Apita o combóio

Em 1880 a imprensa de Lisboa voltou a insistir no tema batido – exploração turística da orla marítima entre a capital e Cascais, à semelhança do que se fazia em França em tôrno de Nice. A ideia já calava fundo no ânimo de muita gente. Não tardou a fundar-se a «Companhia do Monte Estoril», famosa e arrojada iniciativa de meia dúzia de capitalistas viajados, mas antipática aos mercadores da rua dos Fanqueiros. Dispunha a Companhia dum capital de 225 contos, e propunha-se a ousadas emprêsas de urbanismo.

Enfim, depois de muitas hesitações, de discussões acaloradas na imprensa e no parlamento, de dúvidas quanto ao futuro de região tão nua e estéril, a pressão dos modernistas, que o Rei D. Luiz protegia e encorajava, conseguiu dum ministério favorável a concessão do caminho de ferro para Cascais. A Real Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses considerou a linha como coisa de somenos. Chamou-lhe «Ramal de Cascais», e tão mesquinha era a região servida por êle que ninguém reclamou contra a designação.

[…]

Feita a linha, começaram a multiplicar-se as moradias de veraneantes em tôdas as povoações do percurso, ergueram-se altos muros de quintas em tôrno das casas apalaçadas que iam surgindo, plantaram-se cedros, olmos, ciprestes, castanheiros da Índia, faias, buxos decorativos, exóticos tamarindos, enfim, enquadrou-se em verdura o recorte doirado das praias e esmaltou-se o chão de jardins. Até Lisboa alterara o seu aspecto por via da linha, atulhando o córgo onde o caneiro corria na baixa do Atêrro e encaminhando-se as suas águas para o rio num conduto subterrâneo – modernismo que deixava boquiabertos, mas não mudos, todos os Velhos do Restelo disseminados pela capital.

MEMÓRIAS DA LINHA DE CASCAIS, Branca de Gonta Colaço e Maria Archer, 1943, Edição Fac-similada 1999, pp. 30-32

5 thoughts on “Apita o combóio”

  1. O esquecimento leva à repetição da história. Se em vez da bíblia na cabeceira, tivéssemos o livro “erros do passado, a evitar no futuro” teríamos um mundo melhor. Mas o que importa é que a caravana passe.

  2. Eu também podia perguntar ao Valupi pelos troços de caminho de ferro que foram desactivados nas últimas décadas, especialmente no interior. Quais são as conclusões a tirar daí? E basta apenas agora construir auto-estradas e mais auto-estradas para solucionar o problema? Será que não é preciso investir noutro tipo de infra-estruturas?
    Mas mesmo que o tgv vá funcionar razoavelmente, transportando por dia umas 1000 pessoas para Madrid (actualmente há apenas um comboio diário e o número de voos não é grande, além de que alguns deles iram continuar a ser mais baratos do que o tgv, por isso… nem sei se serão 1000 passageiros, desconfio muito, se calhar a procura vai ser suficiente apenas para uma viagem por dia), é razoável endividar fortemente o país por causa destas 500 pessoas que por dia vão encher o tgv? Não há problemas de tráfego (por exemplo) muito maiores dentro do nosso país e que afectam muitos mais milhares de pessoas? E que tal gastar uns fortes milhões a resolver o tráfego de Lisboa e Porto, por exemplo, investindo em soluções modernas para os transportes? É que estes problemas de trânsito e os atrasos que provocam fazem perder muitos milhões, todos os anos, à economia nacional.
    Só mais uma coisa, naquele tempo, construir uma linha de Lisboa a Cascais não é comparável com o risco que é o investimento no tgv.
    Cumprimentos.

  3. “…o Sr. morgado vai na sege rica, tudo repimpado, ai que bem lhe fica…”
    Prefeririam alguns ir de sege (rica ou não) do que de TGV. Já os outros não queriam que as caravelas rumassem mar adentro… Já ous outros não queriam a ponte que liga Lisboa a Almada e que chamaram de Salazar e depois de 25 de Abril… Já os outros não queriam (também) o Centro Cultural de Belém (talvez só o Cavaco e Berardo – que dele desfruta…), já os outros diziam que as auto-estradas são um desperdício… já os outros diziam (dizem) que os estádios são obras megalómanas… mas… e os interesses instalados, alguém os consegue demover de um dia para o outro? Será que há lobies bons e lobies maus? Teremos que fazer uma Revolução a cada ano para moldar as “consciências”, ou só devem ficar cá os “puros”?

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