Dominguice

A concepção mais ingénua da democracia é também a que implica uma sua concretização impossivelmente complexa: todos, numa dada comunidade, a tomarem todas as decisões governativas por deliberação universal. Nem na Grécia das cidades-estado, na aurora da história da democracia, tal foi aplicado. Nem o é na actual Suíça dos referendos em barda, sem ser preciso explicar porquê. E mesmo se a fórmula fosse seguida numa singular família a respeito da lida da casa – que digo, num mero par que habitasse no mesmo lar – isso rapidamente, em minutos, se revelaria disfuncional, inumano. A democracia pluralista, portanto, obriga a um qualquer tipo de representatividade das diferentes vontades no colectivo, a qual estabelece uma qualquer hierarquia de poder, a qual causará um qualquer tipo de desigualdade pois, como adverte a Física, dois corpos distintos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo. A uns poucos será dada a faca e o queijo, os restantes aceitam ficar a vigiar os “soberanos” até serem chamados a escolher novos representantes. Este é o sentido do “democracy is the worst form of Government except for all those other forms” de Churchill, onde se reconhece a “imperfeição” da democracia para a correlacionar retoricamente com as imperfeições muito maiores das alternativas.

Em Portugal, por arbítrio constitucional, considera-se que o tempo máximo de uma legislatura é quatro anos – uma limitação temporal para que se estenda a mais cidadãos a possibilidade de igualmente fatiarem o queijo pela sua própria mão, e uma duração adequada à necessidade de estabilidade e de desenvolvimento de um dado programa para a sociedade. Mas não se estabeleceu um tempo mínimo. Assim, numa situação em que não haja maiorias parlamentares nada obriga a que se aprove o primeiro orçamento do Governo que calhe ter sido empossado. Na prática, no nosso sistema político pode acontecer um período ilimitado de eleições sucessivas, anuais, ou até semestrais, sem que delas resultem maiorias absolutas para um partido. E depois acontecer que o partido vencedor minoritário não consiga ver aprovado qualquer orçamento do Governo que apoie. Porque, lá está, os outros partidos com menos votos querem ser eles a pôr e dispor do queijo a seu gosto. Contemplando esta hipótese, aparece como evidente que alguma solução de Governo democraticamente legítima é infinitamente preferível ao desgoverno. É que as democracias têm sempre bandos de abutres à espreita. À espera do nosso fatal tribalismo.

24 thoughts on “Dominguice”

  1. “Contemplando esta hipótese, aparece como evidente que alguma solução de Governo democraticamente legítima é infinitamente preferível ao desgoverno.”

    Em termos práticos, e sem ambiguidades, o que queres dizer exactamente com isto, aplicando a fórmula ao nosso jardim?

  2. Quando não há maioria, há que procurar consensos. No caso vertente à esquerda. Não se pode querer o voto dos outros, sem fazer quaisquer cedências. Nem se pode andar a fazer de conta.

  3. Esperemos que a história não se repita e sejam outra vez o BE e o PCP a fazer merda. Da última vez levámos com a troika 4 anos, desta vez é uma geringonça de direita com o Chega, como nos Açores.
    Se isso acontecer, bem podem dizer adeus à democracia e dar as boas vindas aos confinamentos, a nova coqueluche dos direitolas.

  4. a democracia só funciona em comunidades pequenas , e funciona muito bem : ” couto mixto” , Islândia .
    em sociedades complexas ? nem pó , seremos sempre cortados pelos da faca aos bocados para dar aos porcos ( banqueiros e demais compradores de políticos )
    Municipalismo ! uma nova organização politico territorial e os cidadãos poderão governar então -:)

  5. Está nas mãos do PS evitar a desgraça. O PS não tem o direito de fazer chantagem com os partidos com os quais se entendeu para ser Governo, em 2015. De resto, alguém estendeu o tapete a Costa e ao PS. Ou não poderemos antes dizer que o PS e Costa estão a querer brincar com o fogo?

  6. e numa família , onde os membros tivessem todos idades aproximadas e maturidade semelhante ( se pode votar os 18 ,idade sem juízo , podemos mudar para os 30 …) , e se todos tivessem tido a mesma educação esmerada e exigente ( ai , a porcariazinha da escola pública , formadora de borregos ) , poderia funcionar perfeitamente em Democracia. é uma grande falácia a comparação com uma família de pais e filhos e hierarquias de malta em diferentes estados de formação.

  7. aliás , o critério da idade para votar de dedo no ar pode ser substituído pelo critério da auto suficiência : quem se conseguir sustentar sozinho ( cama comida e roupa lavada -:) ) , pode votar.

  8. Joaquim Camacho, estou a remeter para a própria arquitectura do sistema político. No caso, temos um modelo de representatividade, o que leva a cálculos eleitorais que depois formam um parlamento onde não se garante necessariamente maiorias para governar. Podíamos ter um modelo que garantisse uma solução governativa onde o vencedor ficava sempre com a maioria. Seria melhor do que o actual? Altamente discutível, como tudo o resto na política, mas discutível.

    E também estou a remeter para a diferença entre governar e ir para eleições. A função da democracia não é a de gerar eleições a cada semana, é a de ter Governos que sejam a expressão de sociedades livres. Só que esses Governos têm de poder governar, se não puderem as sociedades definham, gangrenam e entram em colapso. Logo, levar um Governo minoritário a não poder governar com as suas opções é uma decisão que obriga a eleições e a todas as consequências daí resultantes. No caso de Portugal para o ano de 2022, as consequências seriam, ou serão, especialmente graves por causa da pandemia e do quadro de apoios europeu.

  9. Falso! A democracia é abutre de si mesma!
    Tantas vezes autofágica, ela é ditadura do fraco astucioso, apologia do medíocre elitista, massificação da inferioridade ascendente, miscigenação dissolvente das identidades e destruição da Tradição.
    A democracia é a demogagia desabrida, que dá livre curso às paixões primárias de cada um, é a lei relapsa, que descura criminosamente a propensão do macaco humano para o Mal.
    A democracia produz humanos neuróticos, criaturas irremediavelmente enredadas na teia dos seus enganos, desgraçadamente afastadas da Natureza, mestra das verdades essenciais.

  10. Valupi,

    O que defendes, no fundo, é um sistema articulado em volta do bipartidarismo. A historia recente, no RU e nos EUA, mostra que não é necessariamente a panaceia. E também que não é necessariamente mais democratico. Na pratica, no sistema bipartidario, as grandes questões politicas acabam por ser debatidas dentro dos grandes partidos, e muitas vezes de maneira pouco “democratica” e “representativa”, mais norteada por estratégias demagogicas que, quando bem sucedidas, provocam golpes palacianos.

    No fundo, pode parecer preferivel que os eleitores sejam chamados (ou pelo menos que exista a possibilidade de os chamar) a abritrar essas questões atravês de eleições, ainda que isto signifique uma certa instabilidade politica. No caso actual, ha verdadeiras questões de fundo : por exemplo, até que ponto e em que condições uma reforma la legislação laboral é compativel com os valores fundadores da esquerda (tentando colocar a questão nos termos mais “neutros” possiveis). Sera que invocar a arbitragem dos eleitores sobres estas questões, ou noutros termos, ameaçar com eleições para pressionar um governo minoritario, é uma negação da democracia ? Julgo que não.

    Lembrete : o nosso sistema constitucional permite governos minoritarios, mas não proibe de forma alguma governos mairoritarios, desde que os eleitores assim o decidam…

    Boas

  11. Esta caixa atrai de tudo, sem distinção. Além dos tais abutres, também aqui aparecem ratazanas de esgoto, hienas, lacraus, víboras, pulgas, percevejos e sobretudo melgas. Não é democracia, é biodiversidade.

  12. Valupi: “Podíamos ter um modelo que garantisse uma solução governativa onde o vencedor ficava sempre com a maioria. Seria melhor do que o actual? Altamente discutível, como tudo o resto na política, mas discutível.”

    “Altamente discutível (…) mas discutível” no plano formal, Valupi, mas penso que altamente desaconselhável, pelos motivos que o Viegas expõe e por outros. Imagina um universo partidário com sete partidos, em que um deles tinha 5% dos votos, haveria cinco com exactamente 15% cada e um “vencedor” com 20%. Podíamos chegar ao absurdo de ver a minoria de 20% do alegado “vencedor” automaticamente convertida em maioria, permitindo-lhe impor a sua “solução governativa” a um país que votara maioritariamente noutras soluções, por incompatíveis que fossem, no todo ou em parte, umas com as outras.

    Valupi: “Logo, levar um Governo minoritário a não poder governar com as suas opções é uma decisão que obriga a eleições e a todas as consequências daí resultantes.”

    Não permitir que um Governo minoritário “governe com as suas opções” é impedir que uma minoria imponha as suas opções à maioria e, ainda que seja uma aventura, chama-se democracia. Se isso obrigar a eleições extraordinárias e às “consequências daí resultantes” (quererás dizer “desvantagens”?), mais não teremos do que a continuação da aventura da democracia. É dessa aventura que Churchill fala quando diz que “democracy is the worst form of Government except for all those other forms”.

    As “consequências/desvantagens” dessa aventura são por vezes penalizantes, como os alemães têm recentemente experienciado e acontece frequentemente com os italianos, mas são custos que até os israelitas (ainda que tratem os vizinhos como cães) praticam com os que consideram seus.

  13. “Não permitir que um governo minoritário governe com as suas opções é impedir que uma minoria imponha as suas opções à maioria…”
    Mas qual maioria? Uma geringonça de direita?
    A Cristas também pensava que a votação em Lisboa era o mesmo que no país…viu-se.
    Mas alguém pensa que umas eleições agora ia alterar alguma coisa para melhor?

  14. Terás porventura um problema de leitura, mas escapou-te este bocadinho:

    “Podíamos chegar ao absurdo de ver a minoria de 20% do alegado “vencedor” automaticamente convertida em maioria, permitindo-lhe impor a sua “solução governativa” a um país que votara maioritariamente noutras soluções, por incompatíveis que fossem, no todo ou em parte, umas com as outras.”

  15. Isto em teoria, onde tudo é possível. Na prática, se o Bloco e/ou o PCP entrarem numa onda de PEC4 e, por puro cálculo eleitoral, forçarem eleições antecipadas, posso garantir que, pelo que me toca, lhes saem os cálculos furados, pois castigá-los-ei com o voto no PS. Seria bom que alguns dirigentes partidários aprendessem que há nas opções do eleitorado flutuante, em que me incluo, uma grande dose de subjectividade, em que pesam não apenas factores políticos mas também questões de moral, de simpatia pessoal e outras. Por exemplo, o meu voto no desclassificado arrogante Fernando Medina, nas últimas autárquicas, era completamente impossível. Assim, apenas para não desperdiçar o voto e para ser mais um na esquerda, votei no João Ferreira, da CDU. Se houver legislativas antecipadas, porém, bem poderá o Tio Jerómico esperar sentado pelo meu voto, que não o terá, e o mesmo vale para a Catarina Martins.

  16. Catarina Martins, a Pesporrenta, dixit: não levanto o tutu da cadeira para negociar. Desde Setembro que já mandei dizer o que quero, se sim, muito bem, se não vou fazer negócio para outro lado. Posso perder mas sou livre para esbanjar com a vontade e sem prisões a minha visão para o país. Pode tudo ficar na carta que lhes enviei mas não me vendo a qualquer preço. Força Catarina o país espera por ti há lá visão mais esclarecida?!

  17. joão viegas, não defendo o bipartidarismo. Falo de sistemas eleitorais alternativos onde se procura reduzir o risco da ingovernabilidade parlamentar. Por exemplo, o da Grécia.
    __

    Joaquim Camacho, aquilo que se considera “maioria” parlamentar não tem de corresponder a uma qualquer maioria sociológica. Porque esta dimensão plural onde há diferentes partidos ou movimentos não tem de governar, seria impossível a esse conjunto de indivíduos tomar ou aceitar decisões por si mesmos para o colectivo, e aquela “que toma posse” tem de governar, para inevitável desgosto de alguns ou todos.

  18. Tanto sofisma que aqui se produz! Apesar de séculos de lavagem cerebral, a verdade permanece límpida para quem queira ver: o génio da Grécia Antiga não esteve em atenas, mas em Esparta!

  19. Não percebo. Na democracia ateniense, tanto quanto julgo saber, os membros da Boulé e os principais magistrados eram escolhidos por sorteio, não por eleição. E muitas magistraturas eram anuais, ou mesmo semestrais. Não é disso com certeza que estas a falar. Falas da Grécia de hoje ? Mas não se trata de um sistema parecido com o nosso (confesso que não conheço bem) ? De que é que esta a falar, ao certo ?

    Boas

  20. joão viegas, referia-me ao sistema eleitoral da Grécia contemporânea. É parecido com o nosso e é diferente na parte que aqui discutimos.

  21. não tem nada que haver sempre quem mande , o que tem de haver sempre é quem execute o acordado , e esse “quem” pode ser sorteado entre todos os participantes na assembleia ( dá é muito trabalho , né , e então , vai daí , contratamos uns tipos para tomar conta do condomínio , que às tantas fogem com o dinheiro dos condóminos ).
    muito gosta esta gente de passar atestados de incompetência a quem lavra .

  22. Para que não subsistam dúvidas acerca da primazia civilizacional de Esparta, basta lembrar as inquestionáveis virtudes educativas e morais da sua agogé, a profunda sapiência da sua eugenia e a exemplaridade heróica de Leónidas e dos magníficos 300, que conquistaram a imortalidade.

  23. Subscrevo a tua análise, Joaquim Camacho.

    Valupi,
    o sistema eleitoral português já protege e beneficia claramente, em minha opinião demasiado, os grandes Partidos face aos pequenos, por causa da existência de muitos e pequenos círculos eleitorais.

    Só esse estratagema permite que se obtenham maiorias absolutas de Deputados com muito menos de 50% dos votos. Não acho que seja preciso aldrabar ainda mais a Matemática como faz o sistema grego, que “oferece” de bandeja cinco dezenas de Deputados ao Partido mais votado!

    Em Portugal, em prol da justiça eleitoral, deveria haver no máximo cinco [+ 2] círculos eleitorais, um por cada Região administrativa [Autónoma], o que reduziria em muito a distorção que se verifica entre a percentagem de votos e a de eleitos, com grave prejuízo dos pequenos Partidos.

    Por outro lado, a existência de círculos eleitorais em que apenas se elegem dois Deputados, como é o caso por exemplo de Portalegre, torna inútil a votação em Partidos que não sejam o PS, ou o PSD, isto é, todos os votos na CDU, no Bloco, no CDS, na PAN, na IL, no “Chega”, ou em qualquer outro Partido mais pequeno vão todos parar literalmente ao lixo, o que considero não só imoral, como um dos principais factores do abstencionismo nos círculos eleitorais do Interior.

    Custava muito resolver este problema? Claro que não, mas nem toda a gente é amante da Justiça…

  24. Proposta de exercício prático:
    recalcular a distribuição de Deputados na AR, com base nos resultados das últimas Legislativas, agregando os Distritos do Continente (que, aliás, já só existem para efeitos eleitorais!) por Regiões — Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve.

    Depois, descobrir as diferenças.

    Tendo em conta que a diferença magna seria a da muito maior fidelidade dessa distribuição à vontade real do eleitorado. Que é para mim o bem supremo em Democracia.

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