Há em torno destas presidenciais um interdito absoluto: a idade de Mário Soares. Qualquer alma incauta que vagueie pela zona proibida adentro está logo sujeita a ser apelidada de “canalha”, “crápula” e coisas ainda bem piores. Quem quer que escreva uma linha sobre a campanha sabe bem qual a zona do mapa onde o mundo acaba e começa a barbárie. Temos todos de fazer de conta que não existe qualquer diferença etária entre candidatos. Pior: temos todos de ignorar qualquer atitude (ou deslize) de Soares que possa ser ligada à sua idade.
Exagero? Olhem que não: o tabu já infectou há muito os jornalistas que cobrem a campanha. Muitos sentem-se sobre brasas cada vez que relatam o dia-a-dia da caravana eleitoral soarista. O decreto não-dito e não-escrito é, mesmo assim, cristalino: nada de alusões, referências ou insinuações que possam ser lidas como estando apontadas à idade de Soares. Exemplo? Ao que me contaram, um jornalista que comparou o entusiasmo de crianças em torno do candidato com o que demonstrariam se fossem visitadas pelo Pai Natal foi logo alvo de uma reprimenda da sua hierarquia.
Assim, de gentil preocupação politicamente correcta, o tabu passou a auto-censura. Ninguém se arrisca a fazer eco de gaffes de Mário Soares. Quando ele há pouco explicava a alunos universitários a sua luta por essa Europa fora, em prol do “Não” ao projecto de constituição europeia, foi corrigido por um insistente coro de “Sins” da assistência. Um deslize inofensivo que tem alguma graça, como teve o de Valentim Loureiro há uns anos, quando desatou a berrar por Guterres num comício do PSD. Mas todos vimos imagens deste último episódio; do primeiro ninguém ouviu sequer falar.
De repente, o que parecia uma demanda de um decoro mínimo, começa a interpor-se como um ecrã translúcido entre os eleitores e as cenas da campanha. Esta louvável e doce intenção não clarifica, antes obscurece e enubla. Temos agora mais um mediador entre os espectadores e a “realidade” política: o pudor dos jornalistas.
Mas será esta uma estratégia viável? Ou arrisca-se, como grande parte das estratégias impensadas, a disparar pela culatra? José Gil apontou o inesperado peso que uma ausência pode transportar consigo. E a idade de Soares é o grande não-tema, o omnipresente mas invisível fantasma de toda a campanha presidencial. Se o filósofo tem razão, a sua invisibilidade não lhe vai tirar importância e premência. Antes pelo contrário.