Cineterapia


War Horse_Steven Spielberg

Quando comecei a andar a cavalo cometi o mesmo erro de quando comecei a dar aulas, tentar ser amigo dos animais. O resultado foi igual em ambos os casos: estatelei-me no chão muito rapidamente. Desconhecia que os animais não querem a nossa amizade, que amigos é o que não lhes falta e que nós, bisonhos e líricos, não temos pinta para merecer a sua amizade. Colhe registar, para aviso de terceiros, que o chão arenoso de um picadeiro é muito mais suave do que o olhar de 30 catraios embevecidos com o espectáculo de um professor completamente à nora. Depois a vida fez o grande favor de me proteger das quedas dentro de uma sala de aula, enquanto me vai ensinando com muita paciência a manter-me em equilíbrio em cima de uma sela. Os cavalos também me têm dado variadas lições em diferentes disciplinas humanas, uma delas relativa à essência do trabalho e do ócio.

Desaparelhar um cavalo, para quem estiver atento, é ser testemunha da inconfundível expressão de alívio daquele magnífico ser. O bicho sabe que não nasceu para carregar pesos às costas, ter a boca sequestrada e correr numa direcção que não escolheria se estivesse em liberdade. Por isso, a contida impaciência é transmitida pelas subtilezas do olhar e dos sons enquanto vamos desapertando as correias e retirando os arreios. O que ele mais quer é comer depois do esforço, beber água e ficar na conversa com outros cavalos. O animal tem consciência de ter trabalhado e manifesta o seu direito ao ócio. De repente, o trabalho ganha uma dimensão cósmica, aparece como mais uma modalidade de organização da matéria inscrita no destino biológico.

Cavalguemos até ao João Lopes, uma das referências maiores da crítica cinematográfica nacional, e alguém que dá regulares e consistentes sinais de não estar afectado do bestunto, o qual me deixou exultante com estas poucas palavras:

Para já, fica também o mais simples: Cavalo de Guerra é um dos grandes filmes do ano. E a certeza de que, se há herdeiros de John Ford no actual cinema americano, um dos mais importantes chama-se Steven Spielberg.

Fonte

Ainda não tinha visto o filme e pensei que, para o cinéfilo, nada podia ser melhor do que esta notícia: Spielberg montado em Ford (salvo seja), com selo de garantia de João Lopes. E lá fui ver assim que estreou, desenfreado. Logo na primeira barreira, a minha expectativa borregou e eu parti em voo para aterrar num charco lamechas: Spielberg não percebia um casco de equídeos nem mostrava vontade de alguma vez vir a perceber. O filme queria era contar uma estafada história infantil, onde o animal era um ser mágico e os humanos os patetas figurantes de ocasião para servirem de matéria a uma manipulação emotiva verdadeiramente obscena. Qual Ford, qual quê. Mesmo admitindo que, nalguma noite mal dormida, tenha passado pelo Jack o esboço de um argumento cujo protagonista fosse um animal, jamais o veríamos a transformar um cavalo num veterinário amador com vocação sacrificial, fluente em alemão após uma semana de convívio com a soldadesca do Führer. Jamais uma câmara sua filmaria uma miúda dita pela narrativa frágil demais para o exercício físico a ter o seu baptismo equestre sem ajuda fosse de quem fosse e a arrancar num elegantíssimo galope por uma ladeira acima sem ter sequer passado pelo trote nem pelo passo. Jamais, jamais, jamais, Ford, que filmou a carnificina da guerra num dos seus momentos mais horrendos, o desembarque das forças americanas na praia de Omaha no Dia D, gozaria com a memória dos mortos inventando um cavalo à prova de bala.

Em The Sun Shines Bright, Ford ensina-nos a nunca confiar na palavra de um cão. Se Spielberg fosse o tal herdeiro que o João Lopes proclamou por alucinação momentânea, teria colhido essa lição e crescido com ela. Contaria a história de um cavalo que tudo fez para não ser humano. E só por isso, e nisso sós, o podíamos amar como um dos nossos.

10 thoughts on “Cineterapia”

  1. que bom – dá vontade de mandar vir outro deste para a minha mesa e continuar a chupar o molho que resta na ponta dos olhos. e é verdade isso do que é suposto ser a relação entre nós e os cavalos e outros bichos de quatro patas. mas quando nos desafiamos à magia de sermos merecedores da sua, da deles, amizade, conseguimos cavalgar ou ladrar como se fossemos iguais. e somos, se deixarmos e quisermos e acreditarmos na tal magia. (e que frustração não poder lamber o meu sangue para não ter de usar pensos.) mas eles são melhores, mais genuínos, mais felizes, mais leves. e amam, não quem lhes dá comida, quem os olhos deles, que estão carregados de vales e de montes e de águas, amam.

  2. oh desaparufusada! és mesmo burra, compra uma extensão de língua ou apara o molho para um copo e depois bebes.

  3. cruzes canhoto, só dei uma sugestão, com duas alternativas, para resolveres a frustração dos pensos, mas se a ideia é recorrer a outsourcing experimenta o link abaixo e diz que vais da minha parte que eles fazem-te desconto.

    http://www.limpezadefossas.com/

    ps – além de porca és mal educada

  4. é isso mesmo: não sou amestrada. e se queres meter-te com alguém, não fiques à minha espera, mete-te com o caralho do cavalo que pode ser que gostes.

  5. Maravilha de texto. Sabes que queria tanto que o filme fosse tão bom como o que afirmava o João Lopes. Mas também me parecia difícil, o Spielberg está em curva descendente acentuada desde o Catch Me If You Can.

  6. Sim, o Catch Me If You Can vê-se muito bem. O que vem a seguir já não fica na memória. Mas o próximo filme de Spielberg a sair é o Lincoln, uma proximidade com o universo fordiano que poderá, finalmente, fazer a justa homenagem ao mestre ou voltar a explorar superficialmente, esteticamente, os seus mais básicos clichés.

  7. A minha pachorra para o popular “carreirista” (*) Estêvão Monte de Brincar esgotou-se quando aterrei na poça mais agónicamente lamecha de toda a minha caminhada cinéfila: um horror tumular, chamado «A Côr Púrpura». Adeusinho…

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    (*) De Tony e Mickael (& etc.) Carreira.

  8. Uma égua com nome raro, égua no bom sentido Olinda! De vez em quando tenho que vir espreitar o que vais dizendo mas só de vez em quando para não ficar valentemente entusiasmado, o Valupi que me desculpe mas é nos posts dele que tu me excitas mais com essa tua maneira de ser e como não posso comentar lá… Só te posso dizer que sou um bom partido…Douradinha. Bjo. Se quiseres descobrir quem sou vem a este email [xxx]

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