A condenação de João Adélio Trocado estimulou o aplauso de uns e a saliva de outros. Tudo porque o caso se presta a validar a perseguição e castigo dos anónimos que insistem em comunicar na Internet – percepção esta reforçada por Fernando Esteves, o jornalista autor da acção, ao declarar que “A blogosfera não pode ser um campo onde se diz tudo sem consequência.” Infelizmente, conheço apenas do julgamento e sentença o que saiu na imprensa, e é muito pouco. Mesmo assim, há quatro aspectos a realçar:
– O médico terá enviado para a direcção da Sábado, entidade patronal do jornalista, os textos que escrevia no seu blogue, numa continuada referência crítica que durou 4 anos.
– A juíza Joana Ferrer Antunes considera a profissão do condenado uma agravante para a pena.
– As afirmações citadas como exemplo da matéria punível são uma resposta indignada ao trabalho jornalístico de Fernando Esteves.
– A problemática, ou temática, do anonimato não parece ter sido valorada na sentença.
Tomando literalmente o que veio a público, o Tribunal está só a punir aquilo que entende ser uma difamação, sendo irrelevante o meio pelo qual foi feita, mas relevante o estatuto deontológico, ou social, ou até simbólico, da pessoa que assim agiu. Interpretar a sentença, como o fez Fernando Esteves, no sentido de um castigo ao anonimato na Web poderá não passar de uma deturpação do intento da juíza ao serviço do seu acerto de contas com essa entidade provincianamente chamada de blogosfera. Só a leitura completa do processo poderá esclarecer a questão.
O jornalista também se mostra surpreendido por se ter conseguido identificar o autor do blogue em causa. É uma surpresa que provoca outra surpresa, pois se sabe, e desde sempre, que os operadores de Internet têm a possibilidade de identificar os utilizadores dos seus serviços. De resto, quem pretende usufruir da condição de anónimo para actos ilícitos não mantém um blogue. A quantidade de informação gerada por tal actividade junta um caudal de dados que até permite mapear o seu quotidiano. Daí a estranheza com este entusiasmo do vencedor do litígio, partilhado por várias figuras, onde se celebra uma putativa criação de jurisprudência para apanhar bloggers que sejam malcriados.
Aquando do recurso interposto por Sócrates contra uma decisão do Tribunal de Instrução Criminal – que tinha considerado não haver “indícios suficientes da prática do crime de difamação” no artigo de opinião do jornalista João Miguel Tavares, “José Sócrates, o Cristo da política portuguesa”, publicado no Diário de Notícias – pôde ler-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que o recusou a seguinte citação de Costa Andrade in Lei da Imprensa Anotada e Legislação Conexa Quid Iuris, Lisboa, 2001, pág. 98 e 99:
O exercício do direito à crítica no sentido e alcance do atrás exposto, legitima, por isso, o recurso às expressões mais agressivas e virulentas, mais carregadas (mesmo desproporcionadas) de ironia e com efeitos mais demolidores sobre a obra e a prestação em apreço (…) Nesta linha, para citar expressões pedidas à experiência jurisprudencial pode apodar-se de pornográfica uma revista de análise política, caracterizar-se uma obra de arte como um monte de estrume, uma prática médica como bruxaria ou curandeirismo, uma actuação política como própria de novos e velhos fascistas, acusação penal como inquisitória, persecutória, kafkiana, uma sentença como um disparate ou chorrilho de venerandas asneiras… À luz do direito fundamental da liberdade de expressão é necessária uma actualização que abra toda a actuação das autoridades públicas e funcionários, dos tribunais e dos juízes, do parlamento e dos deputados, dos partidos políticos aos juízos de crítica.
Em consonância, os doutos juízes do Tribunal da Relação consideravam que tinha ido bem o caluniador João Miguel Tavares pois mais não tinha feito do que emitir a sua estimada opinião; ainda por cima, a respeito de um político, ser com menos direitos do que o vulgar cidadão. É uma posição que se agradece, escusado será dizer, pois promove a rapidez da Justiça ao evitar o aumento do número de processos à espera de despacho. Mas a partir da qual nasce uma pergunta face à propalada exemplaridade da condenação de um blogger dito anónimo: quererão os jornalistas ser uma casta de prima-donas cujo trabalho não pode ser criticado desbragadamente? Se este caso servir de jurisprudência para esse fim, e não se limitar a ser uma justa (ou injusta, sei lá) punição de afirmações difamatórias, então veremos aparecer o verdadeiro anonimato. E os jornalistas não terão qualquer defesa contra ele.
ai, Val, que um dia destes ainda te vêm prender por causa dessa bocarra que se desnuda pelos dedos. mas eu defendo-te, com gana, se for de manhã. :-)
(as autoridades que prendem os terroristas como tu devem picar cartão, estou eu aqui a pensar com o laço das minha trança) :-)
Sim, posi claro, como as coisas começam a estar pode aparecer por aí um pasquim intitulado «O veneno da madrugada». Já faltou mais.
pasquim, querido, com o Zézinho estás fodido! :-)
(aprendi mais uma palavra que não conhecia, obrigada) :-)
“O jornalista também se mostra surpreendido por se ter conseguido identificar o autor do blogue em causa. É uma surpresa que provoca outra surpresa, pois se sabe, e desde sempre, que os operadores de Internet têm a possibilidade de identificar os utilizadores dos seus serviços.”
Isso pode se contornado ;-)
se se quiser que os comentários neste blog sejam, de facto, anónimos, garanto-te que há formas de o fazer. Nem o operador de telecomunicações lá chega. Há formas mais ou menos básicas e outras mais elaboradas de mascarar o Endereço IP. O endereço que apareceria no teu blog seria um qq da Rússia, Finlândia, …. e nom operador apareceria um acesso a um qq site que reencaminhava para outro, and so on …
Estás a confirmar o que digo, Ibn.
Já agora só uma nota complementar – julgo que o nome «O Veneno da Madrugada» se trata do título de um livro do Gabriel Garcia Marquez.
também não sei. mas, a ser, só pode ser docinho o veneno.:-)