Responsabilidade e risco

A dupla Gaspar/Passos iniciou funções há um ano e meio com o propósito semi-escondido de aproveitar um acordo celebrado com os nossos credores, já de si com uma visão inadmissivelmente fria do destino de um povo e da economia de um país, para implementrar a título experimental um determinado modelo económico, igualmente frio, mas muito mais arrojado e violento do que o já de si problemático acordo. Consistia esse modelo na desvalorização acentuada do custo do trabalho, no aumento do desemprego como fator de redução dos salários e num afogadilho de medidas de correção do défice, chamadas de “ajustamento estrutural” (basicamente cortes drásticos nos rendimentos e venda de património, nomeadamente monopólios), que iriam fazer o “mal” todo de uma vez aos cidadãos e obter receitas com técnicas de Marraquexe para podermos de seguida respirar e entrar pela porta grande do crescimento. Assim nos diziam.

A esta hora já toda a gente percebeu, e a que custo, que governar um país não é a mesma coisa que fazer um trabalho para a universidade, caso em que se vê vantagens em passar duas ou três semanas em esforço e sofrimento numa biblioteca, para depois apresentar um resultado brilhante e ter enfim tempo para sair com os amigos. A economia de um país é outra coisa e qualquer político deveria sabê-lo.

A situação é péssima. A tese propalada pelo laranjal de que muito de positivo já foi feito e que não pode ser deitado a perder não resiste aos factos, que mostram bem a irrelevância da “mão” do Governo – os juros baixaram (para nós, para a Grécia, para todos) graças à intervenção do BCE e à compra de dívida pelos bancos (grande negócio); o défice externo foi corrigido graças à redução drástica do poder de compra (que é deprimente manter), principal causa da diminuição das importações; a credibilidade do país aumentou, dizem eles, mas não aumentou, nunca deixou de existir – o problema não era a credibilidade. Os governantes anteriores eram suficientemente credíveis para terem arrancado um apoio de monta por alturas do PEC IV. Quanto muito seria a estabilidade política, que o PSD fez toda a gala em dinamitar nos idos de Março de 2011. Era também uma questão de atitude da União Europeia face à especulação com os juros da dívida soberana. Mas tudo isto já foi dito e redito e o BCE acabou por se mexer. O alívio da austeridade também já não é tabu – tanto o FMI como Barroso já o afloram.

E agora? Gaspar vê-se, na verdade, confrontado com o resultado concreto da sua incompetência. A derrapagem monumental de 2012 levou-o a plasmar no OE para 2013 um confisco de dinheiro a uma escala jamais vista aos trabalhadores e reformados e a ameaçar com mais e pior (4000 M€ pelo menos). Tinha uma opção: negociar com a Troika a sério, ou melhor, negociar simplesmente, coisa que não fez, e rever a sua estratégia. Não quis. Pelo contrário. Não nos esqueçamos que foi considerado “impressionante” (ou seja, um caso único) pelo representante do FMI na última avaliação. Acolitado por gabirus como Fernando Ulrich ou António Borges, além do irrelevante Passos, convenceu-se de que as pessoas aguentam, olá se aguentam e que a situação de emergência (por ele criada e agravada) impediria o PR e o TC de lhe colocar obstáculos. E que, de emergência em emergência, a Constituição iria jazendo em paz para todo o sempre.

Neste momento, porém, na iminência de verem um orçamento homicida inviabilizado pelo Tribunal Constitucional, o Governo e os seus agentes de comunicação já começaram a pressionar os juízes com grandes alarmes sobre os riscos de incumprimento e as consequências terríveis da perda de determinadas receitas (empoladas sempre que possível). Mas é um jogo sujo, além de ilegítimo. Chegámos a um ponto em que não tomar medidas de austeridade, não fazer mais nada, deixar as pessoas e as empresas respirar, é seguramente mais benéfico para o défice do que insistir na sangria. Até os credores serão capazes de o perceber.

Em caso de inconstitucionalidade decretada, só uma renegociação evitará uma convulsão política. Estando consciente da infeliz existência de Seguro, espero que Gaspar seja obrigado a fazê-lo. Se não estiver disposto a isso, demita-se. Os críticos do PSD saberão arranjar um susbtituto menos fundamentalista e alucinado para a pasta das Finanças. E Passos, se quiser manter-se à frente do Executivo, terá de aceitar um outro rumo. Se não for capaz, demita-se também. Faria um enorme favor ao país. Alguma solução melhor se arranjará.

Quanto ao Tribunal Constitucional, vai ter, evidentemente, de resistir à campanha de pressão já no terreno. Não são os juízes os culpados do descalabro orçamental de 2012, nem fazer respeitar a Constituição é sinónimo de governar. Se considerarem constitucional o que dantes consideraram inconstitucional sujeitar-se-ão ao ridículo e ao descrédito e, o que é mais grave ainda, os portugueses ficarão à mercê de todo e qualquer abuso de poder de gente radical, incompetente e impreparada e que cantará vitória, para mal de todos nós e prosseguimento do desastre. Idem aspas, ou pior, se considerarem que a inconstitucionalidade só terá efeitos em 2014… A decisão do tribunal, que não é política, tem forçosamente consequências políticas. E tê-las-á sempre, seja ela qual for. Por cobardia de vários agentes – membros da coligação, deputados da maioria na Assembleia e Presidente da República – essa decisão foi-lhes entregue. Quem arriscou arriscou. E Gaspar arriscou demasiado.

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