A literatura é uma farça

A Nós Escritores cumpre a promessa do editorial: ser um presente de Natal indicado para quem desfruta de um pouco mais de tempo nesta quadra. A revista pede para ser levada para o sofá, esplanada, um banco ao sol. Ou uma janela à chuva. E depois pacientemente desnudada. Ajuda a esta missão o desequilíbrio sexual: em 19 contos, apenas 5 cheiram a homem. É uma média que agrada ao meu palato heterossexual, mas quem não pertencer a este clube que proteste junto do Pedro Rolo Duarte, um reputado ladies man.

De especial interesse, porque resultou em cheio, o conceito deste número: juntar consagrados com absolutas estreias, entremeando com regulares. Realço a nossa amiga Blondewithaphd, num flagrante contraste com o minimalismo dos seus comentários por aqui. E realço a Maria Lucena, de quem sou amigo, e que publica pela 1ª vez. Também há uns meses o Pedro descobriu outra amiga minha, Maria João Freitas, acabadinha de lançar o blogue A namorada de Wittgenstein, e convidou-a para o Nós Alegres. Este trabalho de prospecção dos talentos nacionais é altamente meritório, espero que continue.

Mas o melhor vem do melhor, do Miguel. Ao contrário do que tenta vender o Rolo Duarte, o texto Quando escrever de notável só tem a fria constatação: é medíocre. Não só por de Esteves Cardoso, tão alta a bitola, esperarmos genialidade antes e depois das vírgulas, como por se estar no terreno da sua eleição suprema: a arte de bem escrever em português. Acontece que o autor não tinha nada de memorável para nos dizer acerca da escrita, talvez por ser um sacrilégio sequer tentar reduzi-la a fórmulas, e optou por nos mandar ler. É esse o mais antigo e universal conselho para quem se inicia nos prazeres da pena: ler, ler, ler. Contudo, há uma frase que rapta a crónica e a transporta para o Olimpo dos escritores:

É escusada a farça de pedi-los e oferecê-los.

Vejamos: o escritor mais importante desde os anos 80, o mais influente, escreve farça num texto onde manda o aprendiz de escritor aprender a ler. Para além de se constatar que nem sequer o autor lê o que escreve, muito menos o jornal que lhe publicou o texto, fica um sentimento de irreprimível liberdade. Já Pessoa advogava a desobediência criativa face ao imperialismo da gramática, agora é o Miguel que nos convence a perder toda e qualquer vergonha pelas calinadas ortográficas. E, súbito, o segredo da arte de bem escrever desvela-se e resplandece, o conselho era cifrado, especular: não ler. Porquê? Porque a literatura é uma farça.

E que raio é uma farça, perguntas já angustiado? É a literatura.

11 thoughts on “A literatura é uma farça”

  1. Intelectualóide que aqui pintas o Blog de cor de rosa, porque não citas

    Chegasses onde pudesses;
    Mas nunca devias rir
    Nem fingir que não conheces
    Quem te ajudou a subir!

    Aleixo

  2. Val, perdoa: hoje só consigo pensar numa coisa, o meu templo ardeu .O Hot Clube de Portugal, onde aprendi a gostar de música , a gostar de jazz, ardeu esta noite, no predio quase devoluto onde estava, à mais de 60 anos. Felizmente que o Luis Vilas Boas já cá não está para ver isto.Desde os meus 16 anos (já lá vão 50) aquele foi , quase impreterivelmente o meu poiso nas horas livres .Ali aprendi a distinguir o que vale a pena na música, daquilo que é “musak”, como dizem nos EUA. Aprendi a gostar de todo o jazz,desde o New Orleans, passando pela West Coast e acabando no Free, com passagens por muitos e desvairados estilos Made in USA e Made in Europe , inclusive nesta terra do Fado, e acreditem ou não, tivemos e temos por cá bons Jazzistas. O Hot ardeu , e eu não consigo pensar em mais nada, perdoa Val.

  3. antonio manso,

    não estou a ironizar, mas a homenagear (também eu fiz formação jazzística por lá) – um clube tão hot teve um fim à altura. Antes em gloriosas chamas que apodrecendo decrépito. Fraca consolação, eu sei.

  4. olha aqui , tão giro , já ganhei com a farça !! o mec é fixe mesmo quando se engana , se é que não é uma mensagem subliminar . sabe-se lá.

    (de guilherme de azevedo)

    A velha farça

    Rufa ao longe um tambor. Dir-se-ia ser o arranco
    D’um mundo que desaba; ahi vae tudo em tropel!
    Vão ver passar na rua um velho saltimbanco
    E uma féra que dansa atada a um cordel.

    Ó funambulos vis, comediantes rotos,
    O vosso riso alvar agrada á multidão!
    E quando vós passaes o archanjo dos esgotos
    Atira-vos a flôr que mais encontra á mão!

    Lá vae tudo a correr: são as grotescas dansas
    D’uns velhos animaes que já foram crueis
    E agora vão soffrendo os risos das creanças
    E os apupos da turba a troco de dez réis.

    Conta um velho histrião, descabellado e pallido,
    Da féra sanguinaria o instincto vil e mau,
    E vae chicoteando um urso meio invalido
    Que lambe as mãos ao povo e faz jogo de páu.

    Depois inclina a face e obriga a que lh’a beije
    A fera legendaria olhada com pavor:
    E uma deosa gentil, vestida de bareje,
    Annuncia o prodigio a rufo de tambor!

    E as mães erguem ao collo uns filhos enfezados
    Que nunca tinham visto a luz dos ouropeis:
    E accresce á multidão a turba dos soldados,
    —Ao ilota da cidade o escravo dos quarteis.

    E o funambulo grita; impõe qual evangelho
    Á turba extasiada a grande narração.
    E sobre um cão enfermo um ourangotango velho
    Passeia nobremente os gestos de truão.

    Correi de toda a parte, aligeirae o passo,
    Deixae a grande lida e vinde á rua vêr
    As prendas d’uma fera, as galas d’um palhaço,
    E um archanjo que sua e pede de beber!

    A tua imagem tens ó povo legendario
    No comico festim que mal podes pagar,
    Pois tu ainda és no mundo o velho dromedario
    Que a vara do histrião nas praças faz dansar

  5. Nem por acaso o post anterior chamava-se Não percebo o que aqui escrevi.
    Os erros/gralhas são ideias à espera de uma interpretação.Tu és um alquimista Val.

  6. É verdade, o HoT. Passei lá algumas boas noites. Não acredito que aquele espirito morra, vai só mudar de lugar. So What (A Kind of blue).

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