De que está a falar o Baldaia, quando diz que o actual governo “hipoteca o futuro firmando despesa”? Que despesa? Baldaia não especifica. Estará a referir-se ao alegado aumento do número de funcionários públicos ou à reposição de algum do seu poder de compra? Pode ser. Provavelmente é. Mas aposto que, num próximo editorial, é bem capaz de nos estar a rosnar, perdão, a alertar para o facto de o Serviço Nacional de Saúde não dispor de pessoal médico e de enfermagem suficiente e de se estar a degradar a cada dia que passa. Para o facto de, agora que as receitas aumentam, nada justificar que se continue a desprezar o sector da saúde (e da educação pública) como se estivéssemos sob o domínio da Troica. E acabar a chamar ao actual governo “austeritário”, ganhando quiçá um passaporte para o Observador. Também é capaz de, brevemente, nos alertar para o facto de não haver suficiente investimento público em infraestruturas; ou investimento público tout court. Enfim, uma farpa qualquer sem grande ou pequeno aprofundamento. E, já agora, no que toca a “clientelas”, qual é, qual foi e qual será o governo que não se preocupa com “as clientelas eleitorais”, também designadas «os seus eleitores» ou «a sua base de apoio eleitoral»? Muito gostaria de saber. O Rio não quer saber? Até o Pedro Passos, o pretenso indiferente aos votantes, com os seus insultos aos “preguiçosos” e portugueses em geral, mais não fazia do que apelar, com isso, àquela classe de gente adepta do “fartar vilanagem”, aqueles empresários do que é bom é pagar pouco, salários de miséria e Mercedes topo de gama à porta, e do quem não está contente que emigre. Há quem se identifique e excite com esta postura política toda ela novidade (na altura). Há, houve, muitos tansos que acharam piada. Gostaram do timbre que a acompanhava. Depois, enquanto dependentes de grunhos como esses entusiastas patrões, não gostaram de muito mais.
Mas o Baldaia insiste:
“Rio tem de saber explicar aos portugueses como se pode melhorar de vida agora sem comprometer o bem-estar futuro. “
Muito bem. E o Baldaia, não nos quer explicar já, poupando esforço ao Rio? Quem diabo estará a comprometer o bem-estar futuro e porquê, ó Baldaia? O que sugeres? Que maus resultados te atormentam?
[…]
“Regressando a Ferreira Leite e ao tempo em que um governo socialista aumentou os funcionários públicos em 2,9% para ganhar as eleições, importa recordar que a consequência desse serviço à clientela eleitoral resultou em prejuízo da própria clientela com um corte nos salários de 3,5 a 10% decidido no ano seguinte. Isto tem de ser dito com clareza a um povo e a um governo que vive como se não houvesse amanhã.”[…]
Mau. Porque exagera o Baldaia? Alguém está a viver “como se não houvesse amanhã”? E, se está, isso é mau? Repare-se como o Baldaia não se atreve sequer a utilizar o verbo “gastar”, que normalmente acompanha a referida expressão. Fica-se pelo “viver”. Contentemo-nos, pois, com a mera alegria de não estarmos a morrer como se não houvesse amanhã. Mas entretanto, estará tudo a dormir na União Europeia, no FMI, na Moody’s, na Fitch, no Eurogrupo?
Não é por nada, mas eu entendo que o director de um jornal devia ser mais objectivo do que estas afirmações cartilheiras (estou tão contemporânea) denotam. Tudo o que Baldaia aqui diz namora a sério com a parvoíce.
Como Sócrates e muitos outros já disseram e é fácil de entender, os funcionários públicos foram aumentados em 2010 – e com o apoio do PSD de Ferreira Leite – ao fim de vários anos de salários e carreiras congelados e como forma de estimular um pouco a procura numa altura de crise, uma tentativa de medida anti-cíclica, como, aliás, fora defendido pela União Europeia numa primeira fase (antes de o desastre grego vir ressuscitar as hegemonias morais). Era eleitoralista esta medida? Também era, mas não era só. Tinha outros objectivos. E os cortes que mais tarde se seguiram têm justificações igualmente fáceis de explicar. O BCE, a Alemanha, a Comissão Europeia e toda a parafernália institucional que geriu a crise do euro desencadeada em 2009 optaram, passado um ano, pelo conflito inter-êurico norte-sul, entre credores e devedores, virtuosos e pecadores, pelo garrote aos gastadores sem-vergonha, pelo “cada um por si” e pela austeridade recessiva (daí os cortes de salários) e isto durante tempo demais até o BCE decidir finalmente intervir na agonia, deixando-se de preconceitos e moralismos deslocados e suicidas e começando a comprar dívida, perante a iminência de colapso da moeda única e da própria União. Portanto, o Baldaia devia deixar-se de conversa tonta. Até porque toda a gente sabe que, caso surja nova crise internacional grave, não sendo nós a Alemanha, voltaremos a passar mal, como passarão mal os outros milhões de cidadãos da UE lá nos seus países, que, entre outras coisas, deixarão de vir até cá gastar o que agora ganham e de nos comprar o que não podem. Esteja cá o governo que estiver.
Se o Paulo gosta do Rui Rio, se gostaria de o eleger primeiro-ministro e quer aqui manifestar-lhe o seu apoio, é livre de o fazer. É o que está a fazer, aliás. Mas não deturpe nem tresleia nem maldiga as razões por detrás do sucesso actual da economia nem deixe subentendido que o que seria bom seria manter o garrote. Ao menos diga-o claramente. E prepare-se para ouvir que, nesse caso, os resultados económicos seriam outros. Outros e maus. O consumo interno, o dinamismo de muitas empresas e o consequente aumento das exportações são as peças mais lustrosas da turbina nacional actual. Que mais se pode desejar? O que há aqui a eliminar, ó Baldaia? Além disso, relativamente às despesas que apoquentam o Baldaia, lembro que funcionários públicos são também os bombeiros, os guardas florestais, os guardas prisionais, os militares, os polícias, os funcionários do SEF. Tragicamente escassos, não é?