Seis meses de 25 de Abril

Cada vez são menos aqueles que se lembram de ter visto D. Afonso Henriques à espadeirada contra a mourama, e algo parecido se poderá dizer dos que estavam no 25 de Abril de 1974 em Portugal ou algures na diáspora lusitana. Cada vez menos e cada vez mais esquecidos, leis do tempo e da vida. Mas esse dia inicial, mesmo que não inteiro e um pouco sujo, trazia uma promessa que só no final de 2015 se cumpriu. Mais de 41 anos tiveram de escorrer pela rua de São Bento antes de vermos um Parlamento onde o PCP, satélites e cópias se levantassem para viabilizar um Governo minoritário em nome da democracia. Estreia absoluta no sistema político do actual regime.

Até esse momento, o qual reactualiza o “dia inicial”, vivemos condicionados e oprimidos pelo sectarismo da esquerda. Um sectarismo de origem antropológica, como todos, e de lógica estratégica, como sempre. O PCP precisava da diabolização do regime democrático para garantir que não se dissolvia no PS aos olhos dos fanáticos que o seu messianismo alimenta, qualquer aproximação aos traidores socialistas poria em causa a “verdade” dos proprietários da História. De uma velha, caduca, “História” prisioneira do seu Livro. Os raros acordos entre comunistas e socialistas ficaram limitados ao nível autárquico, por corresponderem a um nível inferior do simbolismo do poder e tal não impedir a retórica primária e maníaca do comunistas portugueses. No caso do apoio de Cunhal a Soares para a presidência, tratou-se apenas de senso comum, a recusa do PCP em votar no candidato do PS seria escandalosa de mais naquele contexto. Ao lado, igualmente por antropologia e estratégia, Louçã imitava o PCP pelas mesmíssimas razões. O sonho mais querido da nossa esquerda pura foi sempre o desaparecimento do PS, muito mais do que vencerem a direita. O epílogo desta pulsão de décadas aconteceu no dia 23 de Março de 2011.

É simples. Façamos o exercício de imaginar quais teriam sido as posições e declarações do PCP e BE acerca das decisões políticas do actual Governo, sem tirar nem pôr, calhando comunistas e bloquistas estarem ao longo dos 6 meses passados a repetir os padrões de oposição exibidos nas legislaturas anteriores. Nem uma medida se salvaria, pois mesmo aquelas obviamente alinhadas com os programas e agendas do PCP e BE nunca seriam suficientes. Logo, pela lógica sectária, teriam de ser combatidas, muitas vezes em coro com a direita. Veríamos os programas de informação preenchidos por ataques ao Governo vindos da direita e da esquerda em simultâneo, o que cria a percepção de haver uma unanimidade opositora independentemente do que esteja em discussão. É o argumento da quantidade: tanta gente junta a bater no ceguinho, alguma coisa feia esse cegueta terá feito. A retórica do ódio, servida por actores políticos e mediáticos histriónicos, permaneceria rainha no espaço público. Acima de tudo, esta esquerda pura e verdadeira continuaria cúmplice sem desmascarar a obscena desonestidade intelectual e moral desta direita decadente – ao contrário do que tem acontecido nos 6 meses do nosso contentamento democrático.

A democracia, o pior dos sistemas à excepção de todos os outros na célebre opinião de um famoso bêbado, é uma promessa de racionalidade e de eficácia. Para que servem a liberdade e o poder se não for para garantir e aumentar a racionalidade da nossa sobrevivência colectiva e a eficácia da nossa realização individual? Daí se dar o poder a todos em vez de só a alguns. Daí se permitir que esses todos mudem de opinião a intervalos regulares, ou em cerimónias especiais de acordo com leis e regulamentos que tenham aprovado livremente. Este modelo de governação não garante por si próprio melhores resultados do que modelos concorrentes. Apenas garante que é nele onde a inteligência pode ser mais provável e mais desenvolvida. O sectarismo, pela sua própria definição, implica um boicote sistemático da inteligência. Consiste numa cristalização intelectual ao serviço da defesa de um conjunto de crenças transformadas em núcleo alucinado da identidade. No cosmos sectário, o mundo exterior é constituído por sombras errantes e o mundo interior é o lugar da adoração do Sol. Maniqueísmo em estado novo.

A inteligência que nos salva, começando por nos salvar de nós próprios, pode vir de qualquer partido ou organização política. Tanto pode vir do PCP como do CDS, do BE como do PSD. Pode vir de organizações sem representação parlamentar como de partidos ainda por inventar. Porque não do PS? Foi para aceitarmos, enquanto comunidade, o triunfo da inteligência que liberta que se fez o 25 de Abril. Venham mais seis meses de revolução.

12 thoughts on “Seis meses de 25 de Abril”

  1. Gandas 1º e último parágrafos, Valupi…. E mais não preciso de dizer…!
    Sim…. é que a luta continua..!.
    E a Esquerda – toda a Esquerda – está a aprender (quais os “meninos à volta da fogueira” da canção do Tordo (?)) a crescer em união de esforços e de politicas para dar ao país aquilo de que ele precisa – A PAZ, O PÃO, EDUCAÇÃO, HABITAÇÃO…. E OPINIÃO PÚBLICA DESINFECTADA DA INTOXICAÇÃO DIREITOLA!!!

    LONGA VIDA AO ENTENDIMENTO DA ESQUERDA!

  2. Pois é jpferra, embora incoscientemente “citas com c” o Sócrates-o-verdadeiro (logo aqui, …!) mas também poderias ser um bocado + criativo:

    «- Pico, logo existo!» – Ricardo Chibanga, também este poderia ser o verdadeiro que não “mora” no Casal Ventoso.

  3. Salvo erro, foi José Saramago que escreveu o “Ensaio sobre a Cegueira” apesar de,
    ter sido considerado um comunista sectário pelos “democratas” … poderá ser uma
    mera coincidência de palavras, não mais do que isso!!!

  4. eric o tintol dá-me para o eruditismo, não para a criatividade.

    Ah essa do “inconscientemente” é bem metida.

  5. «Salvo erro (?!), foi José Saramago que escreveu o “Ensaio sobre a Cegueira”», ora aqui está uma frase erudita jpferra (sai um bilhete de metro ou da Carris para uma das BLX com um estágio na escola 33 de Alvalade, sff. Vou já escrever ao Fernando Medina).

    sim jpferra, sem n mas é melhor o conjunto com a do Chibanga.

    Igntaz, ali ao lado, ris de quê? Andas nas cenas da Disney, ainda?
    https://www.youtube.com/watch?v=BoGTRbVMG2o

  6. adorei, Val. não terá sido por acaso que acordei hoje a pensar no quanto viver é epifanar. :-) viva a inteligêncidade! :-)

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