Governo Fantoche

Não tenho acesso aos números das audiências dos programas televisivos de comentário político (se alguém tiver, é mandar, faxavor), apenas sei que quem comenta em canal aberto tem muito mais espectadores do que nos canais por cabo. Por exemplo, Marques Mendes e Paulo Portas têm acesso a multidões inacessíveis para os seus pares dos canais apenas de notícias no cabo. Noutro e recentíssimo exemplo, a passagem do “Governo Sombra” da TVI24 para a SIC terá resultado numa multiplicação por 8 da audiência, calculando-se terem captado 360 mil espectadores para a primeira emissão no novo poiso.

O que igualmente oferece poucas dúvidas é a vantagem de mascarar como humorístico ou independente, partidariamente neutro, um espaço que depois servirá para típicos comentários – e ataques – políticos. Enquanto um político interventivo no espaço público vê a sua influência condicionada e limitada pela militância partidária ou representação institucional, quem se apresente na arena política apenas como representante de si próprio tem plena maleabilidade para oportunas e oportunistas mudanças de opinião sem que o seu estatuto de comentador “genuinamente livre” fique afectado. Todavia, esta plasticidade opinativa tem como contrapartida ser a manifestação de uma inutilidade legislativa e governativa. Quem faz da política apenas um exercício retórico não puxa carroça executiva, não assume responsabilidades institucionais na República, torna-se é um profissional do espectáculo – e exibe o programa de encher o bolso como primeira e última ideologia.

Os três artistas que protagonizam o “Governo Sombra” dividem-se na forma como desenham publicamente o seu papel político. João Miguel Tavares é aquele que se projecta como superior e decisivo juiz moral da classe política, e do regime, enquanto Pedro Mexia e Ricardo Araújo Pereira desvalorizam e menorizam essa influência e preferem mascarar-se de comediantes. Na verdade, na prática, cada um deles é uma vedeta política para além de vedeta mediática. O Ricardo chegou a usar os Gato Fedorento para atacar o PNR quando ainda era mais esquerdista do que rico, e desde que atribuiu a Sócrates a perda do seu dinheiro no BES que se tornou numa coqueluche da direita fanática e bronca (o mesmo fenómeno ocorrendo com mais dois fedorentos). O Pedro participou na elaboração do fantástico programa eleitoral com que o CDS obteve em 2019 o maravilhoso resultado de 4,25% dos votos, por pouco não sendo ultrapassado pelo PAN. E o João Miguel tem sido usado por diversos políticos de diversos quadrantes para diversos fins, chegando ao cúmulo de ter recebido honras de Estado por tal e para tal, o que o deixa extasiante de jactância e proveito pecuniário.

A mistura entre política e espectáculo é neste grupo uma perfeita e imunda mistela. Daí a inevitável hipocrisia e sonsaria com que se retratam:

«Chegam à casa de um fundador do PSD, e antigo primeiro-ministro [Francisco Pinto Balsemão], e cujo diretor-geral de informação é meio-irmão do primeiro-ministro António Costa. Isso não vos condiciona?
R.A.P. — Sabe, não temos Deus nem amos. O programa é, na melhor das hipóteses, uma conversa de café sofisticada. Ninguém aqui tem uma agenda ou está a fazer algum favor.
J.M.T. — Temos uma coisa especial neste programa: ninguém faz contas de cabeça. Ninguém está a pensar no que pode obter, em quem é que vai influenciar. Simplesmente dizemos aquilo que achamos. Isso é muito raro de encontrar.» <- Fonte

O caluniador profissional acha “muito raro de encontrar” quem diga aquilo que acha. E ficamos nós também sem achar o que lhe dizer, pois pode ser doença e não se deve gozar. O mais provável, sem arriscar muito, é ser deslumbramento narcísico e essa pulsão populista básica em que se mercadeja como vox populi para perseguir certos alvos políticos de quem lhe paga. Quanto ao brilhante humorista, ao se permitir desbundar com o patego apregoando uma delirante – e ostensivamente insultuosa – pureza política no “Governo Sombra”, este marmanjão está, na melhor das hipóteses, a exibir uma gula política cada vez mais sofisticada.

Precisamos de recorrer à outra metade da trupe para encontrar um diagnóstico involuntariamente curial, logo seguido de obsceno spin:

C.V.M. — Em relação ao “Governo Sombra”, no Twitter há alguma acidez. É curioso, porque era muito consensual, mas as coisas mudaram no período de Passos Coelho.
P.M. — Hoje ninguém é consensual, com esta coisa do ofendidismo. Tudo o que dizemos pode ofender alguém.

Carlos Vaz Marques usa o Twitter como barómetro e é objectivo na análise. O período de Passos Coelho alterou a percepção e inerentes reacções na opinião pública. Terá então mudado alguma coisa na substância, no posicionamento, do “Governo Sombra” pois não consta que o fenómeno tenha nascido por obra e graça do “homem invulgar”. O que foi? O sr. Marques nada nos diz a respeito, claro. Nem nunca dirá, ou só quando escrever as memórias.

Pedro Mexia chuta para canto e simula ser um calhau com dois olhos que não faz ideia do que o Sr. Marques estava a falar. Acontece que este nosso poeta é um autêntico pedreiro no que toca à repetição dos tropos sectários com que ataca o PS, daí apagar imediatamente da fotografia o tal Passos Coelho quinto elemento gasoso do programa. O problema passa a ser uma coisa a que chama “ofendidismo” e que só existe na sua poética manhosa.

O “Governo Sombra” é um grande sucesso mediático, a equipa que o faz merece legítimos parabéns por isso. Depende do talento do Ricardo Araújo Pereira, sem o qual teria sido outra coisa, e é absolutamente banal e bondoso no seu conceito: usar diferentes registos de humor para fazer crítica política e social despretensiosa de largo espectro. Há público, e muito, para essa descontracção e foi no plano do divertimento que o programa captou a sua crescente popularidade ao longo dos anos. E depois veio Passos Coelho, de facto – isto é, depois veio Sócrates e a maior caçada que o regime fez a um cidadão em democracia. Uma caçada que envolveu directamente um primeiro-ministro, uma ministra da Justiça, um Presidente da República e uma procuradora-geral da República. Uma caçada onde os protagonistas do programa quiseram voluntariamente tomar parte, passando a explorar e amplificar os crimes e linchamentos ocorridos na Justiça e nos órgãos de comunicação social engajados. Ver o Ricardo, o Pedro e o Carlos (o outro não conta, como assumido pulha que é) a usarem violações da privacidade para fazerem deturpações canalhas, assim validando os propósitos da judicialização da política e promovendo o pior do sensacionalismo, é vexante para a comunidade que somos. Isso, amiguinhos e palhaços, deixou de ter graça.

O Sr. Araújo encerra a entrevista ao Expresso aqui citada com um eufemismo: “Vai ser a mesma fantochada. Essa garantia podemos dar.” Não temos qualquer dificuldade em acreditar nas suas palavras. Que estamos perante fantoches é evidente, lá está, desde o período de Passos Coelho.

11 thoughts on “Governo Fantoche”

  1. Por isso, cedo, muito cedo, higienicamente, deixei de os ver e ouvir, embora reconheça que é algo perigoso deixá-los à solta.

  2. “Vai ser a mesma fantochada. Essa garantia podemos dar.”

    Quando querem culpar e ridicularizar o inimigo político quando este se defende, a essa defesa chamam, trocando mau humorismo por chacota, a “teoria da cabala”.
    Em caso próprio, quando são eles a querer esconder a sua mensagem política ou ganância financeira, defendem-se, trocando má consciência por humorismo, invocando a “teoria da fantochada”. E com selo de garantia.
    Para um leitor atendo às fedorências deste grupo nota logo que se trata do mesmo argumento mentiroso disfarçado; em ambos os casos a mentira é a mesma mas, ditos pela mesma boca em causa própria, num caso quer-se que passe por acusação e no outro por auto-defesa em estilo revisteiro.
    A reboque do fedorento-mor todos opinam, ou tentam opinar, sob a forma disfarçada do humorismo mas tal truque só engana os embasbacados que lhes fazem de jarras decorativas à frente ou atrás. O fedorento-mor já gasto de estar em palco 24 sobre 24 horas em “on” frente às câmaras vive das réplicas infindáveis de alguns bons momentos de quando foi autor pobre e esforçado. O institucional “conselheiro” cultural tenta a pose de “seriedade” no seu humorismo sonso com argumentos de retórica cínica, pastoreio do seu pensamento poético. O restante do trio de “ministros” que se dizem na sombra mas que. afinal, se expôem semanalmente na montra como em Amsterdam à procura de convite, esse, não disfarça nada a sua qualidade de disponível a quem precisar dos seus valiosos serviços; o seu humor é, por conseguinte, um constante abanar o rabo aos homens de negócios, do empresariado e do off-shoreado, que é quem pode satisfazer as grandezas do seu preço.
    Mas não são os únicos.
    Também já os outros eixos ou círculos similares estão há muito em igual estado de fedorência.

  3. “Quem faz da política apenas um exercício retórico não puxa carroça executiva, não assume responsabilidades institucionais na República, torna-se é um profissional do espectáculo”

    Independentemente de concordar ou não com o resto do texto, por favor tal significa que se considera um profissional do espetáculo? Ou de facto assume responsabilidades institucionais?

  4. “Quem faz da política apenas um exercício retórico não puxa carroça executiva, não assume responsabilidades institucionais na República, torna-se é um profissional do espectáculo”
    Será o caso de Marcelo.

  5. No fundo, a falsa irreverência já é uma velha história. O truque desta manipulação sempre foi fazer com que parecesse inocente, honesta espontãnea.
    Não me canso de referir a forma como o Edward Bernays, trabalhando para as tabaqueiras americanas, conseguiu, através de uma encenação mediática, pôr as mulheres a fumar, tranformando o acto numa expressão da emancipação feminina que, em muitos meios, ainda hoje perdura. E estou a falar de algo que se passou no início do séc. XX.
    Ainda só devo ter referido isto umas quatrocentas vezes, mas vejam o documentário do jornalista Adam Curtis, sobre esse senhor, entitulado “The Century of the Self”

  6. Quem faz da política apenas um exercício retórico não puxa carroça executiva, não assume responsabilidades institucionais na República, torna-se é um profissional do espectáculo”

    Independentemente de concordar ou não com o resto do texto, por favor tal significa que se considera um profissional do espetáculo? Ou de facto assume responsabilidades institucionais

    A razão pela qual esta pergunta é natural é apenas porque conceber que apenas os escolhidos que assumem responsabilidades institucionais é que são agentes políticos parece me a mim não só altamente desqualificador para todos os restantes mortais, como mesmo insultuoso para todos os que lutaram e morreram pelos seus ideais não permitindo as instituições do seu tempo que estes assumissem as ditas responsabilidades.

    Dado portanto a gravidade da sua afirmação e não discordando de todo da existência de profissionais do espetáculo, seria contudo importante que refraseasse a sua disjunção exclusiva acrescentando lhe mais cláusulas.

  7. na democracia representativa , o supra sumo dos sistemas , melhor não há , é mesmo assim: os cidadãos não contamos para nada , só para espectáculo de faz de conta e para pagar os salários dos representantes. a politica é todinha para os partidos .

  8. Nyth, para eu ser um profissional do espectáculo tinha de ser pago pelos espectáculos. Achas essas duas coisas, que eu protagonizo algum espectáculo e que alguém me paga? Consoante as tuas respostas, poderemos desenvolver ou concluir o assunto.

    Quanto ao teu pressuposto, não posso concordar mais: agentes políticos são todos os cidadãos, potencialmente, num Estado de direito democrático. E serão todos os seres humanos, também potencialmente, em situações onde lutem pelos seus direitos, pela liberdade ou contra qualquer injustiça mesmo que o façam individualmente, quiçá secretamente.

    Porém, faço-te notar que o exemplo de um antifascista militante, ou apoiante, do PCP no Estado Novo é ainda o de alguém ligado a uma instituição, o partido então na clandestinidade. Era esse o sentido da frase que vieste comentar no contexto do tema. Não estava a discorrer sobre o “animal político” na sua generalidade e plenitude, estava apenas a criticar personalidades públicas que são profissionais do espectáculo e, em simultâneo, figuras com grande e enorme influência política. São estes que vendem retórica e que não assumem as responsabilidades daqueles de quem se servem para os espectáculos. Nem sequer ao nível de uma junta de freguesia.

  9. Não, não acho de todo que sejas um profissional do espetáculo. Por isso é que cá venho há anos ler-vos :)

    A mim, estas disjunções com falta de cláusulas chateiam me, pah, é de formação. Obrigado pelo esclarecimento :)

  10. agora com a Isabelinha percebeu-se muito bem a democracia partidária e porque tudo tem de ser feito através de partidos, sem lugar para cidadãos vulgares : é o mamar e a Omertá.

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