Cineterapia

FOR SUNDAY - Brooklyn lawyer James Donovan (Tom Hanks) is an ordinary man placed in extraordinary circumstances in DreamWorks Pictures/Fox 2000 Pictures' dramatic thriller BRIDGE OF SPIES, directed by Steven Spielberg. FILM STILL - PHOTO: Jaap Buitendijk
Bridge of Spies_Steven Spielberg

Gostar muito, pouco ou nada deste filme depende da hermenêutica. Porque estamos perante uma obra que se inscreve na tradição sapiencial judaica, aqui embrulhada numa falsa história de espiões baseada numa verdadeira história de espionagem. Pelo que o mais provável é não gostar do filme, ou gostar só até onde o barulho das luzes permitir.

Antes da sessão começar, umas cadeiras ao meu lado, estava um grupo de 8 mamíferos que iam comendo pipocas e largando alarvidades sem parar. Ao chegar o intervalo, parte deles tinha adormecido e os restantes culpavam-se pela escolha do filme. Bazaram para meu alívio antes das luzes se voltarem a apagar. E não perderam nada, pois nada iriam compreender, nem sequer entender, de um filme cuja temática central é o Estado de direito e aquilo que o perverte ou salva.

O herói spielbergiano, advogado de profissão, começa a revelar a sua natureza num diálogo inicial onde se mostra inabalável na defesa dos interesses das seguradoras. Não é do interesse das seguradoras fazer o bem sem olhar a quem, pois indo por aí desapareciam. As seguradoras têm de se proteger, pagando o mínimo possível. Que nos diz esta cena? O que cada um quiser, se ainda se lembrar dela quando estiverem a passar os créditos finais. Para mim, é uma chave para ir abrindo os sucessivos salões da narrativa. Neles, o nosso herói limita-se a ser banal. Só que ao serviço do bem. Tão serviçal se revela nessa função que chega a arriscar a sua carreira profissional e a segurança da sua família. E ao voltar a casa, depois da missão cumprida em glória, a sua mulher tem a certeza de que o homem que regressou da aventura é exactamente o mesmo que partiu. O mesmo tipo, agora a roncar esmagado pelo cansaço em cima da cama. A tal fulano que vai de metro para o emprego, na última cena, e se entrega ao calor do Sol para celebrar a sua contradição, essa banal vaidade de uma banal pessoa que agiu de forma exemplar. Perfeita. A perfeição de colocar a sua vida em risco para salvar a vida do seu próximo – fosse ele quem fosse e quando fosse. Stoikiy muzhik, ou a coragem da decência, para citar o diálogo principal que fica como instantâneo clássico cinéfilo. Foi daqui que nasceu, ao longo dos séculos, a essência do Estado de direito.

O que é o Estado de direito? É o ponto de equilíbrio entre a coerção da comunidade e a liberdade do indivíduo. É o modelo que promove a diminuição da violência entre cidadãos ao definir a Justiça como uma obra colectiva. Daí estar na democracia o regime que realiza plenamente o potencial do Estado de direito para concretizar a liberdade de todos por igual. Em Portugal, como consequência tanto da crise começada em 2008 como da decadência da actual direita, temos assistido a continuados ataques ao Estado de direito. Esses ataques vêm de poderes fácticos, como órgãos de comunicação social, e de poderes políticos institucionalizados, como partidos, Governo e até Presidência da República. Nesse sentido, este filme tem particular importância para uma parte do público português. A parte que não adormeça com a pança cheia de pipocas.

2 thoughts on “Cineterapia”

  1. ai que saudades eu tinha da cineterapia! :-), das tuas entrelinhas das entrelinhas onde não cabem pipocas a cheirar a chulé na mistura com as alcatifas. bem visto, é isso mesmo que tem vindo a acontecer por cá: um desequilíbrio, resultado do equilíbrio fanado em vigília.

  2. Mas é isso que está a dar ! um homem faz um seguro contra todos os riscos do seu belo carrinho e, quando um dia tem o azar de bater, a companhia de seguros dez-lhe que, e tal, a crise, tem que cortar nas despesas… e só lhe paga metade do arranjo. Mas se o segurado for um estrangeiro, então há que cumprir os compromissos com os credores estrangeiros…

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