Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Pastelaria Suíça

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O senhor que me serve o café já reparou em mim. Nada de particular. É um bom empregado. No seu registo profissional, eu sou aquele fulano que aparece por ali quando lhe dá na telha, isto é, servindo um perfeito caos estatístico.

O que ele não sabe é que, todos os dias que Lisboa tem de aguentar-me no lombo, a minha chávena de café é feita ali. Não porque a qualidade do produto seja grande. Mas sou eu que, numa vida certinha, acabo dando chances ao irracional.

Ódios velhos

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Chegavam sempre no começo do outono, quando os corvos passavam ao fim da tarde, a grasnar às frialdades que vinham de Além-Douro. Interrompiam-nos a bola no terreiro, saltavam das carripanas escuras, abriam as gaiolas das matilhas. E caíam nos braços dum lavrador lá do povo, inchado por ter amigos na cidade. Soltavam palavrões que eu julgava proibidos, numa língua esquisita de pagãos, e escarravam muito pelo chão.
Manhã cedo faziam-se aos caminhos, de espingarda na ombreira, a açular a canzoada. E não havia brejo em todo o vale inteiro que escapasse à invasão. O cainçar dos podengos ouvia-se nas quebradas, e os ecos da fuzilada faziam ricochete nas encostas do vale, monte cá, monte lá, até ao cair da noite.
Retiravam-se ao terceiro dia, com as grelhas de metal enfeitadas de perdizes a largar nuvens de penas, e rosários de coelhos a pendular nos telhados das carripanas escuras.
Hoje vivemos paredes-meias. Os palavrões já me são familiares, e ao sotaque de pagãos acostumei-me aos poucos. Mas não sei como indultá-los do olhar morto das lebres, enforcadas nas janelas, a mandarem-me corrê-los à pedrada.

Jorge Carvalheira

UM JORNALISTA DESASTRADO

O drama que atingiu a família inglesa de férias no Algarve devido ao desaparecimento da sua filha Madeleine, de três anos de idade, levou o jornalista Hernâni Carvalho a fazer alguns comentários sobre o assunto no programa “As tardes da Júlia” (Júlia Pinheiro) na TVI.

O jornalista começou por referir “a taxa de desemprego que se verifica no Algarve”. Estaria Hernâni Carvalho a referir-se ao nosso Algarve? Pelos vistos, não.

Soledade Martinho Costa

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Camilo no Canadá ou o Nero da Trafaria

Releio o Perfil do Marquês de Pombal de Camilo Castelo Branco na edição da Porto Editora. Está em bom estado, tal como o apanhei no balcão do alfarrabista da Travessa de São José nº 1 – ali à Praça das Flores – mas veio de longe.

Tem colado na primeira página um papel branco com os dizeres «Papelaria Livraria Portugal 220 Ossington Ave. Toronto Ont. – Phone (416) 5373730». Sobre este livro apenas duas notas. A primeira sobre Pombal e os garfos. Um tal John Smith, secretário do Duque de Saldanha, publicou em 1843 as «Memoirs of the Marquis of Pombal». No capítulo XIII lá aparece «I tis perhaps not generally known even in Portugal, that Pombal was the first person who introduced the use of forks into that country.» Segundo este autor, Pombal trouxe os garfos em 1745 da Corte de Londres. Explica Camilo que já em 1611 o Dicionário Português-Latim de Agostinho Barbosa regista garfo para o latino fuscinula. Mais refere um livro sobre D. João IV onde se recorda que o prato do Rei tinha faca, colher, garfo e guardanapo. Por sua vez D. João III em 1554 entrega à camareira seis garfos, quatro de cristal e dois de prata sem esquecer o dote de D. Beatriz em 1522 com doze garfos de prata pequenos.

Resumindo: John Smith não tem razão. A segunda nota é sobre o massacre da Trafaria em 24 de Janeiro de 1777. Pombal sabia que na praia da Trafaria viviam cinco mil pessoas – pescadores, suas mulheres e crianças. Mas sabia também que ali vivia uma centena de rapazes que fugiam da vida militar. Pombal ordenou a Pina Manique que levasse 300 soldados em faluas do Tejo. Na madrugada desse dia os archotes dos soldados fizeram romper um terrível incêndio nas choupanas que não poupou nada nem ninguém: doentes, velhos, mulheres, crianças, víveres. Os poucos que escaparam levaram consigo apenas fome e nudez. Por isso Camilo chamou a Pombal o Nero da Trafaria.

Deixem-me sonhar

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Para a candidatura de Helena Roseta à Câmara da Capital ser um cúmulo de perfeição, deveria convencer José Sá Fernandes e Maria José Nogueira Pinto a juntarem-se a ela. Imaginando que estes carismáticos e idiossincráticos figurões conseguiriam organizar-se, em Lisboa começaria a reconquista cívica de Portugal.

A foto/notícia não tem nada a ver com nada, e tudo a ver com tudo.

Dois debates: Galiza e Portugal

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CUMPLICIDADES e CONTRABANDOS: é o sugestivo tema para dois debates sobre as relações culturais entre Portugal e a Galiza. Terão lugar na Biblioteca do Museu República e Resistência, no Espaço Cidade Universitária, Rua Alberto de Sousa nº10-A, Zona B do Rego, Lisboa.

[e não, como noticiámos primeiro, na Estrada de Benfica]

TERÇA, 15 de Maio, 18.15 h

Debate moderado pela Directora do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional,
Prof. Ana Paula Guimarães. Debatem

Camiño Noia (Univ. Vigo)
Clodio González Pérez (Conselho da Cultura Galega)
João David Pinto Correia (Univ. Açores)
Paula Godinho (Univ. Lisboa)

QUARTA, 16 de Maio, 16.00 h

Debate moderado pela Coordenadora do Centro de Estudos Galegos,
Prof. Graça Videira Lopes. Debatem:

António Medeiros (ISCTE, Lisboa)
Fernando Venâncio (Univ. Amsterdam)
María del Carmen Espido Bello (Univ. Compostela)
Pilar García Negro (Univ. Corunha)

Semana de Cultura Galega

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PORTUGALIZANDO. SEMANA DE CULTURA GALEGA EM LISBOA

Entre os dias 11 a 19 de Maio, decorrerá em Lisboa a Semana da Cultura Galega Portugalizando. Organizada pela Cátedra de Estudos Galegos da Universidade de Lisboa, o Centro de Estudos Galegos da Universidade Nova de Lisboa, o Instituto de Estudos de Literatura Tradicional da mesma Universidade e a Dirección Xeral de Creación e Difusión Cultural da Consellaría de Cultura da Xunta de Galicia.

Este programa ainda conta com o apoio da Secretaría Xeral de Política Lingüística, da Secretaría Xeral de Emigración, ambas da Xunta da Galiza e da Juventude da Galiza – Centro Galego de Lisboa. Esta semana, agendada em torno do Dia das Letras Galegas (17 de Maio), abarcará diversas vertentes da cultura galega contemporânea.

A iniciativa afigura-se da maior relevância para a divulgação da cultura galega contemporânea, e para o estreitamento das relações culturais entre Lisboa e a Galiza, povo que tanto contribuiu para a identidade da capital portuguesa.

Mais informações aqui e aqui.

O kispo da Mothercare

O desaparecimento da menina inglesa no Algarve lembra-me a ténue linha entre a negligência e a infelicidade. Sei-o por experiência própria, até.

Em 1984, o meu filho estava com a mãe e com uma tia à porta de uma pastelaria na rua principal de Algés. Ao ver-me a sair do automóvel do outro lado da rua, começou a correr na minha direcção. Aí surgiu um senhor que o puxou pelo kispo azul, evitando que fosse esmagado por um imponente Mercedes. Este poema de Dezembro de 1984 recorda-o.

F I L I P E

«Habitamos um corpo em perigo»
diria o João Miguel Fernandes Jorge
que tu não sabes sequer quem é
preso ainda à tua vida de criança
os bolsos cheios de miniaturas
as cantigas do colégio na tua voz

E contudo poderias ter ficado ali
como já em São Bernardino no Verão
quando vias o mar para ti sem fim

Esse mesmo mar que com os castelos
forma um dos campo ricos do teu vocabulário
que te enche a voz quando vês água
e chamas mar pequeno às minúsculas lagoas
breves como a chuva neste mês de Maio
breves como o grito de quem te viu
quase a ficar debaixo de um automóvel
em Algés – a fugir da pastelaria

E esse automóvel não era como tu
uma miniatura – era real e estava ali
como o mar e os castelos que quase perdeste.

José do Carmo Francisco

Questão com lágrimas

Uma veio do Brasil e por força há-de chorar todos os dias. Duas vezes. Faz-lhe bem, ajuda a alma, não sabe explicar porquê.
– As saudades da família, do calor, eu sei lá bem…
A outra veio de Angola mas não gosta de chorar, que lhe dá cabo dos olhos. E os olhos são o principal.
– O coração mais os olhos, são dois amigos leais…
Saem ambas na Praça dos Combatentes. E eu fico-me sem saber se é melhor cuidar dos olhos, da alma, ou do coração.
Vem-me à ideia que sou homem, proibido de chorar. E lá me livro destas hesitações.

Jorge Carvalheira

«Querido traficante» de Júlio Conrado

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Embora seja mais conhecido como crítico literário, Júlio Conrado (Olhão, 1936) tem neste Querido traficante já o seu oitavo romance. Foi vencedor do Prémio Vergílio Ferreira em 2006 com o seu próximo livro de ficção Estação ardente.

As personagens do romance agora saído movimentam-se num cenário recente: a passagem do milénio. A ponte de Entre-os-Rios que «tombou como uma peça de dominó no rio Douro», os peelings e os liftings das damas do jet set, o crime de Fortaleza, o assalto às torres gémeas de New York: «De um instante ao outro se esfanica a aura de uma América impune e arrogante.» Este é o tempo, mas o lugar é Portugal, onde também chegou (mas tarde) uma certa ideia de Europa: «o povo, mergulhado em duradoura melancolia e sem vislumbrar saída para os seus agravos, vivia resignadamente aquilo a que um escritor além-Pirenéus chamara um dia «ao tempos cobardes da democracia».

Os encontros e desencontros deste enredo são múltiplos: começam num jantar no Guincho com diplomatas de dois países a propósito das palavras de um deputado português sobre um país da América Latina e acabam num crime com um velho retornado a matar a sua mulher. Pelo meio um jogo de acasos faz com que um assalto a uma exposição de desenhos de Picasso se intrometa na vida dum traficante aflito e sem dinheiro, cuja irmã é uma modelo bem cotada no mundo da moda. E também uma escritora light que deixa morrer uma professora universitária que gostava de meninas e falava muito de Roland Barthes. Este livro lê-se com prazer no ritmo dum policial até à página 222. Nela se descobre que o acaso é o grande mestre.

Editora: Campo da Comunicação
Capa: Duarte Camacho

José do Carmo Francisco

«Pezinhos de coentrada» de Alice Vieira

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As crónicas publicadas nos jornais e nas revistas perdem-se poucos minutos depois de serem lidas. Recolhidas em livro, podem aspirar a alguma posteridade. Este volume de Alice Vieira recolhe textos publicados no Jornal de Notícias e nas revistas Tempo Livre, Audácia e Activa. Um dos textos tem o sugestivo título de «Ir à terra» e recorda uma visita da autora com Carlos Pinhão à Rua do Grilo ali no Beato, uma das muitas aldeias de Lisboa:

«Pareces o emigrante quando chega à aldeia – digo-te por brincadeira. Para o trabalho que tinha em mãos e para o qual pedira a tua ajuda naquela Lisboa para mim desconhecida, já não precisava de ver mais nada. Mas tu insistias: querias ver os lugares que existiam ainda e aqueles de que já nem sequer rasto havia. «Ali onde está aquela tabacaria, era a alfaiataria do meu tio. Eu ficava horas sentado à máquina de costura a pedalar, a pedalar, sentia-me o Trindade e o Nicolau… Depois o meu tio saía e dizia: «Vou entregar a obra aos fregueses» Ainda hoje sempre que tenho um artigo para entregar na Bola ou um original para a editora, digo sempre: «Vou entregar a obra aos fregueses». Entramos na escola primária, casarão imenso onde os degraus de madeira rangem tanto que até se deve ouvir lá fora, andamos por ruas e travessas, vilas e pátios, e reencontramos os olhos azuis da tua primeira namorada que engordou uns quilos e está cheia de rugas e cabelo branco e que, ao ouvir-te contar o tempo que passavas escondido só para a veres aparecer na rua, desfaz os teus sonhos com uma sonora gargalhada: «Olha que nunca dei por nada, palavra de honra!». «Fez-me bem ir à terra», disseste em jeito de adeus».

Editora – Casa das Letras
Capa – Neusa Dias

José do Carmo Francisco

O bailinho da Madeira

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Cresce o número de tontos que admiram as vitórias de João Jardim. E admiram precisamente isso: serem vitórias. É a mesma lógica scolariana, a qual instituiu que os fins justificam os meios: mesmo que se jogue mal, o que importa é a vitoriazinha. Se o cinismo desportivo tem adeptos, o cinismo político tem sequazes, prosélitos, bufarinheiros. Na ocasião, há alívio e conforto no esmagador resultado madeirense. Porque é a prova de que as velhas soluções funcionam, de que ainda se pode confiar na racionalidade do poder máximo. O poder máximo leva à distribuição mínima da riqueza; sendo o mínimo um critério móvel, sujeito às necessidades. Na Madeira há riqueza distribuída pela população, a qual tem trabalho, serviços e meios. Claro que teria chegado a 2007 com as mesmas condições sem Jardim, fosse quem fosse que tivesse estado no poder nos últimos 30 anos. Outros também teriam obra feita, pois que para gastar dinheiro o engenho nunca falta. A pergunta a fazer é: a que custo se quer manter o mínimo?

Os votantes em Alberto João são votantes em Alberto João, não no PSD. Olham para as candidaturas concorrentes e não vêem ninguém. Ninguém que lhes dê o mínimo. Evidentemente, não faz sentido pôr em causa o pouco que têm. Uma mudança de poder corresponderia a uma alteração das hierarquias, com inevitável instabilidade social e económica. A não ser que o substituto garantisse a manutenção da estrutura de poder. Mas a estrutura de poder já tem Jardim como seu representante e procurador, não existindo empresário que não esteja satisfeito com a plutocracia insular. Assim, o que se passa na Madeira em nada diz respeito à política, mas apenas à sobrevivência. Vota-se para proteger o mínimo. É sórdido e normal.

Do lado de cá, do lado do PSD, do lado das instituições do Estado, do lado dos órgãos de soberania, do lado dos jornalistas, do lado dos cidadãos, é a vergonha colectiva. Dão-nos baile.

Aprendizes de feiticeiro

Com a decisão de Pinto Monteiro, entregando a Cândida Almeida a investigação do caso da licenciatura de Sócrates, todas as vozes se calaram sobre o assunto. Porquê? Porque foi a pior notícia que poderiam ter recebido. A intervenção da Procuradoria-Geral não se limitou a alterar as regras do jogo, veio anunciar que se estava perante um jogo completamente diferente. Muitos dos que tinham gozado o prato de finalmente terem algo para entalar o Primeiro-Ministro, chafurdando na lixeira com gosto e empenho, estarão agora receosos. É que a vantagem passa para Sócrates, que se vê com um inesperado trunfo nas mãos. Se as eventuais tropelias — cometidas num contexto de inevitável promiscuidade de poderes, o académico e o político — se resumem a tratamentos de favor, o critério apanhará centenas de potenciais outros casos, em todos os partidos. E todos ficam expostos a retaliações. Se nada se provar de conclusivo, a investigação irá ilibar moralmente o suspeito, reforçando a sua imagem. E dará azo a vinganças planeadas com tempo e inteligência. Ou seja, por causa de supostas irregularidades formais num processo de licenciatura armou-se este banzé, tentou-se atingir a honra do visado por mero oportunismo político. Então, perante os casos de contínuo conluio entre os partidos e os corruptos, corruptos da alta e da baixa finança, ao molho — casos esses que correm de boca em boca em todos os sectores da economia —, poder-se-á começar a observar cabeças rolando pela corrupção abaixo, em tamanho e número nunca vistos em Portugal. E se tal acontecesse em consequência do caso da licenciatura, não poderia ser mais refinada a ironia socrática.

«Retraimento»

RetraimentoÉ urgente
Que escreva este poema
E que te diga, mãe
Muito obrigada.

Assim
Sem frases de ternura
Rebuscada
Apenas
A teus pés agradecida
E ajoelhada.

E a olhar os teus olhos
Que me olham
Com enlevo
Com carinho
E devoção
Mais uma coisa, mãe
Peço perdão.

Pois muito embora
Venha a pensar depois
Que foi tolice
As palavras de amor
Que te neguei
Foi por vergonha, mãe
Que não tas disse.

Soledade Martinho Costa

Sonatina de rua

Dei com ela no passeio, ao fim da tarde, saíra há pouco da caixita de rodas. À frente, num tapete sobre o empedrado, tinha a dormir um gato de peluche, abrigado a uma sombrinha de bonecas. Ao lado um bouquet de plástico e a caixa do violoncelo, para recolher as moedas.
A violoncelista lembrava os trinta anos e tinha uma flor no cabelo, a derramar-se em cachos pelos ombros. Vestia a indumentária da função, ampla saia bordada até aos pés, uma blusa de cetim, o coletito preto a aconchegar o peito. E era diferente das outras porque tocava de pé. Fixou o espigão numa prega da calçada, acomodou no ombro o braço do instrumento, correu a mão esquerda nos bordões. E ficou ali suspensa, de arco enristado na direita, a afagar num trejeito um caracol rebelde.
O maestro é alemão, vem do Oberhammergau, vai dizer-mo no fim do recital. Ampara-se a uma muleta e reclina sobre a artista os alongados braços, a bafejar-lhe o sopro demiúrgico de quem vai repetir a criação. Das pontas dos dedos enluvados sete fios o ligam ao corpo da mulher, que volta a sujeitar o caracol. E quando liga a máquina do som, desliza ela os dedos sobre o ponto, tange nas cordas o rufar do arco, cresce na rua a melodia da Scarborough Fair.
Começou por hesitar, a multidão, apanhada de surpresa. Depois, à melopeia ondulada do El condor pasa, rendeu-se de encantamento. Até um grupo de catraias que passava ali ficou, a ondear os quadris. Lá para o final, mesmo com falta de naipes, o maestro aventurou uma sonata célebre. E a plateia, que lhe não sabia o nome, perdeu a compostura e desatou a aplaudir.
Nos intervalos choviam as moedas na caixa do violoncelo. Quando as ouvia cair, almofadado na caixita de rodas, um caniche abria o olho e ladrava uma alegria.

Jorge Carvalheira

Jorge Buescu ataca de novo

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Há sensações assim. Saber que vai sair um livro – e que a gente vai comprá-lo. Porque nunca poderá decepcionar.

Na informação que a editora Gradiva faz regularmente chegar por mail, vejo que, a partir de 22 de Maio, há aí um novo livro de Jorge Buescu. Sim, esse mesmo de O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias e de Da Falsificação de Euros aos Pequenos Mundos. São histórias de encantar: exactamente porque são verdadeiras – ou muito próximo disso.

Vem agora O Fim do Mundo Está Próximo? E é anunciado assim:

«O que é que poderá estar por detrás do funcionamento de um chuveiro, de uma vitória no euromilhões, do sexo ou do fim do mundo? Neste novo e brilhante livro de Jorge Buescu, um dos divulgadores de ciência mais interessantes e bem sucedidos do nosso país, o leitor descobrirá, com a ajuda da matemática, que afinal coisas que pareciam distintas partilham relações profundas e que o conhecimento humano não está dividido em compartimentos estanques. A matemática tem afinal inúmeros segredos para revelar e é isso que a transforma numa ciência tão fascinante.»

Está a ver: por 13 €, vai ter duzentas e vinte páginas de boas vibrações.

In A Beautiful Place Out In The Country

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Se há uma banda que demonstra que a música não é apenas para ser ouvida, essa banda são os Boards of Canada. Senhores de um culto que consegue ser quase tão fascinante como as capacidades evocativas da sua música, não é de estranhar que, apesar dos manos Michael Sandison e Marcus Eoin apenas terem apadrinhado oficialmente a edição de um teledisco, pululem hoje na rede centenas de vídeos amadores feitos por fãs ansiosos por partilharem as suas experiências sinestésicas. Para quem «sofre» dessa condição, ver esses vídeos pode ser uma experiência perturbadora. Embora não venha listada no DSM-IV (a minha mãe acha que devia), a sinestesia é uma capacidade neurológica cujo estímulo pode ser profundamente viciante. Lembro-me que quando descobri que Kandinsky era sinestésico, pensei ter descoberto as razões da grande afinidade que, desde pequeno, sinto com a sua obra. A partir desse dia, procurei ter acesso aos quadros de tudo quanto era pintor sinestésico, mas, com a excepção de David Hockney, jamais voltei a sentir essa morna e inexplicável familiaridade. Voltando aos Boards of Canada, gostaria de partilhar com a malta que tem pachorra para estas coisas uma curta-metragem intitulada In A Beautiful Place Out In The Country que um senhor chamado Neil Krug realizou recentemente a partir da música do duo escocês. Devo dizer que não vi de ânimo leve essa curta-metragem. Primeiro, porque o EP que dá o título ao vídeo é uma das bandas sonoras da minha vida. Depois, porque as duas outras faixas utilizadas («Into the rainbow vein» e «Ataronchronon») são, de longe, os meus dois temas favoritos do último The Campfire Headphase. Não acredito em almas gémeas, mas, que diabos, um gajo dispensa bem este tipo de coincidências.

Podem ver/ouvir/cheirar/tocar/provar esse vídeo aqui.