À série


Borgen_Adam Price_2010-11-13

Esta série passou em Portugal em Janeiro e Fevereiro de 2015, na RTP, nas suas três temporadas (vem mais uma a caminho, prevista para 2022). Agora está disponível na Netflix, e o preciso momento que vivemos, em que assistimos à agonia das negociações entre o Governo e o BE (com o PCP não há espectáculo embora também haja dura negociação), é o mais oportuno para desfrutar plenamente desta pérola televisiva dinamarquesa.

Em 2015, até às eleições legislativas de 4 de Outubro e mesmo nas largas semanas seguintes, a possibilidade de o PS governar com o apoio do PCP e do BE continuava a ser para a enormíssima maioria, incluindo nela os especialistas em politica, uma quimera (metáfora que ainda vai a tempo de substituir a da “geringonça”, talvez merecendo ficar à espera dos eventuais primeiros ministros bloquistas e comunistas num futuro Executivo tripartido). Conceber esse Governo inaudito na história da nossa democracia num quadro em que o PS não teria obtido o maior número de deputados, então, já pertenceria ao domínio da pura alucinação – pelo que rigorosamente ninguém previu esse cenário antes das eleições. Porém, contudo, todavia, aqui estamos em 2020 à espera que a fórmula continue a dar frutos de estabilidade e justiça social, segurança e desenvolvimento, depois de uma primeira legislatura de enorme sucesso após o fim do bloqueio à esquerda no sistema partidário. As sucessivas sondagens mostram que não se concebe melhor solução política para o bem comum e o interesse nacional face às conjunturas económicas e sociais do presente e do futuro imediato.

Pois quem viu a série na RTP não pôde então reconhecer mais esses elementos de comunhão entre os dois países, dado que o enredo nas três temporadas pode ser entendido como um estudo das relações partidárias para conseguir acordos de governação num contexto de fragmentação partidária e fluída plasticidade ideológica na ficcionada configuração do parlamento dinamarquês – situação estranha à cristalização de décadas que o PCP impôs a seguir ao 25 de Novembro e que acabou por influenciar Louçã em 2009 e 2011, com os belos resultados que a História gravou na memória eleitoral. Mais uma razão, para os apaixonados por política, de renovado interesse a justificar o regresso ao Borgen. É ainda possível estabelecer variegados análogos entre as tipologias partidárias da narrativa, e suas figuras características representadas, com os partidos portugueses. O mesmo para os problemas políticos dramatizados, e para o comportamento dos meios de comunicação social, a um ponto de equivalência tal que chega a deslumbrar dadas as aparentes diferenças culturais, sociais e económicas entre a Dinamarca e Portugal. Também por aqui a série é altamente valiosa ao nos dar acesso a consumir um produto mediático europeu que nasce das diferenças entre os povos e, em simultâneo, esculpe a golpes de criatividade e realismo uma identidade e uma solidariedade comum, verdadeira união europeia.

E há muitas razões mais para ver esta excelente série pela primeira vez. Pese a semelhança temática, não será justo comparar Borgen com The West Wing, esse diamante de Aaron Sorkin que pertence ao panteão da TV. Nesta, a escrita intrincada e na esgalha, sempre a correr o risco de cair numa exibição vaidosa, espalha uma sofisticação e densidade que não têm qualquer paralelo com a escrita de Adam Price e sua equipa de argumentistas. A opção dinamarquesa é pelo registo não só realista, o que é duvidoso que seja o caso americano dado o seu artifício idealista, como pedagógico (a resvalar para o ingénuo?). Se fosse preciso concluir uma formação universitária em Direito, Ciência Política, História ou Filosofia para entrar a fundo no universo de Josiah Bartlet e Toby Ziegler, em ordem a nos sentirmos à-vontade no universo de Birgitte Nyborg e Kasper Juul basta estar em vias de concluir o secundário. Ao mesmo tempo, Borgen retrata fielmente as lógicas, dinâmicas, rituais e acidentes que ligam políticos e jornalistas num frenesim imparável de aproximações e separações, alianças e batalhas. E tudo isto, notavelmente, sem cair no melodrama nem procurar fazer humor.

Para mim, e não estarei só nessa experiência, o mais admirável na visão de Adam Price é ter conseguido mostrar a democracia a funcionar na perfeição sem ter cedido meio milímetro ao cinismo e ao tribalismo. As personagens são profundas quanto baste, o elenco é credível e envolvente, e há um arco narrativo que faz da decência o valor mais importante para o estadista. Um estadista que se vê a falhar como os outros, pois é humano, mas que é salvo pelo afecto e pelo idealismo de terceiros – da comunidade, portanto. Esse estadista modelo germinou na cabeça do autor da série e conheceu a luz no corpo e arte de uma actriz fabulosa, Sidse Babett Knudsen. Ela consegue o feito de vencer o estigma que penaliza as mulheres na política ao criar uma personagem cuja autoridade de líder é verosímil e inspiradora. Ficamos a sonhar com o milagre de vermos a Birgitte a saltar do ecrã e a meter-se a caminho do parlamento mais próximo. Afinal, a sua (e nossa) segunda casa.

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