Bruno e o Facebook

Estava encostado à bilheteira. A não-sei-quantas viria entregar-me o bilhete. Que era só um bocadinho. As luzes alaranjadas da estação, embrulhadas na humidade negra, reclamavam o protagonismo na paisagem. Ao seu lado, as rulotes descansavam. Eram cada vez menos os que corriam de um lado para o outro, sobravam os que tinham como fatalidade sofrer à porta do templo. Súbito, recordei-me daquela vez em que escolhi passar de ano sozinho. A meia-noite explodiu no perímetro da minha solidão. E desabou implacável. Gritos, urros, foguetes, tachos, músicas inclassificáveis sucederam-se durante longos minutos de morte e ressurreição. Eis o que o cliché queria dizer, estar sozinho no meio da multidão era aquilo. E aquilo era a derrelicção, seja lá o que este palavrão signifique. Também ali, enquanto a não-sei-quantas andava a fazer não sei o quê em vez de me vir entregar o bilhete, enquanto se jogava há mais de 7 minutos, enquanto o estádio resfolegava e guinchava a toque de espora e chibata, virado para um campo grande e encostado a um campo enorme, se podia sentir essa solidão acompanhada donde se contempla a verdade. A verdade era a de que me podia ter enganado na bilheteira.

Entregue isto ao vosso presidente de merda!” – berrou o pequeno homem que entrou em cena pela direita. Fiquei a olhar para ele ao se afastar e ir ter com um grupo de 3 ou 4 que assistiam impávidos. Por pudor, evitei olhar para o postigo ao lado onde foi entregue certa coisa cujo destinatário era o meu presidente. Não vi o que era, mas não poderia ser grande. Esse era o único dado sobre o qual as dúvidas eram nenhumas perante o tamanho da abertura na vidraça. Que seria? Um bilhete para o jogo? E, nesse caso, tratar-se-ia do meu bilhete? Ou seria o cartão de sócio? Ou o cartão de cidadão? O boletim de vacinas? Uma colecção de selos? Um exemplar da Análise Social que escapou à censura do José Luís Cardoso? Irei carregar o enigma até ao fim dos tempos. Felizmente, para meu alívio mental, pouco depois apareceu uma figura que rivalizava em heterodoxia com o sujeito que envia coisas ao presidente via bilheteira. Este era um rapagão alto, nos seus vinte e muitos ou trintas, devidamente fardado para a ocasião, que conseguiu passar a barreira dos seguranças recorrendo a um ousado argumento: queria fazer-se sócio e ir ao jogo. Ou seja, a sua esperança era a de ainda conseguir entrar no estádio antes do nascer do sol. Alegava que lhe tinham dito ser possível fazer a magia na “loja Stromp”. Fiquei a pensar que tamanha manifestação de fervor leonino é que merecia um prémio Stromp. E ele devia estar a pensar exactamente como eu, porque mesmo depois de lhe explicarem que os bebés não vêm de Paris no bico de uma cegonha, menos ainda por TGV agora que o Sócrates foi corrido, ele continuava na zona da bilheteira, imóvel, olhando para um ponto no horizonte que não devia estar longe posto que na direcção do seu olhar apenas se vislumbravam prédios muito feios e camionetas horríveis. Nisto, materializou-se a não-sei-quantas. Não tinha bilhete algum para mim, nem sequer meio bilhete. Era na outra bilheteira que me conheciam e estimavam.


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Que som faz um golo sofrido pela nossa equipa no nosso estádio? À minha frente havia sandes de leitão e sandes de queijo com chourição. Também via batatas fritas de pacote. E queijadas. Tinha de escolher o jantar à velocidade do contra-ataque do Real Madrid. Escolhi muito e bem, um conjunto variado que rondaria as cinco mil calorias, para acabar a devolver tudo e pagar apenas uma garrafa de água dado que não existia Multibanco do lado de lá do balcão nem existia mais de um euro e meio em dinheiro analógico nos meus bolsos. E foi de garrafa de água das pequenas erguida que consegui sentar-me na bancada só para descobrir que perdíamos por 1 a 0. Que som faz um golo sofrido pela nossa equipa no nosso estádio quando esse golo é obtido através de um belíssimo golpe de cabeça do nosso avançado goleador de quem se espera que marque mais golos de cabeça do que com uns pés que parecem tortos? Esta é que era a questão na sua latitude ontológica. Salvo melhor resposta, não faz som sonoro. Se fizesse, no bar, a poucos metros da selva, teria ouvido esse clamor a contrario. A menos que as sandes de leitão tenham propriedades de inibição acústica; algo possível, mas muito improvável antes de se ter consumido meia dúzia delas em menos de uma hora.

Islam Slimani… Se há nome adequado à carreira de bombista suicida é este. “Islam” já está mesmo a dizer ao que vem, né? E quanto a “Slimani”, só não percebe quem não quiser, ou for parvo. Pois este islamslimanita leu as pungentes palavras do Bruno no Facebook, as quais exibem a marca de uma liderança carismática, e que resolve fazer a seguir? Nada menos do que um atentado contra a humanidade sportinguista, mais de 100 anos de civilização que o sarraceno se propõe destruir ao serviço dos alemães. Como era isto possível? A causa tinha sido modificada, as sábias palavras do Bruno, afinal, provocariam traições e catástrofes? Ou estaria a testemunhar a transformação do futebol sportinguista numa pastorícia à portuguesa? Estes eram os meus considerandos nos dois minutos que levava de poiso no lugar 5 da fila 5 no sector B32. Acontece ser esse um ponto de vista privilegiado para se observar o Bruno a enfrentar o terrorismo internacional a partir do banco; como é aconselhável e não só para lidar com terroristas. E lá estava ele, esparramado naquele ângulo que Pedro Paixão revelou ser o indicado para se atingir o fluxo de consciência que tem vertido na sua obra literária com o sucesso conhecido. O Bruno não estaria em processo criativo à volta da musa desaparecida, antes combatendo com a pureza do seu ideal leonino as forças malignas que se tinham infiltrado nas hostes. Concluí que aquela situação derrotada não poderia durar muito mais tempo. Não era cosmicamente possível. Nem o destino se atreve a afrontar o Bruno.

Naby Sarr é um jovem muito talentoso que um dia jogará na posição para que nasceu, o ataque. Já mostrou ao treinador ser capaz de marcar golos a Rui Patrício em jogos oficiais. Foi este o eleito do Bruno para começar a reconquista. Pimba, toma lá! 1-1. Poderíamos ter marcado mais dois golos na primeira parte, mas Bruno, o empresário quântico, sabe bem que a incerteza é a fórmula estatística de um grande espectáculo. Pelo que deu ordens para se voltar a marcar apenas na segunda parte. Dito e feito. Primeiro por Jefferson, com um chouriço que não voltará a repetir até que o cometa Halley regresse. Depois por Nani, que ficou à mama a ver o Carrillo jogar à bola. Parecia composto. O Bruno já não precisava de manter o ângulo de 15 graus, a humilhação dos alemães estava garantida. Planos diferentes tinham os teutões, porém, como o golo marcado aos 88 minutos deixou claro. E reabriam-se as portas do inferno. A equipa iria resistir ou quebrar? A dignidade do clube e da camisola voltaria a ser espezinhada por um grupo de cobardes sem garra para vencer?

As derrotas do Sporting A e do Sporting B, somando 8 golos sofridos e nenhum marcado em menos de 24 horas, são aquilo que apenas um francês conseguiria resumir recorrendo à frase “a weekend which will live in infamy“. Bruno não é francês, mas estritamente porque não quer, não carece. Contudo, esculpe frases de recorte semelhante, se não for melhor. Que o é. As frases que libertou no Facebook após a desgraça, um canal demasiado azul para as pupilas de alguns consócios mas que não assusta o nosso presidente, só pecaram pela contenção, pela excessiva educação, pela timidez. Foram o desabafo de um introvertido, o vagido de um pachola. Foram igualmente palavras nascidas desse solo sagrado do leonismo eterno em que consiste a alma do Bruno. A sua força telúrica iria dar origem ao voo místico que estávamos prestes a testemunhar. Islam Slimani, o avençado avançado bombista suicida, foi tocado pela graça e aceitou que grande, grande só o Sporting e que Bruno é o seu profeta. Slimani abandonou o terrorismo internacional e converteu-se ainda de calções. Em todo o mundo livre, um único órgão de comunicação social conseguiu captar esse momento no seu ofuscante esplendor – o Diário de Notícias:

slimani
Leões vencem alemães e estão na corrida pelos ‘oitavos’

Não há engano, foi mesmo assim que aconteceu. O repórter não mente. Slimani faz um passe longo na sua própria direcção, consegue apanhar a bola, deixa um alemão para trás com a graciosidade de um paquiderme a fugir de um enxame de abelhas, e depois só tem de marcar o golo com um dos seus dois pés tortos, o que estava mais à mão. É um milagre, óbvio. Mas é, concomitantemente, o mais espectacular golo de cabeça na história do futebol. Porque foi preciso ter muita cabeça para conceber esta maravilhosa e sobrenatural jogada, e sem a divina inspiração vinda directamente da cabeça do Bruno para a cabeça do Slimani ela nunca teria existido.

O mote está dado, o padrão estabelecido. O Bruno resolve. Os jogadores ficaram a saber que as suas fraquezas físicas e morais serão devidamente denunciadas no Facebook. Quem não tiver estofo de herói escusa de aparecer nos treinos. A equipa do Sporting quer-se à imagem e semelhança do seu presidente: invencível, imortal e incontinente. Que venha o Paços!

(hã?… já veio?)

(e o Facebook? está alguém no Facebook?)

(alô? é do Facebook?)

3 thoughts on “Bruno e o Facebook”

  1. tão bom. já li três vezes e consigo ver cada palavra como se estivesse lá. até o courato do leitão tapado pela metade do molete, porque no meio, eu vi. adoro. :-)
    mais uma não faz mal. sabe bem.

  2. DIVINA e deliciosa COMÉDIA!!! Já chorei a rir!!! :)

    “A menos que as sandes de leitão tenham propriedades de inibição acústica…”
    “com a graciosidade de um paquiderme a fugir de um enxame de abelhas”

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