta da nossa elite nunca teve razões de queixa da inimputabilidade dos justiceiros da Justiça. É só rir nesse meio onde se criam factos jurídicos.
O tempo que vivemos é o tempo dos marcelos rebelos. Estamos nisto vai para uma década. Não vejo como possamos sair daqui sem uma forte convulsão. A “justiça” deste processo ( e doutros que nem chegam a sê-lo, como o caso do Meco) é um sinal iniludível de que se atingiu o fundo dos fundos. Talvez, em lugar da convulsão, se corrija a coisa pelo cansaço ou devido ao cheiro insuportável. E o povo, como a nossa História demonstra, suporta muito bem o mau cheiro e por muitos anos e séculos. Uma questão de hábito.
Pois é Val, desgraçadamente, o País continua a ser dominado por estas “lavagens de cérebro” quer nas tvs quer nas rádios quer nas 1ªs págs dos CM…! Bastou ver/ser flagelado pelos comentários do fr.a fr. de ontem entre Costa e Seguro!
A “formatação mental” e a incapacidade de de opinião pública da maioria dos cidadãos leva a esta miséria em que nos encontramos…ou é como a Maria Abril diz.”É uma questão de hábito”…!
a excelência do texto faz-me querer fazer um acrescento ao título. com ou sem a tua permissão, com licença, chega-te para lá um pouco: marcelo e os factos jurídicos a martelo.
Maria Abril e Mendes a OCDE considera-nos, em termos de educação e ensino, atrasados e lentos comparativamente aos restantes com a excepção da Turquia e do México – mas isto só entre 2008 e 2011 porque miseravelmente hão-de faltar dados recentes para análise. quero dizer, então, que se os portugueses como vocês fazem análises tal e qual o relatório da OCDE é porque somos, de facto, por hábito, culturalmente – muito mais do que na educação e ensino – atrasados e lentos. e discordo redondamente.
é que o povo, há sempre excepções, que não tem o que comer, porque não tem emprego, não consegue alimentar o espírito: tem o focus nas necessidades básicas de nutrição, tecto e segurança. deve ser muito difícil a quem anda com a pança cheia de tudo perceber isto.