A civilização onde queremos viver

Na semana passada, os advogados de Sócrates deram uma conferência de imprensa a protestar contra a anexação à “Operação Marquês” de conteúdos e arguidos de outros processos. João Araújo e Pedro Delille expuseram as suas razões, denunciaram a existência de ilegalidades e apresentaram aquelas que, no seu entender, serão as intenções e consequências de se estar a aumentar – a complicar? – a já homérica complexidade do processo. Peço ajuda às almas caridosas: quem souber, e excluindo os casos dos caluniadores profissionais, que deixe na caixa de comentários a referência a algum comentador de rádio, jornal ou TV que se tenha pronunciado sobre estas declarações dos advogados de Sócrates e questões inerentes. Por mim, flanador displicente da comunicação social, conto zero.

Só há uma hipótese para explicar o silêncio que este episódio causou. A hipótese de que o julgamento de Sócrates já ocorreu e passámos, desde que foi detido em 2014, à fase de aplicação da pena. A sociedade observa complacente ou em júbilo, de acordo com as filiações políticas e com o sentido de cidadania e honra de cada um, a obsessiva devassa e humilhação de uma pessoa que está a ser investigada desde 2004. Não há pedra que não tenha sido revirada, percurso escolar ou profissional que não tenha merecido equipas de investigadores, grandes decisões políticas que não ocupem dezenas de magistrados. A sua privacidade é usada para vender papel, vender anúncios, promover a fruição de vinganças e bebedeiras de ódio. O resultado dos processos encerrados está arquivado e à disposição de quem os quiser consultar, o resultado dos processos em curso é vertido copiosa e criminosamente na praça pública na versão dos acusadores. Nunca aconteceu nada assim na História de Portugal, sequer o período fascista compara. Sócrates é o político mais investigado de sempre neste jardim à beira-mar abandalhado, não havendo outro caso comparável mesmo que à distância. Quantos recursos humanos, quantas horas, quanto dinheiro já foi gasto na perseguição a Sócrates pelo Estado português e por privados em Portugal?

Fazem-se editoriais e comentários esganiçados e ridículos a protestar contra os três meses, os dois meses, a semana, o dia que passa sem que o Governo apresente versões definitivas sobre o que aconteceu em Pedrógão e Tancos. Nessa pateada, ignora-se propositadamente que a investigação não está a cargo do Governo, apaga-se o óbvio interesse público de se terem investigações à prova de qualquer influência governativa ou institucional. E mente-se debochadamente em registo de pura chicana. Tal é absurdo, é esquizóide, é estúpido e é a imprensa “de referência” nacional a ser ela própria, um antro de publicistas com alergia ao jornalismo. Porém, todavia, contudo, este rancho de inteligências folclóricas não se importa nada que o Ministério Público leve o tempo que lhe apetecer com um arguido nas mãos. A elite do nosso comentariado aplaude secretamente um juiz que viola a sua missão de garante das liberdades e direitos fundamentais dos arguidos, um juiz que é promovido na indústria da calúnia como o Torquemada de Mação. A violação dos prazos de inquérito, as declarações públicas em que assume não ser isento face à inocência até prova em contrário de Sócrates e o culto que faz às abertas de uma pose justiceira contra certos políticos e certos empresários não suscitam sobressaltos nos directores dos jornais, estações de televisão e rádios. Os crimes de violação do segredo de Justiça que são cometidos sistematicamente no Ministério Público idem idem, aspas aspas. É giro. Aliás, dá jeito. Muito jeito. Venham mais 5 anos de “Operação Marquês”.

A desculpa que remete para a dificuldade de se investigarem crimes de corrupção tem sido a hipocrisia suprema que embrulha os abusos e ilegalidades do Estado contra Sócrates e restantes arguidos. Como se sabe, se há coisa difícil de investigar é a corrupção de primeiros-ministros. Como as suas acções são quase sempre ocultas, como não estão rodeados por dezenas, centenas e milhares de olhos e ouvidos, como não há entidades fiscalizadoras a constantemente avaliarem e aferirem as suas decisões, como os deputados da oposição andam todos a dormir e os do PS não passam de cúmplices do corrupto-mor, isto de se apanhar um primeiro-ministro socialista e corrupto dá uma trabalheira do caralho. Claro, ajuda muito saber logo à partida que ele é criminoso. Quanto a isso, vai sem discussão. Imaginemos que o Ministério Público se limitava a investigar Sócrates numa atitude de perfeita neutralidade ao serviço da perfeita objectividade e procurando o perfeito rigor. Quer dizer… isso… enfim… era coisa para demorar 100 anos! Pelo que toda a gente compreende que, se é mesmo para investigar este gajo, a primeira coisa a ficar estabelecida é a de que ele é culpado. Se é culpado, então chilindró com ele. Se bem o pensaram, melhor o executaram na “Operação Marquês”. Daí terem começado por não sei quê ali em Leiria, depois foram para a Venezuela, depois para o Algarve e depois para Cascais, entre outros poisos cheios de corruptos à espera de serem engavetados. O método tem a beleza da simplicidade e justifica o número de páginas no processo. Resta só descobrir os crimes. E ele há tanto para escarafunchar. O plano é despejar camionetes de caixas com papelada à porta do tribunal, ou talvez só um saco com os discos rígidos suficientes para guardarem um yottabyte de escutas, interrogatórios e documentação descritiva de todas as decisões tomadas por Sócrates enquanto primeiro-ministro mais a documentação de todas as decisões tomadas pelas empresas envolvidas no processo. Os juízes que tratem depois de ler com cuidado o trabalhinho. No entretanto, o cabrão continuará pendurado no cadafalso.

Deu que falar, em 2008, a alusão a uma “suspensão da democracia” que Ferreira Leite sugeriu como o remédio a aplicar aos indígenas que não se sabem comportar em liberdade. Na “Operação Marquês” somos testemunhas da suspensão da Constituição para permitir ao Ministério Público de Joana Marques Vidal, à indústria da calúnia e à actual direita partidária irem alcançando diversos objectivos que estilhaçam impunemente os princípios e lógica do Estado de direito. Veja-se como se convive com os crimes de magistrados e como os juízes distorcem a lei escrita para favorecer uma das partes, o Ministério Público, e prejudicarem as outras, o arguido, o cidadão e a pessoa. A ideia de que a suspeita de crime, qualquer crime, justifica a violência de se tratar como culpado quem tem direito a ser tratado como inocente é a manifestação típica da barbárie. Foi contra essa prática que, no essencial, se desenvolveu a civilização onde queremos viver.

14 thoughts on “A civilização onde queremos viver”

  1. O 44 paga-te a peca ao por word count? E que uma obcessao deste calibre so se pode justificar com contrapartidas pecuniarias FORTES.

  2. uma enorme Cobardia coletiva. Conheço muita gente q já percebeu q este MP tresanda a incompetencia e parcialidade, mas n tem coragem de afirmar isso publicamente, para não levar com insinuações que os Basicos tão lestamente soltam.

    Isto é como no Animals:
    O MP e a imprensa de sarjeta continua muito orgulhosa da constatação do poder efetivo q tem, q supera todos os outros, nomeada/ os determinados pela democracia.

    Os Básicos há muito q desistiram de usar o cérebro, e continuam a rosnar e a ladrar da forma que o CM os treinou.

    Outros, que são afinal a grande maioria, como um enorme rebanho que abdica da vontade própria, para não serem mordidos nem assinalados como Ovelhas negras.

    Restam poucos como o Valupi, q não teme a canalha e q não abdica de lutar por viver num local menos podre.

    Ainda bem q há sempre alguem q resiste.

  3. Tal como Valupi e talvez um pouco mais, resisto desde o primeiro momento.
    Todos os dia prenso na canalhada feita ao Homem, à família, aos amigos e a tantos que cidadãos de boa índole que souberam e sabem apreciar o que foram seus modernos e inovadores mandatos de PRIMEIRO MINISTRO.
    Simplex, energias renováveis, formação, ciência, novas tecnologias e presença forte e considerada nos meandros da Europa que nos resta.
    Terá um fim esta trama.
    Teremos o Homem livre de novo.
    Mais sábio, mais duro e totalmente livre para nos contar A SUA VERDADE.

  4. depois leio o resto . parei para dizer que o zézito parece gostar da exposição pública e de andar nas bocas do mundo . penso que dar no you tube e entrevistas e bla bla bla contínuos não denota nenhum recato nem
    desejo de privacidade . sempre adorou “aparecer” . mesmo esses livrecos que “escreve ” são o quê ? mais 15 minutos de fama :) :) é assim a vida , é preciso muito cuidado com o que se deseja.

  5. Na realidade foi dada pouca importância à declaração de recusa dos advogados
    de José Sócrates sobre a anexação de outros processos na`”operação marquês”,
    algumas linhas nos jornais (DN) e, uns segundos nas televisões, nenhum dos
    comentadeiros com banca nas televisões foi instado a prenunciar-se sobre o te-
    ma … talvez, porque a decisão está para breve, vão reservando as suas energias
    para o comentário final!
    Mais tarde ou cedo, os políticos serão chamados a apreciar se o actual quadro
    da Justiça corresponde às necessidades do País, se a auto-regulação tem contri-
    buido para dar mais eficácia e justeza à Justiça ? Não foi foi feita uma renovação
    dos quadros que transitaram do fascismo, os novos magistrados mais parecem
    uma criação de aviário, sem maturidade e falta de senso comum, muitos sem
    qualquer experiência de vida, para lá das suas convicções!
    É ridículo ouvir os anúncios de greves por parte de magistrados, acções tomadas
    em plenários de meia dúzia de “sócios”! Até já conseguiram internacionalizar a
    sua acção, criando problemas políticos e quiçá, económicos entre Estados isto,
    porque julgam viver num casulo onde não devem consultar outros Orgãos da
    organização política do País … chama-se a isto falta de bom senso pois a Justiça
    deve ser cega mas, não pode ser estúpida, há muitas maneiras de punir os pró-
    prios apesar do envolvimento de terceiros!
    Se isto não é andar em roda livre que outra coisa poderá ser???

  6. “A ideia de que a suspeita de crime, qualquer crime, justifica a violência de se tratar como culpado quem tem direito a ser tratado como inocente é a manifestação típica da barbárie. Foi contra essa prática que, no essencial, se desenvolveu a civilização onde queremos viver.”

    Exactíssimamente, Valupi.
    Contudo aqui, neste caso incrível, nem houve nunca qualquer facto que fosse de facto motivo de suspeita de crime. Houve, sim, uma busca insana à vida de um PM desde que nasceu e a toda uma família, antes com uma vida reconhecida normal, na procura do mínimo pretexto para exercer um poder de vingança. E, como durante anos ininterruptos vasculharam à lupa a gestão e os papéis do PM e não acharam nada que lhes permitisse uma acusação tiveram de se socorrer da sua intocável impunidade e imaginação delirante para fabricarem um monstro processual que justificasse perante o pagode uma aparente culpa além de, entretanto, parte da vingança estar consumada com a destruição da vida política e grande parte da vida civil e familiar de Sócrates.
    Além de que Sócrates, pelo seu desenvolvimento aos zig-zagues de fabricação e achamento de corrupção em tudo que tocou, tornou-se o bode expiatório ideal para ocultar e branquear o verdadeiro banditismo de corrupção que foi o consulado de Cavaco e do consequente cavaquismo cujos casos apogeu foram o BPN e os Submarinos.
    Sócrates nunca se pôs a jeito para nada além de actuar segundo um patriotismo exemplar. Foram os grupos corporativos de cariz salazarista e vingativos que teceram a trama, coadjuvados por lacaios igualmente corruptos e cúmplices da corrupção cavaquista, muitos até muito democratas e mui democraticamente, que fabricaram o argumento do pôr-se a jeito que serve de prova provada suficiente aos irracionais.
    Desde o início que todo o processo não passa de um labirinto criado pelo MP para manter preso enredado o PM Sócrates mas onde o fio de Ariadne conduz os magistrados e juízes para dentro do mesmo labirinto onde já estão mais enredados e perdidos que o próprio Sócrates.
    E depois Sócrates sobreviverá porque ninguém pode apagar a História enquanto dos acusadores e traidores restará o opróbio de suas maldades.

  7. Eu queria viver numa sociedade onde os políticos não sejam considerados acima de tudo e de todos. Sejam simplesmente pessoas honestas, rectas, com exemplos de vida passada profissional recta digna de lhes seguir o exemplo. E não irem para a politica, pois não sabem nem conseguem fazer mais nada.
    Queria viver num pais onde os ladrões e vigaristas são presos e não saem para a rua por erros processuais. Queria viver num pais onde a honestidade é o mais importante.

  8. Boa dissertação Valupi, mas como a Justiça está enxameada de Ceguetas, Básicos, Yo`s e quejandos, mentalmente formatados para bem servirem as ambições e os interesses das cúpulas dirigentes das suas Corporações, isto já lá não vai só com conversas.
    Será bom que para a próxima os militares não repitam a estupidez de fazer uma revolução com cravos em vez de munições a sério para eliminar, de vez, as reminiscências fascistas que se perpetuaram nas cúpulas das Corporações da Justiça e a mantêm aprisionada no 24 de Abril.

  9. ai meu deus ,parece que caí no santuário de fátima . mas o que dá na cabeça das pessoas para cumprirem promessas de joelhos e acreditarem nos virgens ? esquisito . já experimentaram usar um chapéu de papel de aluminio? dizem que protege das lavagens cerebrais . não custa nada experimentar :) :)

  10. «Nunca aconteceu nada assim na História de Portugal, sequer o período fascista compara. », que vergonha (ou a falta que ela te faz, Valupi).

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