Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Dubai on the Algarve

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Sou um leitor do «Metro». Falo do «Metro» neerlandês, um bocado melhor do que o nosso. Tem um trabalho redaccional sério e fama de simpatias à direita. Mas leio também o concorrente, «Spits», ‘Hora de Ponta’.

E que se soube pela «Spits» de hoje? Que um multimilionário holandês, Sander van Gelder, projecta criar uma ilha ao largo do Algarve para receber gente discreta, para quem € 2.000 por uma noite de hotel não é avaria de maior. O senhor, que já é dono do luxuoso complexo turístico de Vale do Lobo, inspirou-se na península que o Dubai está a construir, a tal em forma de palmeira, que até da Lua é visível.

A ‘nossa’ ilha terá forma de vieira. Nela haverá hotéis, um court de ténis, um restaurante subaquático (sim, os dois mil pacotes são para se tomar o pequeno-almoço entre os peixinhos), e vai chegar-se até lá de monorail e teleférico.

«Com o crescente número de milionários, há uma maior procura de coisas invulgares», afirma o senhor Van Gelder. Pode ser. Mas não faz grande impressão aos nossos ecologistas, que já se perguntam sobre os efeitos da ilha artificial.

Ah, e uma vivendazita modesta, algures nos rebordos da vieirinha, ficará por uns 4 milhões de euros.

Cristo é muito superior a Maomé

São factos objectivos e indiscutíveis. Cristo é Deus, enquanto Maomé não passa de um profeta; não jogam sequer na mesma divisão. Para encontrar um rival de Cristo temos de chamar Alá. Cristo contra Alá termina sempre em empate, é duplamente monótono. Ao nível de Maomé estão Moisés e João Baptista; este último com um estatuto mais ambíguo. Toda esta gente tem parentes em comum, daí as quezílias nas partilhas. Mas quem vê superioridades e respectivas inferioridades? Só crentes e enciclopedistas. Ao lado, discretos, há também aqueles para quem Cristo e Maomé são apenas dois personagens numa estória de fricção. E este grupo tem a lucidez de atribuir igual importância a qualquer personagem, como bons amantes de literatura.

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Memento mori

Ao que parece, a Joana do Semiramis morreu. Assim de repente, no domingo passado. Dado o que entre nós se passou, não consigo fazer o número, adequado para a ocasião, do “apesar de tudo, estimava-a como adversária”. Fico-me pela tristeza de imaginar filhos que não mais terão a sua mãe, gente que por certo a amava e não mais a verá.
Nada conheço da sua vida “real”. Não sei se a conseguiu preencher com as grandes coisas que a sua inteligência e cultura permitiriam. Espero que sim.
Horas antes desse domingo, estava eu a escrever aos meus colegas de blogue a queixar-me das horas infindas que gasto por aqui. E a anunciar uma drástica redução da minha presença nestas “páginas”. O motivo é simples: tenho mais que fazer. E não consigo andar nisto sem ser de forma quase obsessiva: ainda hoje, já gastei sei lá quanto tempo a responder a quem tresleu o meu post sobre o caso dos cartoons.
Agora, mais que nunca, sei que há coisas muito mais importantes do que estas batalhas de HTML. E é melhor tratar delas antes que se faça tarde.

Há uma dúzia de anos, a blasfémia morava em Portugal

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Um cartaz de cerveja San Miguel utilizou a imagem do Cristo do Corcovado. Em resposta, o Patriarcado de Lisboa emitiu uma nota, anuindo a “muitas dezenas de telefonemas”, em que esconjurava esta “completa e grosseira falta de respeito por coisas evidentemente sérias”. Tratar-se-ia de “um abuso intolerável, motivo de escândalo e ofensa para numerosos portugueses”. O assunto, como se vê, chegou às primeiras páginas dos jornais. E chegou mesmo, e esta é a parte pouco conhecida da história, às Filipinas, país ferozmente católico e local da sede mundial da cervejeira. O cartaz, entretanto, já tinha falecido de morte natural, mas a direcção da filial lusa não se livrou de um valente raspanete.
Por acaso, fui eu o autor do polémico outdoor. Uns meses depois, em conversa com um padre meu conhecido, ouvi isto: “e se fosse o teu pai, não te sentias ofendido por o ver assim na rua? Então, estás a ver a razão do nosso protesto”.
Na altura, o que me parecia mais importante era o “impacto”, causar sensação nem que fosse através de primeiras páginas assim. Hoje não o repetiria. Não pelo responso tonitruante do Patriarcado; sim pela consciência de que nem tudo vale a pena para dar nas vistas.

Lembrança de Azeitão

Quando tento pôr as prateleiras em ordem ou arrumar a livralhada encontro-a sempre nas secções mais abstrusas, atrás dos mais inúteis dos saberes e das menos frequentadas das literaturas; insusceptível de ser apresentada ao mundo (detesto confessionalismos), forçoso é que viva escondida, por ser igualmente impossível deitá-la fora, pois com ela iria, além da minha incontornável avó, torre da minha infância, uma parte de mim também, uns anos iguais aos outros, a famosa idade em que o sexo germina em nós sem nós darmos por isso, mas que por ignotas razões, na cronologia da minha vida que estabeleci como versão oficial para mim próprio, elegi como os meus “anos de ouro” (uma vez que toda a gente tem os seus e até o pequeno Portugal se convence que já foi o maior do mundo). Com o passar do tempo, a loiça foi ficando sem brilho e com o bordo falhado, deixando à vista a massa grosseira de que era feita, e as letras douradas em que estava escrito, num cursivo ingénuo, “Lembrança de Azeitão” também se apagaram, se calhar ainda bem, porque eu acho os dourados pirosos – mas isso acho eu hoje, e não na altura em que ia à feira de Azeitão, porque nessa distante década de sessenta eu não distinguia uma pelintrice à venda numa feira portuguesa de algo mais a sério: os meus pais trouxeram-me uma vez uns óculos escuros desse improvável centro da moda internacional que era Viena e eu depois perdi-os, e desatei a chorar, fiz um barulho do caraças, e então para me calar ofereceram-me uns óculos de pechisbeque comprados na feira num domingo de manhã e eu fiquei todo contente com a troca. Uma leitura mais funcionalista da coisa parece também revelar que a sua capacidade era risivelmente diminuta para a finalidade que deveria servir – o que pode constituir outro sinal dos tempos de penúria relativa que então se viviam: onde era suposto a juventude tomar o leite matinal que a faria forte, cabe melhor, vejo-o agora, pouco mais que um cappuccino, e talvez por isso a juventude ficou raquítica, mas nessa altura eu também não sabia o que era um cappuccino (a minha filha hoje ri-se de mim quando eu lhe digo isto, mas eu encolho os ombros e respondo-lhe que, de qualquer maneira, todos nós temos o nosso Rosebud). Já tentei dar um novo fôlego à minha velha “Lembrança de Azeitão”, arranjar-lhe um outro uso e enfiar-lhe lápis e canetas dentro, mas o resultado foi penoso: não só, vista a sua diminuta altura, não conseguia aguentar os ditos lápis e canetas, como sobretudo não suportava o confronto com as suas cores modernas e luzidias, que ainda a faziam parecer mais pobrezinha. Ainda bem: porque a minha avó iria pensar que eu era parvo, em meter lápis no lugar do leite (e teria razão), e mais ainda porque eu não me canso de ir reencontrando, ao longo dos anos, a minha “Lembrança” na sua esplêndida e memorável inutilidade.

Uma guerra entre gémeos

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A guerra já começou mesmo. Mas, por enquanto, não é entre civilizações ou sequer entre religiões. É coisa mais rasteira e feia: um simples confito entre reflexos da mesma ignorância, da mesma mesquinhez fundamental.
De um lado, os imãs que acreditam piamente que a deles é a única visão certa; que quem ousa entender o mundo de forma diferente é apenas um blasfemo a pedir conversão urgente. Do lado de “cá”, lemos comentários como os que o Daniel respigou. Obras de gente igualmente solipsista, para quem o Outro é fonte de todos os males, para quem só “nós” é que somos, evidentemente, civilizados e tão superiores.
Para quem se entretém hoje a acirrar multidões — acrecentando quando necessário caricaturas ainda mais ofensivas às originais — a provocação de um jornal manhoso é bastante para decretar que todo um continente deve agora limpar-se de um novo pecado original. Para os “nossos” comentadores, sempre tão irredutíveis na perfeição das suas certezas, a liberdade de expressão passou de súbito a absoluto sem fronteiras que não deve ser limitado por qualquer susceptibilidade ou valor do tal “outro”.
Uns vêem do lado de lá turbas selvagens que nada respeitam, bárbaros às portas do império da decência e da justiça. Os outros idem. Todos berram o seu ultraje com este caso. Todos apontam o dedo às abjectas criaturas que se empilham do outro lado, incapazes de decência, sentimentos nobres ou de fazer “sonhar” seja quem for. Todos causam asco.

PS: Será que alguém já se lembrou de perguntar àquela opinião com pernas que sabe tudo sobre tudo como se chamava o homem que, de calcanhar, deu uma Taça dos Campeões ao FCP? Com tanto ardor que os assuntos da bola lhe provocam, se calhar o senhor esquecia esta exibição da sua ignorância mesquinha e passava a admitir que os muçulmanos até podem ser gente admirável.

Press-release

Geração após geração, a poesia portuguesa tem revelado grande qualidade e diversidade. Depois de um século que alguns consideram um “século de ouro” (o século de Pessanha, Pessoa, Nemésio, Sena, Ruy Belo, Sophia, Eugénio ou Herberto), a poesia dos novos autores deve ser vista à luz de uma exigência naturalmente alta. Este é um momento para reflectirmos sobre o estado presente da poesia portuguesa, tendo sobretudo em conta os poetas surgidos nos últimos 20 anos, e projectarmos o seu futuro imediato.
O que é a “nova poesia”? Os poetas novos escrevem necessariamente poesia “nova”? Como se distingue novidade e simples juventude? Que continuidades ou rupturas existem? Quais os poetas canónicos ou marginais que marcam a nova poesia? Que diálogos com outras artes detectamos? Que consciência política? Que afinidades há entre os novos poetas, no estilo ou nos temas? O que significam categorias como “novo realismo” ou “sublime”? Quais são as linhas de fractura? Que lógicas de grupo encontramos? Que sentimento do mundo? Que actividade crítica? Que revistas? Que antologias? Que manifestos? Que consistência tem a nova poesia?
Estes serão alguns dos temas de debate em POLAROIDS, que se pretende uma visão de conjunto sobre a nova poesia portuguesa. Um grupo de poetas e críticos, dos mais entusiastas aos mais cépticos, apresentarão as suas ideias e opiniões sobre a nova poesia.
Em cada sessão serão lidos poemas de sete poetas das últimas duas décadas.
Hoje, às 18 horas, no Jardim de Inverno do Teatro S. Luiz:

Gastão Cruz (autor de A Poesia Portuguesa Hoje)
Jorge Reis-Sá (organizador da antologia Anos 90 e Depois)
Luís Carmelo (autor de A Novíssima Poesia Portuguesa e a Experiência Estética Contemporânea)
Nuno Júdice (autor de Viagem por um Século de Literatura Portuguesa)
Moderador: Pedro Mexia
Leitura de poemas por: Rogério Samora

A jihad

Definitivamente, o incidente dos cartoons e as manifestações, tudo organizado pelos sectores mais radicais do Islão (e que não existiram quando os cartoons foram publicados, num jornal egípcio, em Outubro) estão a resultar às mil maravilhas. Tirando em Inglaterra, onde os textos de opinião vão, na sua maioria, no sentido inverso aos que aqui se têm publicado, a Jihad parece ter tomado conta das cabeças dos nossos articulistas. Três citações, apenas de textos de ontem e de hoje aqui do nosso cantinho, e que estão longe de ser o que de mais extraordinário se escreveu nestes dias sobre milhões de pessoas e toda uma civilização:

«Não conhecemos, em todo o mundo árabe, o nome de um cientista, músico, arquitecto, cineasta, explorador, atleta, enfim, alguém que faça sonhar ou avançar a humanidade.» Miguel Sousa Tavares

«[Uma religião] cujos fiéis explodem de alegria espontânea, quando há atentados como os de 11 de Setembro. Ou gostam de brincar com o Holocausto.» Pedro D’Anunciação

«Estamos num confronto cultural e civilizacional… estamos em guerra». José Pacheco Pereira

Quem leia estas pérolas e ainda tenha uma réstia de juízo há de perceber porque não me quero juntar ao coro dos guerreiros, em que é mais aplaudido quem disser a maior barbaridade (como de costume, Miguel Sousa Tavares leva a medalha de ouro). Todo o direito de publicarem os cartoons. Estão publicados, não estão? Agora, se para defender a liberdade de imprensa nos temos todos de transformar em novos cruzados, eu entrego já a minha armadura a qualquer um destes senhores. Em boa hora mantive a saudável distância desta gritaria.

Carta aberta

Aos promotores do Manifesto Como uma liberdade.

Caros Tiago Barbosa Ribeiro e Rui Bebiano:

Como muitas outras opiniões já entretanto publicadas, acho que o vosso texto poderia ser muito mais conciso e, portanto, facilitar a criação de um mínimo denominador comum na defesa daquilo que creio ser o vosso/nosso objectivo central e de princípio: a defesa da liberdade de expressão, sem foro privativo para a fé e crenças religiosas e/ou filosóficas.

Quanto ao resto: o Ocidente, o anti-relativismo, etc. – sinceramente dispenso. Um relativista japonês não pode assinar este manifesto pela liberdade de expressão? O que justificaria essa exclusão?

Mas mais do que isso, desejo protestar contra a inexistência de uma caixa de comentários. Que abaixo-assinado pela liberdade de expressão pode viver sem um espaço onde os signatários possam deixar mais um comentário, uma precisão ou uma ressalva?

Não é tarde para abrir esse espaço, já não acoplado a cada assinatura, mas como folha em branco autónoma onde cada um pode deixar a sua opinião. Não faço depender disso a minha assinatura porque não quero que pensem que invento desculpas para não assinar. Mas apelo ao vosso sentido de justiça e equanimidade perante os co-signatários para que o façam.

Tudo ponderado, a minha assinatura será

Rui Tavares, historiador, Lisboa

Publicarei este mail sob a forma de carta aberta.

Abraços libertários

[Rui Tavares]

Gente fina é outra coisa

Nunca foram mulatos ou pretos quando os cabeças-rapadas andaram à solta e mataram no Bairro Alto. Nunca foram imigrantes turcos quando residências foram incendiadas na Alemanha. Nunca foram iraquianos inocentes atingidos por fogo colateral. Nunca foram subsarianos mortos numa jangada no mediterrâneo.

E certamente nunca foram um judeu alemão quando esta frase foi cunhada em apoio de Daniel Cohn-Bendit, em 1968.

Apenas agora os ideólogos d’O Independente querem ser dinamarqueses.

Como os compreendo. Ser dinamarquês dá uma certa classe. Pessoalmente, invejo-lhes os subsídios de desemprego, a assistência médica, a segurança social e, se bem me lembro, as universidades de graça ou quase. Também não me importava de ser dinamarquês.

O azar é que os correligionários locais d’O Independente estão pouquíssimo interessados em naturalizar estrangeiros.

[Rui Tavares, publicado também em Caravaggio Montecarlo]