Cineterapia

Mark Ruffalo
Spotlight_Tom McCarthy

A imagem acima não é do filme de que falo. Ou será? Capta uma micro-expressão de Mark Ruffalo ao ser entrevistado sobre o seu trabalho. Esplêndido trabalho, o melhor da sua carreira até à data (enfim, sei lá eu). Nesse preciso momento, estava a explicar que os padres violadores escolhem rapazes como vítimas para os seus abusos não por motivos relativos à orientação sexual mas ao efeito destrutivo que esses abusos têm nas crianças e jovens do sexo masculino – para mais já fragilizados por ambientes familiares social e economicamente degradados, a tipologia preferida dos sacerdotes criminosos. Estas vítimas ficam esmagadas pela vergonha e pela confusão, o que as leva a sentirem-se impotentes sequer para pedirem ajuda, assim permitindo o prolongamento dos abusos. O rosto deste actor não está aqui a expressar prazer, o que vemos não é um sorriso. Trata-se de um esgar de dor, incontrolado, que dura menos de 1 segundo. É o rosto de um cidadão.

Há três histórias a decorrerem em simultâneo nesta obra que se vê com um ambíguo sentimento de orgulho colectivo. Uma relativa ao papel do jornalismo como autêntico quarto poder. Outra relativa à Igreja Católica como instituição cúmplice de crimes abomináveis, tanto pelas consequências individuais como pela escala. E uma terceira, e a mais importante na trilogia, que concerne aos mecanismos pelos quais a sociedade convive e protege o crime. No caso, o crime é do foro sexual, mas a lição aplica-se a outros crimes que dependem do acordo de poderes fácticos variados. O filme não se inibe de fazer uma comparação com a Alemanha Nazi e o alegado desconhecimento dos alemães civis ao tempo acerca do que se estava a fazer aos judeus e outras minorias. Sabe-se hoje que até no exército regular alemão havia soldados a participarem em chacinas, assim como ninguém acredita que as populações junto dos campos de concentração ignorassem a matança industrial.

O arco narrativo institui no seu interior uma contraposição entre dois pólos, assim estabelecendo um círculo hermenêutico nuclear onde o filme se assume como acto político. De um lado, temos a cena em que se dramatiza como Sacha Pfeiffer convenceu Joe Crowley a ser explícito a respeito dos abusos sexuais e emocionais que sofreu, não se ficando por expressões genéricas e evasivas no seu testemunho. O diálogo frisa a necessidade moral de se exibir com objectividade e realismo os acontecimentos. Estamos, pois, perante o simétrico do voyeurismo, este mais uma violação na sua intenção e fruição. Do outro, temos a cena em que se dramatiza a indignação, raiva, desespero que invadem Rezendes quando este se confronta com a demora em denunciar os crimes e os criminosos. Já não estava em causa o jornalismo nesse momento da personagem e do filme, era outra coisa que aparecia absoluta. Era o sentido da vida e o seu ofuscante apelo do amor ao próximo ou do amor à cidade. É escolher, sendo que os dois conceitos admitem plena equivalência.

Para nós, afonsohenriquinos, o filme tem um duplo interesse acrescido. Sendo o fiel relato do que aconteceu em Boston no princípio da década passada, a ascendência de Mike Rezendes, neto de açorianos, intensifica o valor do seu exemplo como repórter de investigação ao serviço de causas nobres. Esta uma trivialidade secundária, pois o amigo Rezendes é um americano de gema para lá da árvore genealógica. O outro ponto de interesse remete para o panorama da imprensa portuguesa. Quem é que se lembra de algum jornal, rádio ou televisão que tenha feito uma investigação capaz de afrontar algum poder nefando ou que tenha alterado a forma como a comunidade se vê a si própria? Em vez disso, parece que os nossos heróis jornaleiros encontraram um fulano que é o responsável por todos os males da Nação, nem carecendo de condenações ou sequer acusações para irem enchendo os bolsos e a pulhice própria na exploração desse maná sensacionalista e calunioso. Descobriu-se que ele fez férias ali e acolá, coisa para uns milhares de euros de cada vez, e que até comia ostras em Paris, vejam bem a pinta do monstro. Nisso, Portugal é muito parecido com essa cidade norte-americana de cultura católica, a qual tentou abafar as violações cometidas e por cometer. Nós assistimos a algo análogo que nos é servido com a suprema perfídia de ser apresentado como sendo para o nosso bem, tal qual como se pratica na ancestral arte da manipulação de consciências. Não estamos em Boston, mas estamos na bosta.

13 thoughts on “Cineterapia”

  1. Val, a tua catolicoclericofobia e tudo quanto sirva para a satisfazer e o maior sinal de indigência e apoucamento cívico da nossa sociedade que tivemos oportunidade de conhecer em vida.

  2. és fabuloso, Val, nisto de fazer pontes e de me deixares a pensar :-). adoro. a pensar de que é feita esta massa de gente que se tem como perfeita do, e no, universo até à Cidade. na verdade parece que o abuso começa mesmo na arrogância.

  3. Lucas Galuxo, temo que tenhas partido para um planeta distante. Aliás, terias mais facilidade em encontrar textos meus a defender a Igreja, e os fiéis ordenados ou leigos, do que o contrário. Logo, essa da catolicoclericofobia erra o alvo por muitos anos-luz.

    Vou atribuir ao facto de não teres visto o filme a tua momentânea perturbação.

  4. deduzida acusação de quê ?

    O ramo do direito penal, por estar em jogo a vida e a liberdade das pessoas, e por as penas serem pesadas, é do tipo, fechado ou de “numerus clausus”, o que significa que os crimes e as correspondentes penas têm que estar devidadmente tipificados na lei .

    De onde, é de suma importância identificar cada crime, para poder aplicar a correspondente sanção.

    Pelo que sabemos pela imprensa, para o MP, seria um esquema para ocultar uma fortuna, acumulada por meios ilícitos, o que envolveria, corrupção, branqueamento de capitais, evasão fiscal, e sei lá mais o quê .

    Vai ser muito difícil para o MP deduzir uma acusação devidamente fundamentada porque terá necessariamente que fazer corresponder a cada pagamento ( e isto, já concedendo como pacífico e garantido que cada transporte de dinheiro vivo ou transferência bancária para off -shores fosse um pagamento ) um concreto acto, assim, seria tanto para pagamento disto, outro tanto para pagamento daquilo, e por aí adiante . Tudo devidamente escarrapachadinho . E isso não vai ser nada fácil.
    Quanto ao resto, nem precisa a acusação, de referir as sanções aplicáveis, porque dessa matéria, sabe o juiz.
    Mas isso, já só se o juiz considerar como provado, o alegado na acusação.

    Como é evidente, não pode o MP, nem neste nem noutos casos, deduzir uma acusação com base em generalidades, tais como, ” o acusado engendrou um esquema de ocultação de dinheiro na conta de familiares e de um amigo, dinheiro esse proveniente de corrupção ” .
    Isso nem pernas tem para chegar a um tribunal .

  5. Quanto ao tema do post, que eu me lembre assim de repente, apenas o clero católico, está proibido de contrair matrimónio, todas as demais religiões, admitem o facto natural que é o homem e a mulher casarem e contrairem família.
    Excepto, talvez o budismo, que creio, permite permanência temporária nos mosteiros . Nessa situação, não pode ter o conjugue no mosteiro . Mas pode sair quando quiser, e ser até casado, antes, depois, ou mesmo durante, dependendo dos vários ramos do budismo, seja japonês, chinês, tibetano, etc .
    No caso da igreja católica, como se vê, a ausência forçada de uma vida sexual normal e natural, tem efeitos graves .

  6. Em cima, faltou acrescentar a fechado, tipicidade, devia ter escrito, TIPICIDADE FECHADA, assim é que está correcto .

  7. A anormal concentração de pedofilice entre a padralhada católica não tem nada a ver com a ausência forçada de vida sexual “oficial” resultante do celibato. Sempre houve, aliás, padres com vida sexual activa, hetero e homo, e não faltam, até, padres com filhos. A uns e outros a minha simpatia e solidariedade, nada tenho contra, keep on with the good work!

    Coisa bem diferente é a anormal concentração de pedofilice homossexual na padralhada católica, que resulta do facto de muitos pederastas sem qualquer vocação eclesiástica se aperceberem da imaturidade/vulnerabilidade psicológica e facilidade de manipulação das jovens ovelhinhas católicas e do fortíssimo ascendente natural que os representantes oficiais de Deus na Terra têm sobre elas. Assim, usam uma fingida vocação como camuflagem para, completada a “formação profissional”, conseguirem uma paróquia que antecipadamente tencionam transformar em coutada privativa, com licença exclusiva para caçar. Quem é que vai desconfiar do guarda? Ou, como vi na apresentação do filme (que conto ver para a semana), “como é que se diz não a Deus?”.

  8. efectivamente não estamos em boston mas na bosta.o dr .castro caldas, surpreendeu-me com a sua declaração.se volvidos estes meses ainda não conseguiram deduzir acusação,como o podiam fazer quando socrates ainda era pm. devo ser burro e por isso não compreendi o caldas.

  9. ontem o Pentágono anunciou em solene conferência de imprensa ter colocado a Rússia e o ISIS (por esta ordem) no mesmo rol de ameaças mundiais. A Rússia, vejam bem, dando a ideia que precede em perigosidade essa inominável organização de terrorismo e genocídio. Vale isto por dizer que com as indignações temáticas sobre o que se passa n’América do sr. rufallo, do sr. rezendes e do dr. valerico podemos nós bem.

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