Escolas práticas de cidadania

A época em que os blogues estavam na moda passou há muito, tendo o seu auge durado de 2002 a 2004. Em 2005 já havia uma geração de bloggers cansada de teclar e farta das palrações no monitor. A cultura inicial de encantamento e concórdia universal onde o cordeiro adormecia no regaço do leão, um caldo de fusão tribal também possível pelo baixo número e superior qualidade intelectual dos autores e comentadores, tinha sido perdida para sempre com a contínua chegada de novos participantes que não conheciam as regras tácitas, não comungavam numa memória colectiva e, em crescendo, não conseguiam fugir à sua mediocridade cognitiva e moral. Nos anos seguintes, o aparecimento do Facebook e do Twitter levou ao esvaziamento e fragmentação das comunidades blogosféricas, retirando protagonismo aos blogues como vox populi de uma qualquer vanguarda ou elite e levando-os a cristalizarem-se como territórios de expressão individual, atomizada, onde a relevância raramente foge a ser subsidiária de uma marca obtida em esferas de actividade profissional. Assim se explica, em especial, a perenidade de blogues ligados a políticos, jornalistas e académicos.

Apesar deste reordenamento e requalificação da paisagem mediática digital, os blogues políticos foram importantes placas de Petri de 2008 em diante. Neles se assistiu, de forma literalmente obscena, aos processos mais básicos de manipulação da informação, ao lançamento de calúnias surpreendentemente abjectas e a um fanatismo demente que reduziu o debate ao maniqueísmo sem remissão. Estes fenómenos não são novos, estão descritos em todos os canhanhos de História e nos manuais de ciências sociais. A novidade esteve em vermos quem eram os agentes e vítimas da convulsão política que resultava da passagem de um Governo de carisma reformista ao centro, assim anulando a direita e baralhando a esquerda, cruzada com a irrupção de duas das maiores crises de sempre: afundanço da economia global e implosão do Euro. Os blogues, pelo seu extenso e detalhado registo do mundo interior e social dos seus autores, permitiram-nos constatar que o número de pulhas, afinal, iguala, ou até supera, o número de broncos. Essa informação tem inegável valor.

Aqui no Aspirina B tem reinado um regime de livre comentário, embora sujeito ao arbítrio pessoal de cada membro da equipa nas suas publicações. Quem quiser, chega e bota faladura sem precisar de registo e sem esperar para entrar nas conversas. Tem óbvias vantagens, e para todos os envolvidos. Mas igualmente permite que infantilóides, taralhoucos, maluquinhos e canalhas apareçam e empestem o ambiente com as suas descargas peristálticas. Seria preferível expulsá-los do convívio, como se faz em tantos blogues com toda a legitimidade e suposto proveito? A minha tese é a seguinte: aqueles que partilham connosco a sua raiva, a sua desorientação, o seu desespero e a sua tristeza estão a fazer-nos um grande favor – repetem-nos, alguns de forma maníaca, que também eles querem ser parte da cidade. Só por isso, por nos confrontar nos nossos preconceitos e inércias, medos e arrogâncias, a sua presença pode fazer de um blogue uma escola prática de cidadania.

18 thoughts on “Escolas práticas de cidadania”

  1. “Mas igualmente permite que infantilóides, taralhoucos, maluquinhos e canalhas apareçam e empestem o ambiente com as suas descargas peristálticas. Seria preferível expulsá-los do convívio, como se faz em tantos blogues com toda a legitimidade e suposto proveito?”

    No outro dia acabei por não ter oportunidade de continuar o debate sobre o pluralismo, pelo que peço desculpa. Mas o facto é que apenas por não se concordar com tantas coisas que aqui são ditas, é-se muitas vezes apodado de infantilóide, taralhouco, maluquinho e canalha. Isso não convida à expressão plural de pontos de vista contraditórios.

    Não é que Val o faça – comigo nunca passou do amoroso larga o vinho – ou que o façam os outros escribas da coisa. Mas como o fórum é mais frequentado por fãs socráticos do que por gente de outras bandas um tipo corre o sério risco de sair daqui enxovalhado, cuspido e com um ou outro olho negro.

    Eu cá não ligo e insisto, mas não posso deixar de considerar que levam o respeito por Sócrates (que o não merece – embora eu também concorde que foi alvo de perseguição) demasiado a sério, em detrimento do respeito por outras figuras cujo dever e posição de crítica, diversidade de convicções confundem bastas vezes com canalhice ou alianças contra-natura – veja-se o chumbo do PEC.

  2. Caro Val,
    venho por aqui habitualmente porque entendo que este espaço é um dos poucos em que podemos expressar a nossa opinião, mesmo correndo o risco de ser insultados, desprezados, caluniados, julgados por gente (passe o elogio) que só por ter acesso a um teclado e à net julga ter também o direito à ofensa.
    Muitos nem sequer se dão ao luxo de contrapôr, seja por falta de conhecimento, de capacidade ou até de saber.
    Este espaço, também é para os que não têm coragem de se assumir em público o espaço da catarse, aqui se descarregam emoções sem ter de mostrar o rosto, sem arriscar nada, somos todos uma espécie de entidades calmantes das nossas próprias dores com um nome colado que geralmente corresponde ao que gostaríamos de ser e não ao que na realidade somos.
    Por isso e por tudo o mais que disseste para além de ser um espaço de cidadania também é um bom espaço terapêutico.

  3. Gostaria de acrescentar um dado curioso – há muita gente que lê o nosso Blogue mas não escreve nada pois prefere comentar em directo. São pessoas que não entram nas estatísticas dos comentários mas existem.

  4. nm,
    “Mas como o fórum é mais frequentado por fãs socráticos do que por gente de outras bandas um tipo corre o sério risco de sair daqui enxovalhado, cuspido e com um ou outro olho negro.”

    Tem graça, os insultuosos e cuspidores, que chegam à bizarria da psicopatia têm surgido sobretudo do outro lado… O Val, aliás, deve ter já o recorde do mais insultado aqui no blogue, por isso não entendo o teu comentário de lobo vestido de cordeiro.

    .

  5. Edie, Vai lá buscar o meu insulto cuspidor ou a bizarria psicopata. Não serás tu o psicopata em que te revês quando acusas os outros de serem lobos com peles de cordeiro? É que posso ter muitas peles para usar, mas não visto nenhuma em que não me reconheça.

  6. não percebeste nada: acusas os “fãs socráticos” de serem um perigo para os corajosos discordantes que aqui botam faladura, gente sem respeito, que enxovalham e cospem, e deixam uma pessoa com o olho negro. O que se tem visto é o contrário. Por isso, o que dizes é falso, outra forma de dizer que estás de lobo disfarçado de cordeiro…

    Veste o que te apetecer, mas o rabo ficou de fora.

  7. foste? e onde está? as únicas coisas que vejo são verve tua, conclusão tua, derivação tua. confundes figuras de estilo com factos.

  8. nm, explica isto melhor, please:

    “Mas o facto é que apenas por não se concordar com tantas coisas que aqui são ditas, é-se muitas vezes apodado de infantilóide, taralhouco, maluquinho e canalha.”

    Onde é que isso aconteceu?

    “Mas como o fórum é mais frequentado por fãs socráticos do que por gente de outras bandas um tipo corre o sério risco de sair daqui enxovalhado, cuspido e com um ou outro olho negro.”

    Que te leva a querer frequentar um poiso onde te sentes maltratado, ainda por cima onde se reúnem fãs socráticos?

    “Eu cá não ligo e insisto, mas não posso deixar de considerar que levam o respeito por Sócrates (que o não merece – embora eu também concorde que foi alvo de perseguição) demasiado a sério, em detrimento do respeito por outras figuras cujo dever e posição de crítica, diversidade de convicções confundem bastas vezes com canalhice ou alianças contra-natura – veja-se o chumbo do PEC.”

    Lá por achares que Sócrates não te merece respeito, ou que merece menos respeito do que aquele que consideras estar-lhe a ser dado por alguém, que temos nós a ver com isso? Queres que abandonemos as nossas ideias para passarmos a usar as tuas?

  9. “Mas o facto é que apenas por não se concordar com tantas coisas que aqui são ditas, é-se muitas vezes apodado de infantilóide, taralhouco, maluquinho e canalha.”

    Val: Onde é que isso aconteceu?

    Aqui, neste post, por exemplo, “infantilóide, taralhouco, maluquinho e canalha” são termos usados no post que eu apenas copiei. Come tudo pela mesma medida.

    “Mas como o fórum é mais frequentado por fãs socráticos do que por gente de outras bandas um tipo corre o sério risco de sair daqui enxovalhado, cuspido e com um ou outro olho negro.”

    Val: Que te leva a querer frequentar um poiso onde te sentes maltratado, ainda por cima onde se reúnem fãs socráticos?

    Já frequento o Aspirina há muito tempo, não tem só textos do clube de fãs do Sócrates. Embora o contexto aqui seja o da ironia é por causa de comentários como ” “ainda por cima onde se reúnem fãs socráticos?” que refiro a pouca vontade de pluralismo – que sim, é verdade, nem tem de haver num blogue pessoal – dos frequentadores. Esse tipo de sugestão é regra.

    “Eu cá não ligo e insisto, mas não posso deixar de considerar que levam o respeito por Sócrates (que o não merece – embora eu também concorde que foi alvo de perseguição) demasiado a sério, em detrimento do respeito por outras figuras cujo dever e posição de crítica, diversidade de convicções confundem bastas vezes com canalhice ou alianças contra-natura – veja-se o chumbo do PEC.”

    Val. Lá por achares que Sócrates não te merece respeito, ou que merece menos respeito do que aquele que consideras estar-lhe a ser dado por alguém, que temos nós a ver com isso? Queres que abandonemos as nossas ideias para passarmos a usar as tuas?

    Não estou a ver onde terei sugerido que trocassem de ideias, mas se abrem a caixa e deixam maluquinhos de todas as cores, feitios e medidas virem cá comentar, depois não se admirem que haja quem não concorde convosco.Não estão a sugerir que preferiam que eu abandonasse as minhas ideias para aderir às de alguns de vocês?

  10. nm, a referência aos infantilóides, taralhoucos, maluquinhos e canalhas tem alguma relação contigo para que te sintas incluído no lote? Se tem, explica qual é. Se não tem, qual o problema de a usar? Achas que todos os comentários que se fazem, e isto num blogue que já tem 100 mil comentários registados, são todos iguais no tipo, conteúdo e intenção? Achas mesmo que o texto está a tratar todos os comentadores por igual?

    Não deste nenhum exemplo de enxovalho a quem não seja “fã socrático”. E não deste porque ele não existe. O que existe, e pouquíssimo, são respostas a provocações ou afirmações idiotas. De resto, os meus colegas de escrita são de uma educação extrema nesse capítulo.

  11. o problema resolve-se fácil : trocas o “inicie comentários” por” inicie aplausos” e prontos , quem não quer aplaudir , vai-se.

  12. Val,

    Não acho que o teu post inclua todos os milhares de comentadores no mesmo lote. No entanto, uma coisa são os autores da casa, outra são os comentadores que já me chamaram cenas daquelas. De alguma forma, existe uma caução prévia.

    Mesmo que não seja essa a tua intenção, acho que tal tipo de frase gera um certo nível de legitimação. Uma auctoritas decorrente da propriedade do blogue.

    Não dei exemplos, por ser um comentador algo bissexto e não me apetecer estar de prontidão em busca de tal tipo de comentário onde os discordantes de tudo são apodados, por mera divergência de opinião.

    Em acrescento, mesmo não concordando com muito do que aqui é dito, a nível autoral perpassa um sentido de humor de quem não se leva demasiado a sério, mesmo acreditando naquilo que diz. E isso é uma óbvia vantagem sobre outras obras da mesma tendência onde quem escreve sofre do bem disseminado mal infantil do jornalismo, o narcisismo autista e mal-educado.

  13. Val, como sempre, UM MAGNIFICO TEXTO! Concordo em toda a linha com o critério usado este blogue, pois “a verdade vem sempre ao de cima” e os tolos e fanáticos serão sempre identificados pela “cidade”…embora às vezes tarde demais…!

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