À série

47boy

2011-12-13-14-15_David Benioff e D. B. Weiss_1ª-2ª-3ª-4ª-5ª épocas

Game of Thrones tornou-se, em Setembro, na série de ficção mais premiada de sempre nos Emmy Awards, o equivalente para produtos televisivos aos Oscars em prestígio e notoriedade. Qual o segredo do seu sucesso? Parte da resposta pode ser dada assim: esta série será o híbrido perfeito entre o estilo fantasista do The Lord of the Rings e a crueldade política do House of Cards. Mas enquanto o produto audiovisual da obra de Tolkien é de um simplismo infantilizante, apostando no aparato visual e cénico para envolver o espectador numa diversão superficial e desmiolada, o produto audiovisual da obra de George R. R. Martin aparece como uma iniciação à vida adulta, um curso de psicologia propedêutico ao confronto com a sociedade. Embora também meta dragões para animar a malta, e avarias pré-tecnológicas à conta da magia, embora tenha como cenário essa juliana de referências paisagísticas e étnicas que remetem para a Baixa Idade Média anglo-saxónica e os reinos das idades do Bronze e Clássica no Mediterrâneo e Oriente, o Game of Thrones está dedicado à análise dos humanos demasiado humanos que recrutou como protagonistas. E esses humanos são iguaizinhos aos que encontramos à volta de Francis Underwood, permanentemente em conspiração para obter o máximo poder pessoal e político ou a sofrer as consequências desse frenesim sem fim nem limites.

A série inova em realismo, ao conciliar uma embalagem púbere e adolescente, igualmente consumida por adultos até aos 50 ou 60, com um conteúdo arquitectonicamente organizado para servir tanto os públicos a partir dos 12 anos, que estejam a formar a sua identidade de género e a sofrerem o choque da progressiva consciência da sua sexualidade e seus efeitos na sexualidade das suas relações familiares e sociais, como os públicos maturos por experiência vivencial ou ciclo de vida. Resultado: Game of Thrones é como a revista Tintim, indicada para bacanos dos 7 aos 77 anos de juventude. E tem especial interesse contemplar como o erotismo, contrariando a convenção mediática, é trabalhado ao pormenor para atingir o realismo existencial e político que coloca a série como obra-prima televisiva.

Entre os vários exemplos à escolha, realço três de que vou destacar um. O primeiro corresponde à cena em que Jaime Lannister força Cersei Lannister a abrir as pernas (é disso que primeiro se trata, não sendo isso que depois importa) junto do corpo morto do filho de ambos. Num primeiro olhar, estamos perante a tentativa manhosa de ilustrar uma imagem chocante para efeitos de espectacularidade junto das audiências. Adentro da lógica do universo narrativo em causa, o que fica figurado esteticamente, raiando a tangibilidade, é a pulsão narcísica e megalómana que os consome. O aparato exterior da cena foi a engenharia necessária para nos levar para o realismo da ficção. O segundo corresponde à cena da caminhada de Cersei por entre uma multidão que a vai cobrindo de insultos, porcarias e excrementos. Na sua mecânica dramática, estamos perante um corpo que começa por ser um mero objecto de desejo voyeurístico e/ou de identificação de género, mas esse mesmo corpo vai-se transformando na expressão simbólica de uma humilhação moral. No final da longuíssima cena, e longa ela tinha de ser para lá podermos chegar, os pés macerados e sanguinolentos da personagem no contacto com o solo sugaram toda a energia erótica inicial. Substituíram uma atenção superficial ao estímulo anatómico por uma consciência da profundidade real da ficção consumida.

O terceiro momento está incluso numa cena passada no bordel de Petyr ‘Littlefinger’ Baelish. Querendo servir um cliente, entrega-lhe uma puta que tinha acabado de fazer um broche a um outro cliente. Ela surge em cena com sémen no canto da boca, algo que ‘Littlefinger’ rapidamente limpa sem que o cliente à espera veja – e algo que, pelo modo como está filmado, também pode passar despercebido a muito boa gente. Quando a mulher é entregue ao homem pagante, eles beijam-se. Cena gratuita? Antes de mais, desafio qualquer um a referir uma outra cena, seja de que série for, onde se tenha filmado algo identificável como esperma. Depois, se tal existir, comparemos os contextos respectivos. Na minha miserável experiência de telespectador, foi a primeira vez que vi tal coisa. Ainda por cima, a cena presta-se facilmente à crítica de estar apenas à procura de material sensacionalista. Porém, todavia, no entanto, não será assim tão bizarro que ao se fazer um broche que termine numa ejaculação possa haver esporra (sim, é um tabuísmo) na boca e queixo de quem o fez. A acreditarmos nesse pressuposto, o que finalmente alguém conseguiu fazer em televisão, e num formato transversal às gerações, foi representar o mais fielmente possível o quotidiano de um prostíbulo. Para quê? Para nos chocarmos com a evidência de existirem seres humanos com actividade sexual e seus efeitos fisiológicos? Não, pá, apenas para melhor acreditarmos no Petyr Baelish quando ele estiver a conspirar para manter e aumentar o seu poder.

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A lição pode ser resumida nesta sentença: se ainda estás no infantilismo de te deixares ofuscar pelo sexo, então é porque te andam a foder politicamente e nem sequer sabes como nem por quem.

10 thoughts on “À série”

  1. nunca vi . e agora de certeza que não vejo. mas li os livrs todos do harry potter :) :) adoro. e para esperma leio os do irvine welsh .

  2. “… e para esperma leio os do irvine welsh .”

    gostos não se discutem, a érica prefere engolir os broches que a cabrita faz.

  3. que tenebroso vómito que é esse lixo dessa série. só mesmo o dr. valerico para esguichar uma profusa diarreia sobre tamanha cagada que é essa série e que pelos vistos comeu à colherada. roto do cú, tal como o ignarôncio.

  4. A série de comentários chocarreiros acima não invalida o que, finda esta curta leitura, se me queda óbvio: que esta reflexão do Valupi sobre o ‘GoT’ é absolutamente (ou antes, ‘exactissimamente’) genial.

    E é sobre muito mais do que a série, como tão bem ilustra a frase que remata o texto.

    Obrigado pela partilha, meu caro, continua sendo um gosto lê-lo, também nestas desventuras (se só na aparência, claro) fora da Política.

    Se me o permite, receba deste seu leitor um abraço,

    Júlio Pina

  5. Júlio Pina, toma lá um abraço de volta e deixa-me louvar o teu faro para reflexões geniais. Quanto aos comentários chocarreiros, tal fenómeno nasce de este blogue ser realmente terapêutico. Um grupo considerável de chanfrados dos cornos passa os dias sentado frente a um monitor em vez de ir para a rua incomodar e assustar as boas pessoas trabalhadoras. Tudo graças a este serviço de terapia ocupacional que providenciamos gratuitamente à comunidade.

  6. pois, yo, o que nos torna interessantes é precisamente o que acrescentamos ao básico. e fornicar é mesmo básico. :-)

    feliz noite de natal para todos. – forniquem essas delícias de mesa todinhas. :-)

  7. Valupi, fui, vou fingir que por mero acidente, perfeitamente definido no teu comentário. Obrigado por me fazeres sentir parte da ‘família’, sobretudo hoje. Boa continuação.

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