Exactissimamente

O que está em causa no processo Lula?

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Nota

Não aprecio o estilo e os resultados da prosa opinativa do Manuel Carvalho. Parece-me um exemplo típico da inutilidade soberba que preenche a enorme maioria dos espaços de comentário na comunicação social, onde os articulistas nada mais pretendem do que chafurdarem nos seus preconceitos e gostos embrulhados numa retórica básica e inflamatória. Daí a grata surpresa de vê-lo num exercício onde ajuda os seus leitores a identificarem o valor supremo que está em causa na prisão de Lula. Esse valor aparece descrito no último parágrafo do texto através de várias facetas – “Justiça”, “julgamento imparcial”, “direitos humanos”, “lei”, “liberdade”, “Estado de direito” – todas elas remetendo para os pilares da civilização onde queremos viver. Pilares erguidos ao longo de milénios e com o sangue e o sofrimento de incontáveis milhões de que não reza a História.

Dá-se o caso de este jornalista ter como colegas no semipasquim retintos profissionais da calúnia. Seja por fanatismo, deboche ou venalidade, esses seus colegas não perdem uma oportunidade para dispararem sobre quem apareça a defender o Estado de direito naqueles casos em que estão a desfrutar dos autos-de-fé da sua predilecção. É por causa deste risco inerente a quem clame pela liberdade, o de invariavelmente ser acusado de estar a defender o alvo do ódio dos sicários ou da turbamulta, que costumam ser muito poucos a fazê-lo. Quem usa a calúnia como arma de arremesso conta com processos cognitivos e sociais automáticos que têm sido explorados em todos os tempos e lugares. Nesse estado de linchamento, aquele que ofereça o mínimo obstáculo à satisfação da pulsão assassina é visto como cúmplice do “culpado”. Daí o espectáculo de vermos saírem textos que apagam todos os abusos e crimes de que Lula e outros foram alvo por agentes da Justiça só para os caluniadores profissionais poderem celebrar o triunfo da sua prisão, da sua derrota, da sua morte simbólica. Parece apenas um fenómeno que se esgota na expressão de subjectividades encardidas, mas vai muito mais longe e é muito mais grave. A lógica da calúnia é precisamente aquela contra a qual os modelos do republicanismo e do liberalismo se construíram. A lógica da calúnia é a da tirania da vontade particular, onde os mais poderosos obrigam os mais fracos a subjugarem-se e a serem espoliados sem qualquer possibilidade de defesa. Inversamente, os conceitos de república e de democracia liberal instituem a lógica da lei, onde os mais poderosos e os mais fracos se equivalem em direitos e dignidade cívica. Na civilização onde queremos viver, a liberdade não é a capacidade de fugir à Justiça ou perverter as leis. A civilização onde queremos viver tem na Lei democrática o fundamento e garantia da liberdade.

Ora, o que o Manuel Carvalho assinou sobre o caso da prisão de Lula poderia ter igualmente assinado – mutatis mutandis – sobre a prisão de Sócrates. Os dois casos são análogos quanto à ausência de provas, abusos da Justiça e ambiente justiceiro no Ministério Público e no DCIAP que culminam numa prisão política. As razões invocadas para a prisão do ex-primeiro-ministro, à luz do que o processo e a acusação revelaram, eram não só exageradas como ilícitas. De uma ilicitude validada pelo próprio sistema de Justiça ao recusar provimento aos recursos exaustivamente apresentados pela defesa de Sócrates, mas inquestionavelmente ilícitos. Isto é, se havia razões indiscutíveis para investigar os fluxos de dinheiro e demais bens à disposição de Sócrates, tal não obrigava a que a medida de coação tivesse de ser a prisão em cela. Mais, tal nem sequer obrigava a que a data para a detenção tivesse sido aquela, uma data com óbvias conexões ao processo eleitoral então em curso. Porém, jamais este valente do sr. Carvalho estabeleceu esses nexos em nome dos valores que agora, e muito bem, lhe guiaram os dedos pelo teclado.

Talvez precise de reler umas cem vezes a sua última e moralizante frase: “Em questões fundamentais como a liberdade ou as garantias de um estado de direito, o melhor mesmo é despir a camisola da ideologia e defender a sua universalidade e constância.

6 thoughts on “Exactissimamente”

  1. Também fiquei admirado com esta boa malha do Manuel Carvalho.
    A forma de corrupção mais nefasta da sociedade actual é a calúnia institucional, realizada por agentes de justiça ou pelos media, quando os manipulam em função de objectivos políticos, seja realizada por governos que a utilizam para afectar relações internacionais de acordo com a sua conveniencia. Atribuir a responsabilidade de actos a alguém sem apresentar evidencias disso, e antes que se conclua uma investigação isenta, com oportunidade de contraditório de defesa, tornou -se o pão nosso de cada dia.
    Mas isso nem é o pior. O que horroriza é ver este fenómeno passar à frente do nariz dos intelectuais da praça e estes, na maior parte das vezes, fazerem coro com a barbárie.

  2. “Lugar de ladrão é na cadeia”,
    Não confundir um crime cometido com assuntos de politica.
    O facto de querer Lula preso por ser ladrão/corrupto, nada tem a ver com ser de direita ou esquerda.
    O facto de querer que Sócrates seja preso, após julgamento, nada tem a ver com a minha cor partidária.

    a verdadeira anónima

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