Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Infiltrações Acidentais

Anda pelas bandas do Acidental um interessante debate/arruaça sobre a árvore genealógica das alucinações esquerdistas e as suas possíveis ligações a Carl Schmitt ou a Adolf Hitler.
Mas não é isto o que me mais intriga neste blogue; nem escrevo estas linhas apenas para agradecer a simpática referência que o PPM fez ao nosso duro parto.
O que eu gostava mesmo que me explicassem é porque é que a cada vez que acedo ao Acidental, o meu iMac denuncia o carregamento de um ficheiro chamado “fuckfore.rm”. Será aquilo um sinistro dispositivo de spyware, ligado ao Echelon? Ou, ajuizando pelo nome do ficheiro, tratar-se-á antes de uma brava incursão pelos mais lucrativos e menos regulamentados domínios da pornografia online?

Perdeu-se na tradução

Porque será que o programa “Esquadrão G” inclui um especialista em “Lazer” e o original americano, “Queer Eye for the Straight Guy” fala de uma coisa chamada “Culture”?
Imagino o pessoal da programação a comentar esta adaptação:
— Cultura? Mas vocês estão malucos? Não sabem que o povo lê isso e começa logo a pensar em bailado, exposições e coisas ainda mais chatas, como livros?
Depois, malta desta anda pelos cafés a comentar que os americanos é que são uns palonços rústicos, incapazes de apontar no mapa a localização de Lisboa…

Geografias subjectivas

luanda.jpg

Com intervalo de dias, falei com dois conhecidos que estiveram há pouco tempo em Luanda. Estranhamente, os guiões das duas conversas seguiram por veredas opostas, rumo a duas cidades totalmente diversas.
Para um deles, Luanda é uma cidade maravilhosa e aberta, onde um europeu pode fazer o seu jogging matinal sem qualquer sobressalto, acarinhado pela hospitalidade de uma população que acorda agora de um longo pesadelo, de novo em paz com a vida. E Angola é uma espécie d El-Dorado, terra de oportunidades sem fim para qualquer alma empreendedora.
O outro dos meus conhecidos garantiu-me que Luanda continua a deslizar no pesadelo: violência sem tino pelas ruas, perigos vários a cada esquina, corrupção a proibir qualquer veleidade de fazer negócios sem um general local de permeio. Ele só sai do seu condomínio devidamente acompanhado, arriscando-se no exterior o menos possível.
Qual destas Luandas existirá mesmo? Porque não as duas? Ou mais ainda?
Se calhar, a cada grande cidade correspondem milhares e milhares de mapas diferentes. A geografia dos medos, afectos, recordações e desejos sobrepõe-se facilmente às minudências topográficas e sociológicas da realidade. Cada cidadão move-se por labirintos muito seus, obedecendo a itinerários intransmissíveis, evitando obstáculos que mais ninguém vê, demandando destinos que só a ele se revelam.
Para uns, o mapa da sua cidade estará para sempre pejado de avisos sobre monstros e perigos terríveis, para outros cada cruzamento liga jardins felizes, bairros solarengos, vizinhos amistosos. Podem até julgar que vivem perto uns dos outros; mas nunca se encontrarão em terreno comum. E não serão os alicerces mais importantes de uma cidade aqueles cavados nos territórios mentais dos seus habitantes?

Hakepfff

Tudo começou na 3.ª-feira. Estava muito sossegado no meu quarto, quando oiço

– Hakepfff.

e pensei logo: caneco, minha mãe de férias, e eu aqui sozinho com o raio da gata constipada. Tentei ignorar a ocorrência e voltar à leitura do n.º de Dezembro da UNCUT quando, meia-hora depois, ouço mais um

– Hakepfff.

Levantei-me da cama e dirigi-me à sala onde encontrei a Ziggy a olhar para mim com um ar entre o perplexo e o assustado. Estabeleci de imediato um daqueles diálogos muito parvos que todos os donos de gatos têm com os seus bichanos:

– Então minha linda, tás constipada, é?
– (silêncio)
– Pois é, andas ao frio e agora tás doentinha, não é?
– (silêncio)
– Anda aqui a mim, tadinha da bichinha que anda praí a espirrar e tá cheio de medo…
– (silêncio)
– Bichinha linda blá blá blá…
– (silêncio)

Continuar a lerHakepfff

O meu 25 de Novembro

melancholia.jpg

Há 30 anos, eu tinha a idade que hoje o meu filho mais velho tem. Treze anos; o suficiente para então entender parte do que se passou, para me assustar com as notícias de combates, com o tremor dentro das vozes adultas que gaguejavam em surdina a temida “guerra civil”.
Mas de que me lembro mesmo, desse dia? De algumas imagens a preto-e-branco que desconfio ter surripiado bem depois à televisão, de bailados de helicópteros nos céus aflitos de Lisboa. Pouco mais. Estranho: nem como figurantes menores consigo extrair da memória as silhuetas dos meus pais nesse dia. Por certo que a minha mãe se preocupou, sem saber de mim; talvez o meu pai até tenha saído à minha procura. Terei levado uma descompostura aliviada no regresso? Não sei.
Agora, olho para o meu filho e tento adivinhar o que irá ele guardar, daqui a outros trinta anos, do 25 de Novembro de 2005, dia sem qualquer evento notável. Que fantasmas irrelevantes e puídos sobrarão dos meus abraços, das pequenas aventuras que hoje me parecem mais vitais que o bater do meu coração?
Eu, se o improvável acontecer, talvez venha a esforçar-me — em 2035 — por recordar que estranha deficiência da alma me levava a conceder tanta atenção e tão pouca confiança à memória.

Ceci n’est pas un hétéronyme

Creio que se impõem alguns esclarecimentos sobre a minha entrada, hoje e a más horas, no Aspirina B:

1) Eu sou mesmo o José Mário Silva, o verdadeiro, o ex-BdE ressacado e em busca de um equivalente HTML da metadona
2) Podem ficar descansados: o Luis Rainha não tem heterónimos líricos e minimalistas
3) Se é ele que assina estes meus primeiros posts, é porque… olhem, para ser sincero não faço a mínima ideia
4) Isto de um gajo não perceber patavina de informática tem o seu lado triste
5) Espero que a situação seja transitória
6) É que escrever disparates a solo ainda vá, mas implicar pessoas inocentes parece-me pouco ético

[José Mário Silva]

Primeiro texto

Nos tempos do saudoso Ruínas Circulares, por mais de uma vez disse para os meus botões (ou para o fecho éclair do blusão azul que comprei nos saldos, já não me lembro bem):

«Não quero morrer sem antes ter partilhado um mesmo blogue com o sacana deste JPC que, além de ser um borgesiano tripeiro e cabeludo, é bom nisto como o caraças, pá!»

Pronto. Já posso ser atropelado por um camião TIR da Ikea.

[José Mário Silva]

Não incomodar o professor de Boliqueime

Pacheco Pereira, no seu estilo habitual, veio admoestar e garantir que recordar os acontecimentos na Ponte 25 de Abril, durante o consulado Cavaco, e lembrar o jovem que foi baleado na ocasião é “demagogia”. Estou completamente de acordo, tudo o que refira de uma forma indelicada os momentos mais polémicos do Sr. Professor deve ser imediatamente banido e os autores enviados para Caxias.
Para compensar os amargos de boca, aqui fica uma passagem do livro sobre Cavaco do saudoso director do Diário de Notícias, e assessor vitalício do professor de Boliqueime, Fernando Lima: ” O bloqueio da Ponte foi comparado a outro verificado no Regimento de Comandos da Amadora, em 25 de Novembro de 1975, quando as forças de esquerda tentaram recuperar terreno perdido com a ascensão dos militares moderados no processo revolucionário português”, garante definitivo o Lima, que de chofre acrescenta: “A situação no Regimento de Comandos da Amadora e a da Ponte 25 de Abril tinham muito em comum, assinalavam na altura os analistas militares”. Finalmente uma análise séria e objectiva, e nada demagógica, sobre o acontecido: Pacheco tens alma gémea!
Para motivar a compra do livro de Fernando Lima “O meu tempo com Cavaco Silva”, aqui deixo mais um naco de prosa que faz jus à verborreia doce do autor: “Jamais esquecerei uma visita a Mirandela em que o presidente do município, José Gama, já falecido, organizou uma festa em homenagem à Mãe. A participação dos alunos das escolas conferiu-lhe uma moldura humana inigualável. De improviso Cavaco Silva fez um discurso que espelhava o que naquele momento lhe ia na alma. Muito bonito e tocante”.

Estado da arte e a moral da semana

Este final da semana está muito agitado:
1. Jantei com um perigoso agitador internacional (estranhamente foi no “Polícia”).
2. Participei numa reunião quase clandestina na FCSH: estava um salão a abarrotar para discutir com Toni Negri, mas o evento não passou o teste do critério da realidade (a imprensa ignorou olimpicamente o acontecido).
3. Comecei a mudar de casa.
4. Estou sem computador e naturalmente sem internet. Foi com muita dificuldade que consegui escrever este mini texto, num lugar de péssima reputação – muito esforço para tentar intervalar o tsunami Rainha.
5.Fui a uma festa das “Marias”, suportei estoicamente uma sessão do “Teatro do Oprimido”. Fugi e fui abalroado por um carro em contra-mão.
Estou cansado. STOP! Este- fins-de-semana-matam-me. STOP. Preciso de descansar, vou trabalhar.

Das festas, da política e da agitação só retirei a ideia que só há coincidências. Reparei num meio de um colóquio universitário que passavam 30 anos do golpe direitista do 25 de Novembro de 1975 e também 30 anos do “Vigiar e Punir” de Foucault. É verdade, os acontecimentos costumam suceder em cachos, mesmo aqueles, como os meus, que não têm importância nenhuma.

Paris ainda está a arder?

Os motins em França podem bem ter sido coisa simples. Obra de miúdos divorciados da realidade por horas demais frente à Xbox. Quem sabe? Já há décadas foram armadas experiências nas quais alguns voluntários demoliam automóveis à marretada numa rua penumbrosa; não tardava até que inocentes transeuntes, atraídos pelo clamor da destruição e pela aparente impunidade, desatassem também a escaqueirar as pobres viaturas. A alcateia não precisa de fome nem de instinto; por vezes morde apenas porque sim. Quem sabe?
Ou talvez seja mesmo verdade que outro estudo, bem mais recente, tenha revelado que em 100 respostas a anúncios de emprego, 14 franceses com nomes árabes conseguem entrevistas, enquanto que citoyens de nomes puros, mas com as mesmíssimas qualificações, despertam o interesse de 75 empregadores.
Não vos parece rastilho suficiente para todos os ódios, para incêndios mil? Claro que não. A resposta não está no racismo encapotado, mas sim na inadmissível cobardia, no suicida laxismo de quem recebe e acarinha malta apenas interessada em drogas, Islão e subsídios de desemprego: o terrível “multiculturalismo” é que tem mesmo a culpa. O mal não está em recusarem-lhes emprego; está em não os obrigarem a uma integração perfeita — escondendo, se preciso for, apelidos exóticos e peles pouco francesas (seguindo a prudente receita de um emigrante português, entrevistado há dias pela SIC, que não permitiu que a filha meio argelina herdasse qualquer nome da sua mãe).
Olhem que há gente que acredita nisto. Talvez a mesma gente que aplaude como profeta um analista que ainda há um ano nos garantia que “à sombra do multiculturalismo, discute-se seriamente hoje em dia em França a possibilidade de ser introduzida no ordenamento jurídico nacional a lapidação para certos crimes, embora restrita à comunidade muçulmana”. A atmosfera em Urano aparenta ser algo intoxicante. Ou talvez seja apenas mais um caso de dedicação excessiva a jogos de computador, daqueles que nos deixam incapazes de distinguir ficção e realidade…

Volta a velha rotina dos Sábados…

Pego no “Expresso” e a namorada irrompe furibunda pela sala adentro:
— Mas já estás a ler o jornal? E o jantar, quem é que o faz?
Resposta honesta e apaziguadora:
— Não o estou a ler, amor meu. Estou só a espreitar as partes mais cómicas à procura de inspiração para um postzito. E sabes bem o jeito que o Espada e o Saraiva dão…

Eça agora…

O Jorge Palinhos, num dos derradeiros posts do BdE, aponta certeiro às meninges sempre febris da malta que gasta os seus dias a maldizer a “choldra” que é Portugal. Depois de inventariar as litanias preferidas das lusas carpideiras, conclui: “criticar sem ideias ou convicções ou acções, pelo simples fundamento de que Portugal não é a França e Lisboa não é Paris, não é colocar-se acima dos burgessos ou apresentar-se como uma elite aristocrática. É apenas ser um burgesso que cita Eça.”
É impossível não concordar. Mas resta um curioso e desconcertante paradoxo: o fulano que melhor cultivou uma certa postura hiper-crítica e luso-céptica — e que até citava Eça como ninguém — veio, apesar de tudo, a transformar-se num verdadeiro tesouro nacional. É hoje um farol que ilumina os caminhos brumosos do rarefeito orgulho pátrio que por aí ainda ande perdido.
Falo, claro está, do próprio Eça.