Intolerância máxima

Chama-se Manuela e devemos-lhe o sentido da curta e trágica vida que acaba de perder. A sua história é banal nisso de ser igual a milhares e milhares e milhares de outras: cumplicidade activa ou passiva das famílias, amigos e vizinhos com o agressor, continuação da convivência com o agressor, incapacidade de afastar o agressor.

Os homens que violentam as parceiras, podendo chegar ao assassinato, não decidem ter esse comportamento – eis o obrigatório começo da análise ao fenómeno. Eles também são vítimas, precisam de ajuda psicológica para lidarem com as suas profundas inseguranças e traumas afectivos. O facto da violência doméstica ocorrer em todos os estratos da sociedade, em todas as escolaridades, em todas as geografias, em todos os territórios ideológicos, implica aceitar a raiz antropológica, mais do que a cultural, como factor decisivo. A sexualidade é possessiva, o afecto (ou a falta dele) pode enlouquecer, os neurónios têm intenções que a própria intencionalidade desconhece.

Mas voltemos à Manuela. Não tinha de ser ela a ter a solução para o problema do Mário – isto admitindo que esse problema teria solução clínica ou terapêutica, o que não é certo. Nem tinha de ser ela a conseguir vencer o terror que a chantageava e mantinha como alvo indefeso. Não tinha de ser ela porque não foi a ela a criar a natureza humana. Teríamos de ter sido nós a protegê-la, porque são as comunidades que moldam a natureza, que nos civilizam. Uma comunidade é algo diferente da sociedade; nesta apenas temos de nos suportar, naquela cuidamos uns dos outros.

Nesses outros, a quem devemos o sentido da sua vida, estão o guarda morto, sua família e amigos. O aleatório infortúnio que os atingiu está aí à disposição para ser transformado num bem. Por exemplo, passando a esperar de quem agride as parceiras que, a qualquer momento, as possa matar. E mais: passando a esperar que quem mata uma mulher por ódio o fará a uma qualquer pessoa por loucura. Às forças policiais devia ser exigido que se vingassem, que fizessem pagar os injustos por aquele pecador. E essa vingança não tem de ser mais do que isto de tratar um agressor de mulheres como um potencial assassino de agentes da autoridade.

Em nome da Manuela, passemos a ter intolerância máxima para com o que ainda se aceita como natural na natureza humana.

7 thoughts on “Intolerância máxima”

  1. A Dona Marina:
    Quando fui transferido da Cadeia de Guimarães para a Cadeia Feminina de Felgueiras no ano de 1992, de entre quarenta reclusas que ali cumpriam pena de prisão, encontrei uma, que me fez lembrar uma senhora que todos os fins-de-semana se deslocava à Cadeia de Paços de Ferreira, visitar o filho que ali cumpria pena de prisão. Um dia em conversa com essa reclusa disse-lhe que a conhecia de qualquer lugar, ao que me respondeu que também me conhecia de quando ia visitar o filho me encontrava sempre na Portaria da Cadeia a desempenhar o meu serviço. Aí verifiquei que era a senhora que todas as semanas ali chegava sempre bem-disposta e dizia que sentia muita consideração por nós, porque aturávamos de tudo, já não bastava os reclusos que ainda tínhamos que levar com os seus familiares. Dizia-lhe que eram os ossos do ofício que tínhamos de estar preparados para essas situações. Que sentia mais pena por elas (familiares dos reclusos) que sofriam mais que eles, tanto fisicamente, eram dolorosas as horas de espera na fila, e emocionalmente. Quanto à espera na fila era desesperante, quando não se agrediam, discussões era o pão-nosso de cada dia, principalmente com a raça cigana que não respeitava ninguém.
    Perguntei à dona Marina, era assim que se chamava, o motivo que a levou a cometer o homicídio. Era o crime porque cumpria pena de prisão. Disse-lhe que já não bastava o tempo que andou a correr para as Cadeias a visitar o filho ainda tinha que cumprir esta pena por homicídio. Respondeu-me que tinha que suportar a cruz que lhe tinha sido destinada, ou antes as cruzes, porque a vida dela sempre foi um martírio. Além da infelicidade pelo filho passar quase a vida toda nas Cadeias ainda tinha que suportar o marido que era um alcoólico e lhe dava mau viver além das agressões físicas, que onde encontrou um pouco de paz foi desde que se encontra presa.
    O motivo que a levou a cometer o crime é que já não suportava levar tanta porrada e um dia encheu-se de coragem e matou-o á facada, para encobrir o crime queimou o corpo. Como não era visto um dia a Polícia Judiciária deslocou-se à sua residência vivia numa casa com o terreno todo murado, vendia sucata, para saber da ausência do seu marido e aí disse-lhes que o tinha matado e queimado. A Policia Judiciária não se acreditava o que a levou (Judiciária) a fazer uma peritagem às cinzas o que se veio a confirmar.
    Era uma senhora que me fazia lembrar a minha mãe, sempre bem-disposta, com bons modos para com todos os funcionários da cadeia e estes sempre com muito carinho por ela. Beneficiava da flexibilidade da pena, saídas precárias prolongadas e quando chegou ao meio da pena foi-lhe concedida a liberdade condicional. A partir daí nunca mais soube da dona Marina, julgo que não tinha mais família.
    Não se teria evitado este e outros crimes, se as entidades vocacionadas para o efeito estivessem a par destas situações? Claro que sim. Mas se tivermos menos serviços e complicações é o que nos interessa. O Delegado do Ministério Público não tem conhecimento destes actos? As violências entre casais não são um crime público? As forças de segurança não são sabedoras destas situações? Pobre justiça que só actua quando o mal está consumado. Depois é que a Segurança Social se prontifica a dar um apoio a estas vítimas, antes não levantaram uma palha. Julgo que dona Marina foi para qualquer lar de caridade.
    Este texto era para ser escrito no dia em que se celebrou o dia da vítima. Não o fiz pelo motivo de dizerem que a vítima tinha sido o seu marido. Quanto a mim muitas das vezes o que leva ao desespero e a cometer estes actos é o facto do mau trato que estas pessoas são sujeitas e depois estão por tudo, ou morrem ou matam. Não sei se não teria a mesma reacção.

  2. concordo contigo, Valupi, intolerância máxima para esta gente.

    aliás o agente da GNR só morreu porque foram demasiado tolerantes quando o prenderam. devia ter sido logo imobilizado revistado e algemado…

    tinha-se perdido menos uma vida.

  3. A Violência Doméstica vence quando o desalento cresce, quando a auto-estima decresce, quando o “Ego” deixa de se afirmar. Lutemos contra os atentados à Dignidade Humana, lutemos contra o ocultar dos casos de Violência Doméstica. Não tenhamos medo de “apontar o dedo” e denunciar estes actos intoleraveis.

    Cumprimentos da blogista, Planeta M

  4. Lamento as duas vítimas:
    Uma por tudo na vida lhe ser adverso há pessoas que não tem sorte nenhuma e lhe é madrasta. Outros por não serem zelosos com o seu serviço. Não revistarem cuidadosamente um homicida. Não é a primeira vez que sei de casos destes. Há anos na Cadeia de Guimarães, quando a GNR, ali foi levar um arguido com mandados de detenção dum tribunal, ao ser passada revista, depois de todas as formalidades, foi detectado na posse do arguido, um revolver e as respectivas munições. No trajecto do Posto da GNR, o arguido não fez asneiras porque não lhe apeteceu

  5. A violencia sobre as mulheres é, infelismente, “endémica” na nossa terra.Uma cultura machista assim determinou,e ainda não conseguimos sair daí completamente.A incompetencia de alguns agentes da autoridade é tambem “endémica” e isso custou a vida a uma mulher e a um homem.Parece que o assassino era um ex fusileiro,teria talvez problemas psicológicos, etc. etc.etc..Na pode repor as vidas ceifádas, inocentemente ceifádas.

  6. A nossa divisa parece ser: Mais vale remediar (impossível, nestes casos tenebrosos) que prevenir. Quando será que invertemos “isto”?
    Forçoso e urgente é regulamentar (muito bem) a nova lei sobre a violência doméstica.
    20 valores para o post.

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