Ilíada, Canto IX, 438-43

Não custa a entender. Quem defende o ostracismo de Ventura, recusando dar-lhe atenção e palco, está cheio de boas intenções: limitar a sua influência, manifestar a repugnância que a sórdida figura suscita, evitar lutar com o porco para não ficar emporcalhado. Acontece que quem assim pensa está também a pensar mal.

A Odisseia é muito mais popular do que a Ilíada mas é nesta que se encontra uma lição política fundante e fundamental: aquele que é bravo na assembleia é valente na batalha – aquele que for bravo na batalha será valente na assembleia. A capacidade de tomar a palavra e enfrentar a ameaça de injustiça, como faz Aquiles na abertura do poema na cara de um rei, não é menos heróica do que a capacidade de enfrentar Heitor junto às muralhas de Tróia. As gerações que vieram a criar a primeira forma de democracia beberam desde o berço esta e outras lições – onde o falar livremente numa comunidade, de deuses ou humanos, era toda a civilização.

Se João Miguel Tavares merece ser uma das personalidades mais importantes do regime, tendo-lhe sido oferecida a raríssima e supina honra de presidir ao mais densamente simbólico dos feriados patriotas, por que razão se foge do Ventura alegando ser má companhia? Um e outro devem o seu sucesso exactamente à mesma fórmula, tentam ocupar os mesmos segmentos de mercado. Ambos viram uma oportunidade na decadência da direita, afundada na impotência e no ódio, e criaram marcas fortes e independentes. Um tornou-se caluniador profissional especializado nos alvos de quem lhe paga. O outro alinhou com Passos e serviu de cobaia para se ensaiar em Portugal o radicalismo da direita inimiga dos direitos humanos. Loures só foi uma derrota nas urnas, no plano da inovação política corresponde a um triunfo da fórmula pois vimos um presidente do PSD, ex-primeiro-ministro, a promover e consagrar uma cópia à portuguesa de Trump. O caminho que trouxe o Chega para os boletins de voto ficou então aberto.

O equivalente da sonsaria torpe do bracinho do Ventura a simular a saudação nazi numa manifestação encontra-se nos artigos e intervenções deste Tavares entretanto rico quando ensaia a defesa do Estado Novo e a diabolização do 25 de Abril debaixo de camadas de torpe sonsaria inspirada em Rui Ramos e quejandos. Ambos, André e João Miguel, comungam da visão intencionalmente mentirosa e alucinada em que a corrupção é a mãe de todos os males, em que quase todos (ou todos, depende do espectáculo) os políticos são corruptos e fazem leis para blindarem a corrupção na impunidade, em que o Estado não presta e deve ser reduzido à expressão mínima para não andarmos a sustentar madraços e estroinas, e em que só Passos Coelho e Joana Marques Vidal nos poderão proteger dos monstros socialistas que nos querem devorar. Os públicos a quem se dirigem são uma mistela de fanáticos, broncos e descompensados.

O Daniel Oliveira, por exemplo, entrevistou com gosto e compadrio o caluniador profissional. E ouviu dele, sem ripostar, a celebração da actividade criminosa no seio do Ministério Público ao serviço de uma agenda de perseguição política. Que razões terá para continuar sem convidar Ventura para o Perguntar não ofende quando estamos, como diria o Jerónimo, perante farinha do mesmo saco? Acaso Ventura não é interessante e importante por desvairadas razões ou sob variegados pontos de vista? Acaso os seus ouvintes não adorariam assistir à conversa sobre a podridão de Pedroso, Vara e Sócrates? Ou será que o Daniel teme ficar outra vez em silêncio face às barbaridades que saíssem do boca do seu entrevistado e, nesse caso, tal já daria que falar, e depois era chato?

Deixar o Ventura, um hipócrita que se desfaz com um sopro de decência e duas ou três noções básicas de História, sem contraditório, olhos nos olhos e de peito cheio, acaba por ser um monumento ao estado degenerado da sociedade. Uma sociedade que tem alinhado cobardemente com a violação do Estado de direito democrático ao serviço de vinganças oligárquicas e corporativas. Uma sociedade que aceitou ser cúmplice da pulsão do linchamento moral. Ventura nasceu nesse esgoto e foi subindo pela sua montanha de merda até conseguir empestar a Assembleia da República. O Portugal da indústria da calúnia sente que Ventura é um dos seus, e cala-se consolado. O Portugal que se respeita a si próprio mas que opta por fugir de um palhaço que nos quer fazer mal pagará o preço de não combater pela liberdade.

__

Recordar é reler

21 thoughts on “Ilíada, Canto IX, 438-43”

  1. Talvez porque sabem perfeitamente que se forem confrontados com o que André Ventura afirma ficam sem resposta como ficou Miguel Sousa Tavares e como ficou a entrevistadora da Antena 1 na semana passada. E porquê? Porque se se raspar o verniz da converseta do “fassismo” e se se for a factos concretos, não vemos um único ponto convergente entre o que defendia Hitler e Mussolini e aquilo que defende André Ventura. Mas vemos muitos pontos convergentes entre o que defende um PS ou um Bloco. A palavra “socialista” não caiu no partido de Hitler por mero acaso nem por descuido.

  2. Se na ditadura já estão todos fartos de saber como é que as coisas funcionavam, porque raio, já que supostamente estamos em Democracia, fazem tudo para voltar ao eterno passado. Estão com saudades dos nazis e do Stalin (lol), ou preferem o Trump, o Putin, ou o Xi Jinping ? A resposta não é venha o diabo e escolha, mas sim, o povo está farto de ser manipulado e desorientado, diariamente, se continuarem a usar os extremos, já sabem, o que irá acontecer, logo, sejam construtivos e honestos, ou os vossos donos não vos deixam ?
    Bem eu sei que como sempre nem eu sou um iluminado, muito menos os Portugueses, por isso, decidam-se, depois já sabem, provavelmente não será um novo Abril, quem sabe um vermelho em homenagem ao Dragão :P:D

  3. não sigo essas histórias de alcova parlamentares e nunca vi o ventura , apenas de foto e isso que escrevem , e isso que escrevem , tipo .”um hipócrita que se desfaz com um sopro de decência e duas ou três noções básicas de História, sem contradi e bla bla imundo porco fascccista e cabrão , é o quê ? denegrir o carácter de um tipo , assassiná-lo moralmente , tipo este que tem tanto direito a mentir e a ser um fingido como todos os outros que estão no parlamento. . mas . coitado , calhou-lhe ser o bode expiatório da caca toda do regime.
    é giro observar o comportamento “democrático” dos que se babam quando dizem ai a democracia , a mãe de todas as virtudes….os beatos da igreja funcionavam igual .

  4. Muito bem, Valupi. Não se pode, ignorando, deixar que a política volte para trás para os tempos do fascismo salazarento!!!

  5. Um porco é um porco é um porco e maneiras não há muitas de lidar com um porco flatulento.

    Maneira 1 — Assinalar apenas, e numerar, os flatos do porco (que aqui sugeri há dias), para dar aos cidadãos atempada possibilidade de se protegerem do fedor.

    Maneira 2 — Utilização do humor para dissecar os flatos do porco e facilitar a verificação de que o porco, como é próprio dos porcos, anda sempre nu, ainda que, à distância, a camada de lama e fezes que lhe cobre a pele possa ser confundida com finérrimos Armanis. Ou seja, desmontar o porco, ridicularizar o porco, gozar com o porco e com os bacorinhos que caninamente… perdão, bacorinamente o seguem e aplaudem. O Ricardo Araújo Pereira, descontando a agenda merdosa que frequentemente usa como guião, fê-lo há dias com eficácia num programa de TV.

    N.B. — Nunca por nunca, porém, argumentar com o porco, já que os flatos do porco argumentos não são e contra-argumentáveis idem aspas também não.

  6. “O capitalismo é implacável e sem a rédea curta avança e esfola, sem pruridos”.

    “No momento em que escrevo estas linhas, espera-se o êxito da tentativa de passar as mãos do capitalismo Internacional os caminhos de ferro …”

    “Seria muito mais nobre que as igrejas cristãs (…) ensinassem aos europeus, com gestos bondosos, mas com toda seriedade, que é agradável a Deus que os pais não sadios tenham compaixão das pobres criancinhas sadias e que evitem trazer ao mundo filhos que só trazem infelicidade para si e para os outros”

    Valupi, onde se encaixariam, ideologicamente de forma harmoniosa, estes excertos? Num discurso do Chega ou num discurso do Bloco de Esquerda?

  7. Adicione mais este: “O seu único objetivo é quebrar as forças de resistência da nação, preparando-a para a escravidão do capitalismo”

  8. Pinto, estás a defender qual das seguintes teses:

    a) Que o BE é um partido com um programa nazi.

    b) Que o Ventura não tem nada a ver com a ideologia do fascismo.

    c) Uma outra qualquer que farás o favor de explicitar para te poder entender.

    Após esclareceres, avançaremos neste diálogo.

  9. Que o BE tem um programa próprio com pontos convergentes aos de Hitler (pela mesma razão: o deslumbre daquele positivismo obsoleto). O que não significa que seja moralmente tão reprovável quanto o nazismo.

    Que o Ventura não tem nada a ver com a ideologia do fascismo. Pelo contrário: é a antítese do fascismo.

  10. Então essas insinuações que o partido é fascista têm ou não fundamento? É que não fui eu nem foi o André Ventura que veio com a conversa do fascismo, do nazismo! Não sou eu e o André Ventura que andamos todos os santos dias com o “fassismo” na boca. Vamos lá fundamentar. Ou são clichés ocos?

  11. Caro Daniel:
    Essa treta de tratar o Estaline e o Hitler como iguais é um costume antigo , usado pelo pessoal que frequentava as esplanadas de Estalinegrado,bebendo imperiais enquanto os dois exércitos inimigos lá
    combatiam. Com vítimas colaterais baixas,o prazer do ar livre,ainda que fresco,era usufruído pelo pessoal
    não comprometido, certo que muito melhor que lutar, seria resolver a contenda lançando uma moeda ao ar,no melhor estilo do gentleman’s agreement… Essa leveza de julgamento gerou frutos, muito iguais aos alcançados pelos que insistem em ter filhos sem desabotoarem as calças.

  12. Pinto, se calhar não entendeste o que te perguntei, pelo que te vou dar nova oportunidade: o que é que contestas no texto que vieste comentar?

  13. Partir do arquétipo de herói clássico, Aquiles, para analisar a (i)realidade política pos-moderna é no fundo confrontar uma narrativa com uma dicotomia clara entre o bem e mal, e a sua subversão, onde a ambiguidade e o caráter multifacetado com várias camadas consegue uma maior empatia e identificação com o pipol; o.anti- herói. O anti-heroi redime o erro e humaniza o falhanço, não é herói nem um santo e tem uma moralidade duvidosa.Numa sociedade que penaliza os under achievers e criminaliza a pobreza Dexter, Trump, Bolsonaro, Tony Soprano, Walter White, Ventura, podem ser vistos por muito e por razões diferentes como adoráveis anti-herois, um guilty pleasure, a sweet Revenge. Claro que são vilões, mas já ninguém acredita em heróis.

  14. Joe Strummer, bem esgalhado. Acrescento apenas que a ambivalência é a condição da pós-modernidade, precisamente porque o triunfo da modernidade é concomitantemente o seu fracasso: o fim das grandes narrativas, pulverizadas pela crescente complexidade da tecno-humanidade.

    Quanto a Aquiles, não esquecer que é herói, sim, mas trágico. Porém, o que realço na passagem escolhida é apenas a dimensão política do seu heroísmo – portanto, a sempre possível realização, ou que seja mera vivência, heróica da política.

  15. Alupi, já disse atrás: as insinuações que o partido Chega seja fascista. Quer que escreva de que forma? Desenhos não consigo fazer …

  16. Nabonidus, Caligula , Nero , Ivan IV, Vlad III , George III, Carlos VI , etc etc e tal . o Trump não é o 1º doido nem será o último … aliás , como poder corrompe , todos terão uma costeleta doente.
    esta malta tem a memória curta.

  17. oh pá! se o chega não é fascista, racista e nazi, o que é que andam cá a fazer? é que para as outras modalidades todas já há partidos que cheguem. depois temos as figurinhas: diogo amorim, sousa lara, nuno afonso, josé dias, ricardo regalla pinto, lucinda ribeiro, salvador posser de andrade, joaquim chilrito, movimentos zero, pê-éne-érres, os infiltrados na polícia, gnr, sef e forças armadas que fazem uns ganchos na segurança privada, contrabando, contrafacção, proxenetismo e gamanço em geral mais e aqueles moços das fred perry pretas e amarelas, que fazem currículo e estágio para as profissões anteriormente mencionadas, a malhar em negros.

  18. Pinto, onde é que leste no meu texto que o partido Chega é fascista? É a última vez que te peço para entrares numa discussão a partir de factos e não do que a tua imaginação invente.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *